Galeria Grandes Personalidades
03/2008
Benjamin Constant e o estabelecimento da
natureza da representação políticaBenjamin Constant de Rebecque (1767/1830) nasceu na Suíça (Lausane), tendo recebido uma educação verdadeiramente enciclopédica, concluindo as universidade de Erlangen, na Alemanha, e Edimburgo, na Escócia, ao mesmo tempo em que, desde jovem, freqüenta os círculos eruditos de Paris. Casou-se pela primeira vez aos 22 anos, em 1789, mas preferiu uma vida aventurosa em matéria amorosa ao se radicar em Paris, a partir de 1795. Teve uma grande paixão por Mme. de Stael (1766/1817; da nobreza suíça, casada com o embaixador da Suécia em Paris, autora de obras bem sucedidas, inclusive texto consagrado sobre a cultura alemã, dando a conhecer os grandes filósofos da época, a começar por Kant). Sendo francamente um pensador de inspiração liberal (nessa época a doutrina não tinha tal denominação e quando os whigs, na Inglaterra, adotam o nome de Partido Liberal, em 1832, já havia falecido), incompatibilizou-se tanto com a Revolução Francesa1 como com Napoleão. Este o exilou, juntamente com Mme. de Stael, em 1803.
Na fase dos chamados “cem dias”, no ano de 1815, quando Napoleão, depois de ter sido forçado a abdicar, retoma o poder, Benjamin Constant aceitou a incumbência de redigir-lhe uma Constituição, o que foi considerado como prova de grande ingenuidade. Com a Restauraçãoingressa na vida política e consegue destacar-se como parlamentar.
Apesar da vida atribulada, pela inclinação boêmia, do mesmo modo que em decorrência de perseguições políticas e exílios – fatos estes que consumiram pelo menos a metade de sua vida – logrou grau elevado de elaboração de sua doutrina política, embora declarasse insistentemente ter outro objetivo o seu projeto teórico, como indicaremos. Nos ciclos em que esteve incompatibilizado com a situação e sem possibilidade de atuar na política, redigiu uma grande quantidade de manuscritos. Contudo, somente sob a Restauração conseguiu ordená-los.
Sua obra se subdivide, basicamente, em dois grandes grupos. Consiste o primeiro na elaboração de sua teoria política, de inspiração liberal, que representa uma grande contribuição para o desenvolvimento da doutrina no começo do século. Justamente esse ponto de partida é que seria retomado por François Guizot (1787-1884) para formular o chamado liberalismo doutrinário, durante largo período uma referência fundamental, em contraponto com a experiência inglesa. A obra de Aléxis de Tocqueville (1805-1859) também entronca não apenas com os doutrinários mas igualmente com Constant, cujo texto básico na matéria seriam osPrincípios de política (1815).
A segunda parcela corresponde ao que o próprio Constant entendia como sendo o projeto de sua vida: uma grande obra sobre a religião. Entre 1824 e o ano da morte (1830) publicou-a em cinco volumes, com esta denominação Da religião considerada em sua fonte, sua forma e seus desenvolvimentos. Sua intenção era indicar que, a exemplo de outras esferas da vida humana, o desenvolvimento da religião depende da liberdade. Na sua visão, o sacerdócio seria um empecilho a qual tal ocorresse. Sendo protestante, manifesta a convicção de que a Igreja reformada tem melhores condições de atender a tal imperativo. Parece-lhe que “a igreja marchará com as idéias, esclarecer-se-á com a inteligência, será depurada com a moral e sancionará, em cada época, o que esta tiver de melhor. Em cada época, reclamemos sem cessar a liberdade religiosa; ela cercará a religião de uma força invencível e garantirá seu aperfeiçoamento. Assim o entendia o divino autor de nossa crença, quando, estigmatizando os fariseus e os escribas, reclamava para todos a caridade, para todos a luz, para todos a liberdade”.
Publicou um livro intitulado Adolfo que se considera retrataria seu atribulado caso amoroso com Mme. de Stael.
