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O iniciador da Reforma Protestante chamava-se Martim Lutero (1483-1546). Nasceu e viveu numa região que formava um dos principados que compunham a Confederação Alemã, então incluída no que se chamava genericamente de Alemanha Central, que no último pós-guerra integrou-se à Alemanha Oriental. Estudou no mosteiro agostiniano de Erfurt, ordenando-se sacerdote em 1507, aos 24 anos. Mais tarde, tornou-se professor de teologia na Universidade de Wittenberg.(1)

Em 1517, aos 34 anos, Lutero elaborou um documento que passou à história com a denominação de “95 teses sobre indulgências”. O incidente prende-se ao seguinte: o arcebispado de Magdeburgo, ao qual estava subordinado, era exercido por um jovem príncipe de 27 anos, Albrecht von Hohenzollern. Como era de praxe na época, ao assumir aquela função devia pagar ao Vaticano uma soma considerada elevada (trinta mil florins). Albrecht levantou esse dinheiro junto à casa bancária Fugger, tendo sido autorizado pelo Vaticano a promover uma coleta de dinheiro entre os fiéis que fosse suficiente: a) para repor o empréstimo; b) para facultar quantia equivalente, a ser encaminhada a Roma, destinando-se à edificação da Catedral de São Pedro; e c) atender às despesas da própria coleta. Esta ficou a cargo de um dominicano chamado Johan Tetzel, com cerca de 52 anos, que dispunha de uma carruagem, três acompanhantes e um criado. O prazo para levantamento do dinheiro foi fixado em oito anos. O Arcebispo Albrecht foi nomeado Comissário das Indulgências para toda a Alemanha Central.

Lutero não nega que o direito canônico faculte o perdão das punições que a própria Igreja haja imposto a seus fiéis mediante doações em bens. A seu ver, entretanto, como as indulgências estavam sendo apregoadas e oferecidas levava as pessoas a supor que, por aquele meio, asseguravam a salvação eterna. Escreve: “Por esta razão, não pude permanecer em silêncio. Jamais pode alguém garantir ao homem a salvação pela função episcopal, nem mesmo pela inspirada graça de Deus; mas o apóstolo manda (Fil. 2:12) que nos esforcemos continuamente, com temor, pela nossa salvação. Nem sequer o justo será salvo (I Pedro, 4:18). Afinal, é tão estreito o caminho que conduz à vida, que o Senhor chama aqueles que devem ser salvos, pela voz dos profetas Amós e Zacarias, tirando-os do fogo à força. E o Senhor anuncia sempre, novamente, como é difícil ao homem alcançar a salvação. Como, então, querem eles iludir o povo com fábulas e promessas de indulgência, embalando o povo com esperança e segurança quando a indulgência não ajuda as almas, de modo algum, a obterem a bem-aventurança e a santidade, mas apenas cancela a punição externa, que antigamente era imposta pelos cânones?”

As teses não suscitaram nenhuma discussão doutrinária benévola, como talvez supusesse o monge agostiniano. Em agosto de 1518, institui-se em Roma um processo contra Lutero, devendo ali comparecer. Temendo desagradar ao Príncipe da Saxonia, que não esconde simpatias por Lutero, a Cúria concorda em que seja ouvido pelo legado papel junto à Dieta de Augsburgo. Desse depoimento nada resulta, refugiando-se Lutero em Nuremberg, com receio de violências de parte da Igreja. Em janeiro de 1519, por solicitação do Príncipe da Saxonia, redige documento conciliatório pois até então acreditava na possibilidade de que a própria Igreja empreendesse o caminho da reforma.

Na verdade, entretanto, Lutero já se encontrava inteiramente distanciado da interpretação escolástica dominante. Em seu espírito predominava, então, uma visão agostiniana do homem e o mais completo desacordo com Aristóteles. Assim, ainda em setembro de 1517, redigiu uma espécie de sumário de seu pensamento, que se preservou, onde Santo Agostinho é apresentado diretamente como fonte inspiradora. E, quanto a Aristóteles, faz afirmações desse tipo: “quase toda a ética de Aristóteles é ruim e inimiga da graça” ou que “é um engano julgar que a opinião de Aristóteles sobre a bem-aventurança não contraria a doutrina católica”. Conclui desta forma enfática: “Em suma: todo Aristóteles vale para a teologia o que representam as trevas para a luz”.

