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A proposta de Platão para o ordenamento político da sociedade encontra-se no diálogo que se denominou República, onde formula o ideal de um Estado perfeito. Contudo, os estudiosos entendem que outros textos precisam ser considerados para a plena compreensão da posição doutrinária a que chegou. Nesse conjunto, costuma-se privilegiar as cartas nas quais relata suas sucessivas tentativas de influir nos destinos políticos de Siracusa, que era então a principal cidade da Sicília, exercendo inclusive uma espécie de hegemonia sobre toda a ilha. Desde o século VIII os gregos dispunham de entrepostos comerciais – e de colônias habitadas por gregos – em diversas partes da ilha. Nessa parte do mundo grego, a partir da metade final do século VI, floresceu a escola fundada por Pitágoras que, além de haver desenvolvido o conhecimento matemático, tornou-se uma seita esotérica que supunha estivesse o mundo escrito em linguagem matemática, idéia que Platão incorporou aos seus ensinamentos e viria a ter grande fortuna quando se deu, no Renascimento, o reencontro com a sua obra.

Outros ensinamentos que Platão teria adquirido com aquela escola dizem respeito à imortalidade da alma e também a convicção de que haveria uma ordem harmoniosa no cosmos, abrangendo o homem. Haveria assim uma justiça providencial, exigente de que a sociedade seja governada por quem possa dela aperceber-se e praticá-la, isto é, um filósofo que seja tornado rei. A presença de Siracusa em sua obra prende-se à convicção de que ali havia encontrado quem daria cabo da incumbência.

Platão foi a Sicília, pela primeira vez, em 387, durante o reinado de Dionísio, o velho. Ainda que a vida fosse ali considerada feliz, diz expressamente que “não me agradou em absoluto”. E explica a repulsa, desde que era “passada em festins o dia todo, à maneira itálica ou siciliana, em que a gente se empanturrava de comida, duas vezes ao dia, e só dorme acompanhada...”  Acredita que estados assim estariam condenados a experimentar sem resultados os regimes existentes (tirania, oligarquia ou democracia). Conheceu entretanto Dião, irmão de uma das mulheres do tirano e que o compreendeu melhor “do que todos os jovens com quem então havia convivido”. Depois da morte de Dionísio, o velho (367), Dião convenceu ao jovem Dionísio, que assumiu o trono, a convidar Platão, o que viria a ocorrer sem resultado. Dionísio expulsa Dião de Siracusa mas consegue atrair Platão uma terceira vez. Finalmente, Dião toma o poder em Siracusa, com o apoio dos gregos, mas é morto (3454). Platão ainda procura influir na política da ilha, dirigindo conselhos aos amigos de Dião. Das treze cartas de Platão que nos restaram, sete referem-se às suas intervenções na política de Siracusa. Uma delas tem sido muito divulgada com o título de A sétima carta. Nesta, de certa forma resume aqueles contatos mas a divulgação deve-se, sobretudo, a que contém a maneira como Platão entende o processo do conhecimento.

De início, Platão refere a história política de Atenas e expressa a seguinte conclusão: “... as cidades de nosso tempo são mal governadas por ser quase incurável sua legislação, a menos que se tomassem medidas enérgicas e as circunstâncias se modificassem para melhor. Daí ter sido levado a fazer o elogio da verdadeira filosofia com proclamar que é por meio dela que se pode reconhecer as diferentes formas de justiça política ou individual. Não cessarão os males para o gênero humano antes de alcançar o poder a raça dos verdadeiros e autênticos filósofos, ou de começarem seriamente a filosofar, por algum favor divino, os dirigentes das cidades”. 

Numa das cartas dirigidas aos amigos de Dião, Platão expressa desse modo as razões de sua insistência: “não tinha senão que persuadir suficientemente um único homem e tudo estaria resolvido”.

Gorgias tem o subtítulo indicativo de que se trataria da retórica. Esta não diria respeito apenas à capacidade argumentativa, refinada arte cultivada pelos sofistas, isto é, pelos professores que a tal mister se dedicavam, entre estes o próprio Sócrates. Mais que isto, a retórica é considerada como instrumento de poder porquanto numa democracia, como se dava em Atenas, o domínio da palavra e da persuasão era decisivo para impor determinada política. Por essa via chega-se à moral, ao justo e ao injusto.

Na discussão, Sócrates enfrenta sucessivamente a Gorgias, Polo e Calicles, que diz serem “os mais sábios entre os gregos da atualidade”. Não obstante, consideram-se derrotados e retiram-se da cena, um em seguida ao outro. Gorgias sustenta que o conhecimento do justo e do injusto é alheio ao ensino e ao exercício da retórica. Polo pretendia que o poder, à margem da justiça, oferece maior segurança. Calicles, por fim, expõe a tese de que a ambição individual pode saciar-se no poder sem preocupar-se com a injustiça. Sócrates irá defender a tese de que a justiça é o objetivo da política, que somente o justo pode ser feliz e que é melhor sofrer a injustiça que cometê-la, embora saiba que as afirmativas dos seus interlocutores correspondem à posição geralmente aceita. Por isto critica diretamente a política pragmática da cidade, sem poupar aos governantes mais ilustres, como Temístocles e Péricles, evidenciando a incompatibilidade entre o exercício do poder em bases morais, e a ordem democrática. Sócrates chega mesmo a proclamar-se como o único político autêntico.

Em que pese o significado tanto das cartas como do diálogo precedente, seria na República onde Platão formula claramente aquilo a que corresponderia o primeiro modelo de sociedade fechada, governada de forma não apenas autoritária mas verdadeiramente totalitária.(1)

Na discussão, Sócrates continua como o personagem principal, embora se trate evidentemente de uma nova fase dos diálogos, aquela em que Platão formula doutrinas conclusivas. O tema consiste no regime político ideal, ou melhor, qual a melhor maneira de organizar a vida em sociedade.

O verdadeiro tema do diálogo somente aflora quando bem adiantado o Livro II e, mesmo assim, será sucessivamente entremeado de múltiplas derivações e observações paralelas, nos Livros subseqüentes. Cuida-se primeiro de indicar o que seria uma cidade, a começar das necessidades relacionadas à sobrevivência material (alimentação, moradia e vestuário). Desdobrando-se as formas de atendimento a essas necessidades, chega-se ao aglomerado que a constitui. A premissa geral é a de que cada um exerça a função para a qual está habilitado. A defesa exige uma classe especial que descreverá minuciosamente. Deverá ser sustentada pelos cidadãos, eximindo-se de qualquer outro trabalho senão o preparo para o fim a que está destinada. Esse grupo social, numa sociedade ideal, deveria viver num regime tipicamente comunista, nada tendo de próprio.

O espírito que preside à elaboração aparece plenamente na recomendação de que, sendo imprescindível dispor de um sistema educacional, os responsáveis pela cidade se esforçarão no sentido de que nada nessa matéria seja alterado sem o seu consentimento. As novidades são todas discriminadas. O projeto de Platão consiste primeiro em estabelecer o regime ideal, e, alcançado este, impedir qualquer mudança.
E assim os sucessivos segmentos dessa sociedade, no regime perfeito, seriam submetidos a uma verdadeira operação de enquadramento.

Platão acreditava francamente na eficácia de uma ditadura dos sábios e esforçou-se não apenas em concebê-la idealmente mas sobretudo buscou a oportunidade de estabelecê-la em lugar da democracia ateniense. (Ver também PLATÃO).


(1) É o tema do texto clássico de Karl Popper (A sociedade aberta e seus inimigos).