Estudioso do liberalismo doutrinário e da obra de Constant, Ubiratan Macedo (1937/2007) aprecia-a deste modo: “O sucesso de Benjamin Constant deve-se certamente ao fato de que é um pensador sistemático. Aliás o liberal mais sistemático do século, de vez que os ingleses não se preocupavam com esse aspecto e tratavam as questões à medida de seu surgimento, cuidando sem dúvida de preservar a coerência geral. ... É interessante consignar que Benjamin Constant, tendo se tornado o líder da oposição liberal no período da Restauração era considerado, em seu tempo, homem de esquerda. Como tal o apontavam as litografias da época (“Chef de la Gauche”), sendo portanto uma grosseira simplificação o terem apontado em nosso país como reacionário. Quase um tradicionalista, pela influência que exerceu sobre Pedro I. Sem dúvida é mais certo admitir que Pedro I dele se aproximou justamente por sua condição “subversiva”. O nosso primeiro imperador lutou denodadamente contra o absolutismo monárquico e na formação desse seu espírito liberal o conhecimento da obra de Benjamin Constant há de ter desempenhado um papel decisivo, fato atestado por seu biógrafo Octavio Tarquínio de Sousa. Não seria estranho, à predileção do nosso primeiro imperante, a tumultuada vida pessoal de Benjamin Constant: paixões e casamentos sucessivos, duelos, a postura boêmia, nada conservadora”.
A contribuição fundamental de Constant, no aspecto que ora nos ocupa, consiste na doutrina da representação política como sendo de interesses. Essa doutrina apresentou uma solução definitiva para a magna questão, facultando o processo de democratização do sistema representativo. Para tanto, generaliza a experiência histórica, notadamente dos ingleses no que se refere ao funcionamento do Parlamento.
À obra em que a fundamenta, com a devida amplitude, deu título deveras extenso: Princípios de política. Aplicáveis a todos os governos representativos e, em particular, à atual Constituição da França (Paris, 1815; edição revista do texto de 1806). A posteridade preservaria apenas a frase inicial.
Parte do reconhecimento do princípio da soberania popular. Contudo, irá deter-se em seu estudo tendo presente que o entendimento, de forma abstrata, popularizado pela Revolução Francesa (a “vontade geral” de Rousseau), levou, os que se julgaram capazes de interpretar aquela vontade, a se consideraram dotados de poderes ilimitados. Escreve Constant: “Quando a soberania não tem limites, não há meio de proteger os indivíduos contra os governos. É em vão que se tem a pretensão de submeter os governos à vontade da coletividade. São sempre eles que ditam essa vontade e qualquer precaução se torna ilusória.”
Portanto, o princípio precisa ser devidamente qualificado. A soberania popular exerce-se em determinados limites, sem o que a liberdade individual não será preservada. Adianta, “os cidadãos possuem direitos individuais independentes de toda autoridade social ou política, de modo que toda autoridade que viole esses direitos se torna ilegítima. Os direitos dos cidadãos são a liberdade individual, a liberdade religiosa, a liberdade de opinião, incluindo sua divulgação, o gozo da propriedade e a garantia contra qualquer arbitrariedade. Nenhuma autoridade pode atentar contra esses direitos sem destruir seu próprio título.”
Com base nessa compreensão, afirma, é possível constituir a representação nacional de modo que a França, a exemplo do que ocorre na Inglaterra, consiga instaurar o governo representativo. Para tanto, contudo, é necessário dar mais alguns passos em matéria doutrinária. Desta vez para refutar a opinião, que veio a generalizar-se, de que haveria incompatibilidade entre os interesses particulares e os interesses gerais.
Veja-se como Constant dá conta do problema. Escreve na obra citada: “Cem deputados, nomeados por cem seções de um estado, trazem ao seio da assembléia os interesses particulares, as prevenções locais de seus mandantes; esta base lhes é útil: forçados a deliberar juntos, logo compreendem serem indispensáveis sacrifícios respectivos; tratam de diminuir a extensão destes sacrifícios e esta é uma das grandes vantagens da forma como foram nomeados. A necessidade acaba reunindo-os em uma transação comum e quanto mais tiver havido escolhas por seção, mais a representação vai alcançar seu objetivo geral. Se a gradação natural é invertida, colocando-se o eleitorado no topo do edifício, aqueles que ele nomeia são chamados a se pronunciar acerca de um interesse público de que desconhecem os elementos; fica-lhes a cargo transigir para partes de que ignoram ou desprezam as necessidades.É bom que o representante de uma seção seja o órgão desta seção; que ele só abandone seus direitos reais ou imaginários após os haver defendido; que ele seja parcial para a seção da qual é o mandatário, pois, se cada um é parcial para com seus mandantes, a parcialidade de cada um, unida e conciliada, terá as vantagens da imparcialidade de todos”.
Portanto, o interesse geral será fruto da negociação entre os interesses particulares. Pergunta: “O que seria o interesse da coletividade, a não ser a transação ocorrida entre os interesses particulares? O que seria a representação da coletividade, a não ser a representação de todos os interesses particulares devendo transigir sobre os objetos em comum?”. E, conclui: “Sem sombra de dúvida, o interesse da coletividade difere dos interesses particulares, mas não é de forma alguma seu contrário.”
