Fundamentação da metafísica dos costumes apareceu em 1785, quatro anos depois da publicação da Crítica da Razão Pura (1781), que representa, na meditação kantiana, o amadurecimento da nova perspectiva filosófica. Entretanto, segundo se pode ver da parte de sua obra chamada de pré-crítica, não se preocupava apenas com uma explicação plausível das razões pelas quais a física newtoniana passou a ser aceita universalmente mas igualmente com a questão moral. Inquietava-o sobretudo a circunstância de que a religião reformada e o catolicismo tradicional divergiam em questões que figuravam diretamente nos textos básicos da moralidade ocidental, a exemplo do mandamento constante do Decálogo de Moisés segundo o qual não serão adoradas imagens. Além disto, tinha conhecimento das discussões travadas, notadamente na Inglaterra, sobre a independência da moral em relação à religião. Simultaneamente, sendo pessoa de profundas convicções religiosas, tinha a tendência a considerar o homem sem idealizações, como um ser pecador e carente de salvação. Nessa circunstância, os mencionados textos pré-críticos deixam claro que a moralidade não podia ficar na dependência apenas do conhecimento racional, como pretendera Leibniz. Em síntese, Kant tinha presente que, dada a pluralidade religiosa configurada na Época Moderna, a moral tornara-se exigente de uma fundamentação que prescindisse da interveniência da religião. Ao mesmo tempo, contudo, não podia ter a sua sorte vinculada à da “razão”, na forma onipotente como a conceituava o racionalismo. Mais explicitamente o conhecimento da lei moral não é condição suficiente para assegurar a sua prática. Os homens têm inclinações que o levam a violá-la. Esse conjunto de problemas teóricos explicam a longa trajetória acerca da moralidade, finalmente amadurecida com a obra de que ora se trata.
A Fundamentação da metafísica dos costumes é um livro cujo estudo é relativamente simples, confrontando com a Crítica da razão pura, a começar de suas dimensões (em torno de cem páginas). Acha-se subdividido em três seções – precedidas de um prefácio – , a saber: 1ª) Passagem do conhecimento racional comum da moralidade ao conhecimento filosófico; 2ª) Passagem da filosofia moral popular à metafísica dos costumes; e, 3ª) Passagem da metafísica dos costumes à crítica da razão pura prática. Suas teses básicas são apresentadas sumariamente a seguir.
Kant parte do pressuposto geral de que todas as pessoas são capazes de emitir juízos morais, isto é, todos estamos habilitados a ter uma opinião acerca da moralidade das pessoas e de seus atos. Deste modo, aceita a premissa posta em circulação pelos ingleses de que existe um senso moral acessível ao comum dos mortais, independente da cultura de que sejam dotados. Contudo, parecia-lhe que uma investigação de natureza psicológica jamais poderia proporcionar uma explicação aceitável de tal fato, pela dificuldade de generalização de simples vivências pessoais. Recusa também a hipótese de que as regras morais seriam uma resultante da experiência de vida em comum dos homens, ao longo de sua história. Deste modo, lançar-se-á ao que denominou de “passagem do conhecimento racional comum da moralidade ao conhecimento filosófico”.
Examinando os diversos tipos de ações morais, Kant irá estabelecer diferenciação entre as razões pelas quais as pessoas agem moralmente. Quando um comerciante evita enganar no troco uma criança pode fazê-lo apenas pelo temor de que semelhante comportamento poderia comprometer sua reputação e esvaziar seu negócio. Portanto terá agido por interesse e não por levar em conta o que determina a regra moral. Os exemplos multiplicam-se para chegar a esta conclusão: a verdadeira ação moral é aquela que se cumpre por dever, isto é, pelo simples respeito à lei moral.
O passo seguinte consistirá no estabelecimento de uma outra diferenciação que servirá para orientar o comum dos mortais quanto ao verdadeiro comportamento moral exigido. Trata-se de que, quando as pessoas se referem à moralidade em geral, têm presente as regras recomendadas na sua igreja ou de que tem conhecimento, por outros meios, de que seriam aceitas pela comunidade a que pertence. A esse conjunto poder-se-ia denominar delei moral.
Contudo, se bem que, possa ter presente aquela lei moral, para exercitar a respectiva ação tem que formular o que Kant chama de máxima, isto é, o enunciado subjetivo da ação que vai empreender. Para verificar se a ação considerada seria moral, basta que a transforme em lei universal.
Exemplo kantiano: “ser-me-á lícito, em meio de graves apuros, fazer uma promessa com a intenção de não a observar?” Posso deixar de fazê-lo por simples prudência, isto é, pelos dissabores futuro que tal comportamento poderia acarretar-me, o que não teria qualquer valor moral. Quanto a saber “se uma promessa mentirosa é conforme ao dever”, escreve: “O meio mais rápido e infalível de me informar consiste em perguntar a mim mesmo: ficaria eu satisfeito se minha máxima (tirar-me de dificuldade por meio de um promessa enganadora) devesse valer como lei universal (tanto para mim como para os outros)? Poderei dizer a mim mesmo: pode cada homem fazer uma promessa falsa, quando se encontra em dificuldade, das quais não logra safar-se de outra maneira? Deste modo, depressa me convenço que posso bem querer a mentira, mas não posso, de maneira nenhuma querer uma lei que mande mentir; pois, como conseqüência de tal lei, não mais haveria qualquer espécie de promessa, porque seria, de fato inútil manifestar minha vontade a respeito de minhas ações futuras a outras pessoas que não acreditariam nessa declaração, ou, se acreditassem à-toa, me retribuiriam depois na mesma moeda; de modo que a minha máxima tão logo fosse arvorada em lei universal, necessariamente se destruiria a si mesma.”
Finalmente, Kant dará o passo decisivo ao formular uma síntese magistral do conteúdo decorrente do Decálogo de Moisés e do Sermão da Montanha, que definem o que seria a moral preconizada e definidora da cultura ocidental. O conteúdo em apreço foi chamado por Kant de imperativo categórico e expressa-se deste modo: o homem é um fim em si mesmo e não pode ser usado como meio. E assim o cerne da moralidade ocidental é determinado como correspondendo ao ideal de pessoa humana. Para Kant, a questão da liberdade, intensamente discutida desde Santo Agostinho – e que este deixara na dependência da intervenção da graça divina, na opção pelo bem – resume-se à escolha da lei moral (o ideal de pessoa humana), ao invés de ceder às inclinações. A meditação filosófica cumpre assim um longo e rico itinerário.
A ética kantiana mantém plena atualidade pelas seguintes razões: 1ª) Apresenta maior sintonia com o caráter laico de que chegou a se revestir a cultura ocidental; 2ª) Permite estabelecer uma relação adequada entre moral, direito e política, desde que dela decorreria este esquema: a moral é subjetiva (esfera da coração interna), sendo a coração externa esfera do direito, correspondendo a política à esfera da violência legalizada; e 3ª) É de comprovada eficácia no concernente à determinação do que seria a ação moral. (Ver também KANT).