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O Federalista corresponde à coletânea de artigos publicados em 1787 para defender o projeto de Constituição que deveria formalizar a união entre os estados americanos e definir as suas regras. No relacionamento precedente com a Inglaterra, cada estado o fazia diretamente. Quando começaram as disputas com a Metrópole na década anterior, convocou-se um Congresso que declarou guerra à Inglaterra e terminou por proclamar a Independência, em 1776. A guerra prolongou-se durante cinco anos e os ingleses somente se renderam em 1783. Embora a reunião congressional dos estados tivesse recomendado que se preparassem as bases para discutir se as ex-colônias permaneceriam todas unidas ou se formariam mais de uma confederação, essa discussão foi postergada até a derrota dos ingleses. A experiência dos anos oitenta, quando as ações militares deixaram de monopolizar as atenções, tornou patente que o tema deveria ser enfrentado com a necessária profundidade. Assim, em 1787 decidiu-se eleger uma Convenção Nacional, reunida em Filadélfia, que aprovou o projeto de Constituição a ser submetido a referendo pelos estados.

Ainda que a maioria se haja inclinado pela constituição de um governo central, que congregaria todos os estados, incumbindo-se daquelas questões exigentes do concurso geral, como defesa e relações externas, existiam muitos partidários de confederações isoladas. Além disto, a discussão seria reaberta durante o processo de referendo. No caso de Nova York, por exemplo, que era um dos estados importantes, o governador era contrário ao governo central e dos três delegados à Convenção Nacional, dois retiraram-se do conclave e não assinaram o projeto. Essa situação explica que haja surgido ali a iniciativa dos artigos, mas também a novidade do tema, como teremos oportunidade de referir.

Os artigos apareceram sob o pseudônimo de Publius. Somente quando surgiu a iniciativa de reuni-los em livro, pelo interesse que o tema começou a despertar sobretudo em decorrência da Revolução Francesa, é que se buscou estabelecer a autoria. Ainda que permaneçam dúvidas em relação a um ou outro artigo, são todos obra de Alexandre Hamilton, James Madison e John Jay. Este último, que não integrou a Convenção e somente tomou conhecimento da Constituição quando o documento estava pronto, limitou a sua colaboração a cinco artigos, justamente os que não foram considerados como os mais notáveis. Ao todo, publicaram-se 85, a maioria escrita por Hamilton.

Alexandre Hamilton (1757-1804) estudou no King’s College de Nova York – atual Universidade de Columbia – participou da guerra da Independência e, posteriormente, exerceu a advocacia. Elegeu-se delegado tanto à Convenção Nacional (1787) como à de Nova York (1788). Foi nomeado Secretário do Tesouro do primeiro governo dos Estados Unidos, sendo Presidente George Washington (1732-1799), posto em que permaneceu de 1789 a 1795. Considera-se que lhe coube conceber o sistema financeiro norte-americano de uma forma que lhe permitiu evoluir sem afetar a estabilidade da moeda. Elaborou também um programa de estímulos à criação de manufaturas, pretendendo assim que o país participasse da Revolução Industrial que então ocorria na Inglaterra e não se limitasse à atividade agrícola. Além do exercício da advocacia, exerceu funções no Exército. Morreu num duelo, aos 47 anos.

James Madison (1751-1836) também teve ativa participação na elaboração dos artigos que compõem a coletânea. Depois da Convenção e do referendo da Constituição, seguiu carreira política, elegendo-se para a Câmara dos Representantes. Participou da elaboração do primeiro conjunto de emendas à Carta (1789) e foi o quarto presidente dos Estados Unidos. Tendo sido reeleito para um segundo mandato, permaneceu no cargo entre 1809 e 1817. Faleceu aos 85 anos de idade.