Quando abordamos, aqui neste mesmo espaço, a contribuição de Locke para a estruturação do governo representativo, tivemos oportunidade de referir que, dada a intensidade da luta que a sua geração e a anterior tiveram que travar com a monarquia absoluta, considerou-se que apenas as pessoas dotadas de certas posses tinham condições de dispor-se a enfrentar o poder monárquico. Na época em que Constant dava forma à sua doutrina, ainda não tivera lugar, na Inglaterra, a extensão do direito de voto aos setores emergentes da elite proprietária (os industriais).
De sorte que era perfeitamente natural que Constant ainda considerasse que somente a elite constituída pelos proprietários rurais tivessem consciência plena de seus interesses. Mas foi a partir da premissa, por ele estabelecida, que se tornou possível o reconhecimento da legitimidade de outros interesses além daqueles defendidos pela elite proprietária. A doutrina considerada tem o mérito adicional de haver fornecido os argumentos teóricos necessários à refutação das idealizações de Rousseau. Vale dizer, a o abandono do sistema censitário –isto é, que adotava a renda como critério para a constituição do eleitorado. A organização de governo representativo em outros países, além dos anglo-saxãos, repousava em tal regime. É certo que, em seus primórdios, a doutrina que o sustentava não se pretendia democrática. Contudo, na medida em que a obra de Tocqueville –A democracia na América (1835)-- iria evidenciar que era possível alcançá-la, sem as conseqüências funestas da Revolução Francesa, o ponto de apoio teórico seria a doutrina da representação política da lavra de Benjamin Constant.
A doutrina da representação como sendo de interesses teria uma grande fortuna. Serviu de base para a verificação, pela liderança inglesa, que os trabalhadores reunidos em sindicatos configuravam um interesse definido e vinham demonstrando capacidade de defendê-los. Caia por terra, deste modo, a crença de que quem não fosse proprietário não saberia como definir os próprios interesses, tendendo a servir de massa de manobra para a Coroa perpetuar a sua resistência às concessões ao poder constituído a partir da representação. Semelhante verificação permitiu que tivesse lugar a ampliação do direito de voto na Inglaterra. As reformas do século XIX acabaram facultando-o a cerca de 30% da população maior de 21 anos. Praticamente todos os homens passaram a dispor daquela prerrogativa. Na época, falava-se, indevidamente, em “sufrágio universal” porquanto não se admitia que as mulheres tivessem participação na vida política. O desaparecimento dessa última restrição exigiria mais três décadas, porquanto somente se consumaria, em igualdade de condições à população masculina, em 1928.
Deste modo, consagrou-se o princípio de que a representação política é de interesses.
O passo seguinte, na incorporação de novo elemento à doutrina consagrada, decorreria das alterações que a democratização do sufrágio iria proporcionar à feição assumida pelo partido político. Por toda parte onde se introduziu o sistema representativo, no século XIX, a agremiação política era um bloco parlamentar. A democratização do sufrágio exigiu, entretanto, que ali onde se concentravam os eleitores, fossem constituídas estruturas partidárias permanentes. Tornou-se patente que a função do partido político consistia em alcançar o afunilamento dos interesses, crescentemente diversificados na sociedade industrial.
A doutrina vitoriosa incorporou esta determinação: a representação política é de interesses, cabendo aos partidos afunila-los a fim de dar efetividade à negociação a ser encetada no Parlamento.
Quando faleceu, em 1830, Benjamin Constant tinha 63 anos.1 Em geral perde-se de vista que a Revolução Francesa gerou para a França grande instabilidade política, além de haver, com as chamadas “guerras napoleônicas”, reintroduzido na Europa a idéia imperial que levaria o continente a sucessivas e catastróficas guerras. Iniciada a 14 de julho de 1789, em fins de 1791 instaurou a monarquia constitucional. Menos de um ano depois, proclamou-se a República. De junho de 1793 a julho de 1794 vigora o Terror, pelo fato de que a guilhotina foi acionada com crescente intensidade. Nos dois últimos meses, apenas em Paris foram executadas 1.300 pessoas. Em 1795 aprova-se Constituição Republicana, seguindo-se intensa agitação que culmina com o golpe de Estado de Napoleão Bonaparte. Este, em 1804, faz-se coroar Imperador, somente sendo derrubado em abril de 1814. No ano seguinte reinstala-se em Paris e governa durante 100 dias. O período de 1815 a 1830 é chamado de Restauraçãoporquanto se tenta restaurar o Antigo Regime. Em julho de 1830 tem lugar Revolução Liberal. É a fase em que a influência dos doutrinários assegura o funcionamento do sistema representativo que, entretanto, é abolido em 1848, reinstalando-se no país a instabilidade.