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Norberto Bobbio nasceu em Turim, Itália, em 1909. Ao completar 90 anos, em 1999, plenamente lúcido e ativo, recebeu merecidas homenagens tanto na Itália como em diversos outros países, inclusive Portugal e Brasil. Logo adiante, o falecimento de sua esposa deixou-o muito combalido, o que se acredita haja contribuído para a sua morte no início de 2004.

Bobbio fez sua carreira universitária nas Universidades de Siena, Pádua e Turim, aposentando-se em 1984, ao completar 50 anos de magistério. Em sinal de reconhecimento por sua inestimável contribuição à cultura italiana, o governo nomeou-o  senador vitalício, o que lhe permitiu continuar presente na vida cultural e acadêmica de seu país. Sua obra está dedicada principalmente ao direito e à ciência política. Esta última é que lhe proporcionou grande audiência na Europa, nos Estados Unidos, e, em geral no mundo latino, achando-se traduzida ao português a sua parcela fundamental. Os estudiosos consideram que, nessa matéria, sua principal contribuição cifra-se no entendimento que tem proporcionado da democracia.O Dicionário de Política, por ele coordenado, tornou-se obra obrigatória de referência.

De certa forma, O futuro da democracia (1984) coroa e resume o pensamento de Bobbio acerca do palpitante tema. Reúne aquele conjunto de textos nos quais amplia o exame do tema proposto, reportando-se à análise de suas características fundamentais bem como à abordagem dos temas que mais preocupam aos estudiosos, a exemplo do incremento da participação política. O essencial de sua mensagem cifra-se, contudo, na crença na sobrevivência e nas vantagens da democracia. Não se trata, portanto, de nenhuma forma de profetismo.

Bobbio parte da tese de que a característica básica da democracia é o direito da maioria de influir na adoção daquelas regras que serão obrigatórias para todos. Cumpre ter presente, pondera, que os ideais humanos, concebidos como nobres e elevados, no processo de sua realização adquirem determinados contornos que precisam ser constantemente avaliados, a fim de estabelecer em que medida ainda têm algo a ver com o ideal originário. No que se refere à democracia, acha que deixou de atender a muitas expectativas, que denomina de “ promessas não cumpridas”, aparecendo também obstáculos à sua efetivação. Descreve-os, antes de avançar a avaliação conclusiva.

Não sobreviveu a concepção individualista da sociedade. Escreve: “os grupos e não os indivíduos são os protagonistas da vida política numa sociedade democrática”. Ainda que a circunstância não elimine a diferença entre regimes autocráticos e regimes democráticos, a democracia real está longe de ser “o governo de todo o povo” na medida em que é exercido por uma elite. Há também o chamado poder invisível (menciona máfias, organizações secretas de particulares e mesmo serviços secretos oficiais, ambas infensas a qualquer tipo de controle). Tampouco se conseguiu educar plenamente o cidadão, sobrevivendo apatia política e desinteresse pela coisa pública. O desenvolvimento da sociedade trouxe problemas que somente técnicos e especialistas podem resolver. Verificou-se também crescimento contínuo dos aparelhos burocráticos. Finalmente, as liberdades e a autonomia da sociedade civil elevou o nível das demandas sociais enquanto o aparelho político democrático age de forma lenta: “a democracia tem a demanda fácil e a resposta difícil; a autocracia, ao contrário, está em condições de tornar a demanda mais difícil e dispõe de maior facilidade para dar respostas”. Segue-se a avaliação:

“Pois bem, a minha conclusão é que as promessas não cumpridas e os obstáculos não-previstos de que me ocupei não foram suficientes para “transformar” os regimes democráticos em regimes autocráticos. A diferença substancial entre uns e outros permaneceu. O conteúdo mínimo do estado democrático não encolheu: garantia dos principais direitos de liberdade; existência de vários partidos em concorrência entre si; eleições periódicas a sufrágio universal, decisões coletivas ou concordadas ... ou tomadas com base no princípio da maioria e, de qualquer modo sempre após um livre debate entre as partes ou entre os aliados de uma coalizão e governo. Existem democracias mais sólidas e menos sólidas, mais invulneráveis e mais vulneráveis; existem diversos graus de aproximação com o modelo ideal, mas mesmo a democracia mais distante do modelo não pode ser de modo algum confundida com um estado autocrático e menos ainda com um totalitário”.

Explicita que se havia ocupado de problemas internos. Quanto às ameaças externas à democracia, lembra que não se registram guerras entre estados democráticos.

Antes de concluir, Bobbio considera ainda a suposição de que, sendo a democracia um conjunto de procedimentos, não dispõe de apelos capazes de fomentar o aparecimento de cidadãos ativos. Na verdade, entretanto, a democracia promoveu e promove ideais com que não contou a humanidade ao longo de sua história. O primeiro deles é a tolerância e, o segundo, a não-violência. Afirma: “Jamais esqueci o ensinamento de Karl Popper segundo o qual o que distingue essencialmente um governo democrático de um não-democrático é que apenas no primeiro os cidadãos podem livrar-se de seus governantes sem derramamento de sangue.” Assim, o adversário deixou de ser um inimigo (que deve ser eliminado), passando a dispor da possibilidade de chegar ao governo.

O terceiro ideal consiste na renovação gradual da sociedade através do debate das idéias. Explicita: “Apenas a democracia permite a formação e a expansão das revoluções silenciosas, como foi por exemplo nestas últimas décadas a transformação das relações entre os sexos – que talvez seja a maior revolução dos nossos tempos”.
Finalmente, o ideal de fraternidade: “grande parte da história humana é uma história de lutas fratricidas. Na sua Filosofia da História, Hegel define a história como “um imenso matadouro”. Podemos desmenti-lo?  E prossegue: “Em nenhum país do mundo o método democrático pode perdurar sem tornar-se um costume”. (Ver também (A) Sociedade aberta e seus inimigos, de Karl Popper).