John Jay (1745-1829), do mesmo modo que Alexandre Hamilton, estudou no King’s College de Nova York, concluindo-o em 1764. Embora se tivesse omitido na fase inicial da luta pela Independência, tornou-se seu partidário entusiasta. Autor do projeto de Constituição do estado de Nova York, presidiu o Congresso Continental no biênio (1778-1779) e fez parte da Comissão que negociou, em Paris, o Tratado de Paz com a Inglaterra. Tornou-se o primeiro presidente da Suprema Corte. Elegeu-se governador de Nova York em 1795, reelegendo-se para um segundo mandato. Findo este, recusou-se a voltar à Suprema Corte por considerar debilitada a sua saúde, retirando-se da vida pública. Embora ainda vivesse mais de uma década, nos últimos anos achava-se praticamente imobilizado.

O projeto de Constituição dos Estados Unidos tratou basicamente das atribuições dos Poderes da União, tanto do Legislativo (subdividido em Câmara e Senado) como do Executivo (Presidência da República) e do Judiciário. As atribuições em apreço diziam respeito às questões de interesse comum. A par disto, proibiu que os estados se desmembrassem ou se unissem, preservada a possibilidade de admissão de novas unidades federadas. Declarou-se explicitamente que “os Estados Unidos garantem a todos os estados da União a forma republicana de governo e comprometem-se a protegê-los contra alguma invasão ou, a instância das respectivas Assembléias Legislativas (ou, na sua falta, das autoridades executivas), contra qualquer situação de violência interna”. Em matéria de direitos foram consignados apenas a matéria incontroversa, a fim de permitir que se discutisse (e referendasse) o essencial. Indicou-se que a Constituição poderia ser emendada tanto por iniciativa do Congresso como das Assembléias Legislativas de dois terços dos estados. Subsequente ao debate e referendo, em 1789, isto é, no ano seguinte à ratificação, foram aprovadas as primeiras dez emendas, relativas aos direitos fundamentais e também indicando (10ª emenda) que “pertencem aos estados respectivamente ou ao povo os poderes que não forem delegados pela Constituição à União ou cujo exercício não lhes foi proibido”.

O Federalista tomou por base o consenso da liderança quanto ao repúdio da monarquia e a preferência pelo governo republicano. Assim, não foi objeto de debate a questão clássica das discussões políticas quanto à melhor forma de governo. Embora se enfatize o que indica o Preâmbulo da Carta, tangenciou-se o que pudesse envolver controvérsia conceitual, concentrando-se nas formas de sua realização. O Preâmbulo indica ser propósito do documento “constituir uma União mais perfeita, estabelecer a Justiça, assegurar a Tranqüilidade doméstica, providenciar a Defesa comum, promover o Bem-Estar geral e assegurar as Bênçãos da Liberdade para nós e nossa posteridade”. Ao defender tal enunciado, os autores não se detêm na natureza da justiça mas nos meios para estabelecê-la e torná-la segura.

A União perfeita é aquela que resulta do governo centralizado. A mencionada centralização em nada interferirá na gestão da coisa pública nos estados. Como era natural para aqueles que mal haviam saído de guerra prolongada, o tema central passou a ser a defesa contra agressões externas, tarefas de que os estados isoladamente não poderiam desincumbir-se. Pelo mesmo motivo, a organização de exército permanente também mereceu grande atenção.

Os artigos afirmam a inevitabilidade da disputa, que provém tanto da natureza humana como da diversidade de interesses. Essa circunstância é que impõe a existência de uma lei geral, fixada pela Constituição. Eventuais disputas pelos estados serão dirimidas pela Suprema Corte. Não se tinha nenhuma garantia de que a instituição viesse a conquistar o respeito da população, mas confiava-se em que tal ocorresse.

Assim, concentrando-se na questão do governo central e nas suas relações com os governos estaduais, O Federalista tornou-se marco referencial da nova espécie de federalismo, que os americanos iriam inaugurar. A novidade do processo não é obscurecida desde que confrontado detidamente à experiência pregressa. Como indica Benjamin Fletcher Wright, autor da introdução que aparece nas edições recentes: “Embora fosse uma atitude seriamente enganadora apresentar O Federalista como um livro sistemático e destacado sobre a filosofia da política – ignorando sua participação na controvérsia, nos Estados Unidos e particularmente em Nova York, da qual é parte – qualquer análise que não atentar para a enorme contribuição do livro ao pensamento político e constitucional da América e do mundo moderno não estará fazendo justiça à sua permanente importância”.