Deste modo, discussões públicas subseqüentes só serviram para acentuar o seu distanciamento da Igreja de Roma. Em 1520, o Papa lança uma Bula ameaçando-o com a excomunhão. A reação de Lutero equivalia a uma ruptura frontal: a dez de dezembro queima publicamente a Bula Papal.

Nos vinte e poucos anos que lhe restaram de vida, Lutero procurou ganhar o apoio da nobreza alemã, incitando-a a rebelar-se contra Roma e deixar de pagar-lhe tributos.

Diante da grande efervescência criada pelos incidentes envolvendo a pessoa de Lutero, o Imperador do Sacro Império, Carlos V, convocou uma Dieta (assembléia política com a participação de todos os monarcas de determinados territórios, em geral não muito extensos, denominados de príncipes-eleitores, isto é, incumbidos de escolher o Imperador, assembléia em que se discutiam impostos e outros temas relevantes), em 1521, na cidade de Worms, na qual Lutero não compareceu para retratar-se e foi condenado. Essa condenação não teve qualquer eficácia naqueles principados cujos governantes simpatizavam com a causa de Lutero.

Em 1530, Carlos V faz uma nova tentativa de reconciliação, convocando a Dieta de Augsburg. Para essa reunião e por incumbência de Lutero, Malanchton (1497-1560) redige um documento que se tornou importante na história da Reforma (As confissões de Augsburg). O evento somente contribuiu para agravar as divergências.
Nessa altura, os príncipes alemães que aderiram às teses de Lutero haviam constituído uma poderosa coalizão militar. Depois da morte de Lutero dá-se o conflito bélico entre as duas facções, que somente termina em 1555. Nesse ano, firmada a paz de Augsburg, assegura-se a liberdade religiosa nos principados alemães. Os súditos eram entretanto obrigados a seguir a crença escolhida pelo Príncipe, devendo emigrar os que a isto não desejassem submeter-se.

Consumada a ruptura com a Igreja de Roma, além da atuação política a que se dedicou para granjear apoio entre os príncipes alemães, Lutero ocupou-se de dar estrutura à Igreja que levaria o seu nome e a redigir textos que explicitassem a nova doutrina.

Lutero traduziu a Bíblia ao alemão e exortou as autoridades municipais e aos seus seguidores no sentido de que criassem escolas destinadas a permitir que todos aprendessem a ler. Criadas estas, incitou os pais a que mandassem os filhos às escolas.
Escreveu sobre o papel que as obras humanas teriam na salvação, e, em geral, sobre os diversos aspectos da vida cotidiana, abrangendo questões tais como a usura e o comércio. Aproveitou o ensejo da revolta camponesa para fixar as relações (de subordinação) com o Poder temporal. Elaborou dois catecismos. Embora volumosos, os textos que nos legou são considerados dispersos, inexistindo um corpo de doutrina e presumivelmente sequer estivesse preocupado em elaborá-la. Dentre aqueles, os estudiosos destacamDe servo arbítrio, que redigiu para se contrapor a Erasmo. (Ver também De servo arbítrio, de LUTERO; e CALVINO).


(1)  Lutero mereceu diversas biografias, a mais famosa de autoria do escritor francês Michelet (Memoires de Luther, Paris, 1837). Seu contemporâneo e amigo Melanchton também escreveu uma história de sua vida, aparecida em 1549. Em português publicou-se Martin Lutero, de Funck Brentano (Rio de Janeiro, Vechi, 2ª ed., 1956) e O que Lutero realmente disse (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971). A Editorial Paidós, de Buenos Aires, publicou a tradução espanhola das Obras de Martim Lutero, em sete volumes.