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O sábio italiano Rodolfo Mondolfo teve uma longa e profíqua existência. Nasceu em 1877 e faleceu às vésperas de completar cem anos, em 1976. Ainda muito jovem, nos começos do século XX, participou dos debates relacionados ao marxismo, que tivera lugar na Itália, tendo contribuído para fixar uma interpretação que posteriormente iria contrastar com o leninismo, porquanto identificada com a tradição humanista ocidental. Tornou-se um dos principais historiadores da filosofia, retirando-lhe todo caráter arbitrário e estabelecendo distinções fundamentais em suas várias expressões para destacar o papel dos problemas no seu desenvolvimento. Teve ainda oportunidade de reordenar a filosofia grega e elaborar textos destinados a facilitar o seu estudo. Fugindo do fascismo, radicou-se na Argentina onde muito contribuiu para animar o movimento editorial relacionado à filosofia, no que se refere a traduções cuidadosas e publicação de revistas especializadas, bem como para a formação de professores. Com o fim do fascismo recuperou a cátedra que dispunha na Universidade de Bolonha, mas preferiu continuar residindo na Argentina.

 Com o livro Figuras e idéias da Filosofia da Renascença determinou com  precisão o papel do Renascimento na emergência da filosofia e das ciência modernas. Para Mondolfo, o Renascimento proporcionou contribuições definitivas, porém, de um modo geral, deve ser entendido como uma fase de transição. Entre as primeiras, destaca-se o entendimento da pessoa humana como um valor, em contraposição ao conceito predominante da Idade Média.

A noção de pessoa corresponde a uma aquisição do cristianismo, porquanto ausente tanto da tradição religiosa judaica como da meditação filosófica grega. Santo Agostinho definiu-a como dotada de liberdade, isto é, como um ser que é instado a agir a partir de escolhas e não como um autômato. Essas idéias seriam desenvolvidas por São Tomas. Tais indicações, contudo, não contribuíram para atribuir-lhe maior dignidade. Ao contrário, ainda que possam ser encontradas vozes discordantes, o entendimento vigente era o de um ser desprovido de qualquer valor, entendimento esse explicitado por Lotario de Segni, elevado ao trono papal como Inocêncio III (Papa de 1198 a 1216), no livro De contemptu mundi (O desprezo do mundo), amplamente difundido em forma de sermões e compilações de caráter popular. O dignatário da Igreja revela o mais solene desprezo não tanto pelo mundo, mas pela condição humana, colocada mesmo abaixo dos vegetais. Assim, escreve: “Anda pesquisando ervas e árvores; estas porém produzem flores, folhas e frutos e tu produzes de ti lêndeas, piolhos e vermes; elas lançam do seu interior azeite, vinho e bálsamo, e tu, do teu corpo, saliva, ruína. excrementos”. Pregação desse tipo é que deu lugar às barbaridades cometidas pela Inquisição –- por sinal criada pelo mesmo Inocêncio III--, que se prolongaram, durante a Época Moderna, tanto na Itália como na Espanha e em Portugal, agora para combater a ciência e o enriquecimento advindo da nova visão do mundo posta em circulação pelos protestantes.

No seu livro, Mondolfo mostrou que o Renascimento, ao exaltar a pessoa humana, não deseja apenas repetir um tema clássico, mas valer-se da cultura antiga para contrapor-se ao entendimento vigente em seu tempo, herança da Idade Média. Indica que, ainda em 1448, aparece De dignitate et excellentia hominis, de Ginozzo Manetti, escrito para refutar terminantemente a Inocêncio III. Seguem essa linha Marsílio Ficino (1433/1499); Pico da Mirandola (1463/1494); Giordano Bruno (1548/1600); Tomás Campánela (1568/1639) e tantos outros.

Após resumir suas principais teses, conclui Mondolfo: “Esse esclarecimento da excelência humana como capacidade ilimitada de aperfeiçoamento, que se realiza paulatinamente, na conquista e ampliação dos conhecimentos, na aquisição do domínio sobre a natureza, no desenvolvimento dos poderes intelectuais, na criação das artes, das ciências e de todo o mundo da cultura superior, não era somente uma afirmação da consciência de que o homem pode e deve ter a sua dignidade, mas, ao mesmo tempo, das exigências  que esta dignidade implica como condições imprescindíveis.”

Assim, não apenas por haver facultado criações imorredouras na arte e na literatura, mas também por haver reivindicado a dignidade da pessoa humana, o Renascimento ocupa um lugar destacado na cultura ocidental. Difundiu a idéia de que, pela intensidade que pode proporcionar ao conhecimento, o homem equipara-se à Divindade. Na espécie, esta somente o supera pela extensão.

O Renascimento procurou dar a conhecer as idéias de Platão, para contrabalançar o virtual monopólio alcançado pela filosofia aristotélica, na versão escolástica. Ainda que se tratasse de uma variante do platonismo permeada pela religiosidade cristã – o chamado neoplatonismo dos séculos II, III e IV --, permitiu que se difundisse a hipótese, de origem platônica, de que a natureza estaria escrita em linguagem matemática. Essa hipótese, que se encontra na raiz da ciência moderna, seria também estimulada por doutrinas místicas, igualmente postas em circulação. De todos os modos e em que pese os avanços proporcionados por Galileu, em matéria de ciência o Renascimento equivale à transição. O mesmo ocorrerá na filosofia. Mondolfo mostra que muitas das idéias presentes á meditação dos maiores pensadores modernos foram antecipadas pelos ranascentistas. Mas este impulso seria insuficiente para originar o que caracteriza a Filosofia Moderna como algo de plenamente autônomo e diferenciado. (Ver tambémBRUNO, Giordano e Galileu, Galilei)


Figuras e idéias da Filosofia da Renascença, tradução brasileira, São Paulo, Mestre Jou, 1967.

Esta é a fonte do racionalismo ascendente na Época Moderna. Conforme a experiência histórica iria evidenciar, trata-se de visão unilateral. Coexiste no homem com instintos brutais e irracionais. Além disto, a valorização do corpo, emergente a partir da Era Vitoriana, complementa o conceito de pessoa.