A intenção moral de Defoe ao escrever este livro é enfatizada abertamente desde o início. No "Prefácio do Autor", simula ter recebido um manuscrito, como era comum entre os novelistas. Assinala achar-se "escrito numa linguagem muito semelhante à de qualquer prisioneiro de Newgate e em nada recordava a de uma humilde arrependida, como parece ter sido mais tarde." Explica-se: "Se uma mulher que se corrompeu na juventude, ou, mais ainda, que é fruto da devassidão e do vício, deseja contar suas práticas viciosas, descendo aos pormenores das ocasiões e circunstâncias que inicialmente a perverteram e esmiuçando seus progressos no mundo do crime, realizados ao longo de três vintenas de anos, é claro que um escritor terá dificuldade em tornar decentes suas memórias, de forma a não ensejar, especialmente aos leitores maldosos, a ocasião de se voltarem contra ele próprio". Ainda que haja tomado as precauções necessárias ao rever o original, "para se relatar a vida de uma corrupta e seu arrependimento, é preciso que se apresentem os trechos menos inocentes com a mesma crueza da história verídica, até onde seja suportável, a fim de que ilustre ou ressalte o trecho do arrependimento que é com certeza o melhor e o mais belo, caso venha apresentado espirituosa e vivamente".
Defoe foi um panfletário temível a serviço da destruição da Igreja Anglicana, em nome da seita puritana a que pertencia. Quando se decide por dedicar-se sobretudo à pregação moral elabora um tratado com este expressivo título: "Acerca do uso e do abuso do leito matrimonial", no qual, entre outras coisas, defende a tese de que a libidinagem do casal acaba por refletir-se na aparência dos filhos, cujos rostos tornam-se "cobertos de pústulas e cheios de manchas". Assim, atribuía a acne que, com muita freqüência, inferniza a vida de jovens adolescentes, à violação de regras morais no seio da família.
O sucesso de Moll Flanders não se deve entretanto à intenção moral do autor mas à sua força literária.
A personagem foi prostituta durante doze anos, ladra profissional outros doze anos, casou-se cinco vezes (uma das quais com o próprio irmão), finalmente apanhada é deportada para a América onde passa a viver honestamente, tendo alcançado fortuna graças ao trabalho árduo. Essa vida atribulada é descrita com maestria. A maneira como refere o processo de seu arrependimento nada tem de piegas, tornando-se de todo convincente.
O relato da prisão e do julgamento de Moll Flanders é efetivado com grande vivacidade. O roubo que pretendia fazer não chega a consumar-se. O dono da loja inclina-se por perdoá-la mas acaba presa. Seu passado leva o júri a condená-la à morte. Convenceu-se tratar-se de criatura irrecuperável. Contando na prisão com assistência religiosa, é levada a balancear sua vida e também julgá-la com severidade. Arrepende-se. Mas será que não o fez por temor da morte? Hipótese provável quando teve oportunidade de ver o pavor de outros condenados no momento da execução. O sofrimento por que passa é transmitido com dramaticidade.
Por interferência de um protetor, sua pena é transformada em deportação para a América. Reencontra o último marido, que está preso por ter sido levado ao crime por ela mesma. Libertado, acompanha-a no desterro. A reconstituição da parte final da vida de Moll Flanders, na pena de Defoe, não se transforma em simples "happy end" porquanto entremeada pela angústia a que corresponde confessar ao marido passagens da vida que a mortificam. (Ver também DEFOE, Daniel e SWIFT, Jonathan).