(O) Vermelho e o Negro,
de Stendhal
O Vermelho e o Negro combina
a apresentação
de um painel (cáustico)
da sociedade francesa do tempo
dos ultras com
a criação de
um típico herói
romântico (Julien Sorel),
consumido por um amor impossível.
Julien Sorel é filho do
proprietário de uma pequena
serraria no interior da França.
Aprendeu latim e, dotado de memória
excepcional, era capaz de decorar
os textos em latim dos grandes
clássicos e da própria
Bíblia. Do ponto de vista
do pai e dos irmãos, musculosos
e ignorantes, aquelas qualidades
eram o suficiente para o considerarem
inútil e o maltratarem
impiedosamente. Julien simpatiza
secretamente com Napoleão
e sua época, naturalmente
sem nenhuma base objetiva, apenas
por imaginá-la como um
grande contraste à situação
que presencia.
Stendhal pinta a sociedade francesa
como achando-se sufocada pelo
medo, encontrando-se na mais
absoluta dependência da
nobreza ressuscitada, ávida
por recuperar o tempo perdido,
detentora do poder em Paris.
A pequena cidade em que vive
Julien (Verrières) é dominada
pelo Senhor de Renal -- dono
da fábrica de pregos --
que, após a Restauração,
envergonhado de ser industrial,
consegue fazer-se Presidente
da Câmara Municipal. Na
cidade campeia a subserviência
e a maledicência. Os incidentes
que a absorvem são absolutamente
banais.
Outro grupo social descrito da
forma a mais desfavorável é o
clero. Julien Sorel passa quatorze
meses num seminário onde
a grande maioria dos noviços é constituída
de rudes camponeses, sem nenhuma
vocação.. O importante é adquirir
um certo ar de santidade. Deste
modo, a hipocrisia é a
nota dominante. Entre os padres,
o maior empenho é portar-se
de modo a conseguir uma paróquia
onde a renda da igreja proporcione
vida farta e tranqüila.
A única figura decente
nesse meio – o padre Pirard,
apresentado como jansenista,
isto é, pertencente ao
grupo de partidários de
uma igreja independente de Roma
que aceitava muitos dos postulados
da Reforma – acaba sendo
perseguido. Descrito como protetor
de Julien, o padre Pirard consegue-lhe
numa colocação
em Paris, onde o levará a
muitas sociedades de jansenistas.
Julien fica então espantado;
em seu espírito, a idéia
de religião estava intimamente
associada à hipocrisia
e à esperança de
ganhar dinheiro. “Passa
a nutrir admiração
por aqueles homens piedosos que
não pensam em orçamentos...
Um novo mundo abre-se para ele”.
Na carruagem que o transporta
a Paris, Julien presencia um
dos poucos comentários
constantes do livro em que Napoleão é citado
nominalmente. Trata-se de comentários
de um grande proprietário
que, enojado do ambiente da Corte,
refugia-se no interior e também
ali não suporta a convivência.
Este personagem culpa abertamente
a Napoleão pela Restauração,
com uma curiosa argumentação.
Com a Concordata, tornou os padres
funcionários públicos
ao invés de obrigá-los
a ganhar a própria vida
da mesma forma como o fazem o
comum dos profissionais liberais
(médicos, advogados...).
E prossegue: “E haveria
hoje esses fidalgos insolentes
se o seu Bonaparte não
tivesse feito barões e
condes; não, a moda teria
passado. Depois dos padres, são
os fidalgozinhos campestres que
me causaram maior irritação
e fizeram com que aderisse aos
liberais.”
A estada em Paris irá proporcionar
a Stendhal a oportunidade de
descrever (e criticar) os nobres
do Antigo Regime, agora de novo
no poder.
O novo emprego de Julien é na
casa de um rico Marquês
(De La Mole), à espera
de ser elevado a Duque e tornado
Par de França. Em seu
salão pululam bajuladores.
Refere-os deste modo: “...
em primeiro lugar, cinco ou seis
amigos da casa, que o lisonjeavam
a todo instante, acreditando
achar-se protegidos por um capricho
do Marquês. Eram pobres
criaturas mais ou menos triviais;
mas cabe dizer em louvor desta
classe de homens, tal como se
encontra hoje nos salões
da aristocracia, que não
se rebaixam igualmente para todos.
Alguns deles se deixariam maltratar
pelo Marquês, mas se sentiriam
revoltados ante uma palavra áspera
que a sra. de La Mole lhes dirigisse”.
E mais: “Havia muita soberba
e bastante tédio no fundo
da alma dos donos da casa; estavam
muito acostumados a ultrajar
para quebrarem o aborrecimento,
de modo que não podiam
esperar verdadeiros amigos.” Num
dos momentos de intimidade, que
o Marquês por vezes lhe
permite, confessa-lhe que “é preciso
se divertir ... só isso é real
na vida.”
Em síntese, o tom das
conversas pauta-se pelo seguinte: “Contanto
que não se brincasse nem
com Deus nem com os padres nem
com o Rei nem com os artistas
protegidos pela Corte nem com
tudo que é estabelecido;
contanto que não se falasse
bem nem dos jornais de
oposição nem de
Voltaire nem de Rousseau nem
do que parecesse liberdade de
opinião; contanto que
sobretudo não se falasse
nunca de política, podia-se
livremente discorrer sobre qualquer
coisa.”
Entretanto, o fio condutor do
livro é a paixão
de Julien Sorel pela Senhora
de Rênal. Casada com o
todo poderoso Presidente da Câmara
de Verrières, tem três
filhos. Contratado para trabalhar
como preceptor das crianças,
Julien tinha na época
19 anos. Apaixona-se perdidamente
por aquela bela mulher que resiste
o quanto pode mas acaba por permitir
que expresse o seu afeto. Julien
o faz da forma a mais imprudente,
para seu desespero. A situação
mantém-se nesse pé até que
Julien vai para o seminário.
No intervalo a Senhora de Renal é consumida
pela paixão e tudo faz
para esquecê-lo. No dia
em que deve transferir-se para
Paris, Julien irrompe em seus
aposentos à noite. A Senhora
pensa resistir mas acaba cedendo.
Por ter concordado em que permanecesse
ali escondido durante o dia seguinte,
vê-se colocada em situações
verdadeiramente ridículas
perante o marido e empregados.
Afinal descoberto, sem ser identificado,
foge.
Em Paris, em casa do Marquês
de La Mole parece de todo haver
esquecido o primeiro amor. Apaixona-se
pela única filha e herdeira
do poderoso senhor, Matilde. É uma
jovem com a cabeça cheia
de fantasias acerca dos seus
ancestrais na Idade Média.
Seu estado de humor oscila e
alterna-se do mesmo modo que
a relação com o
amante. Afinal acaba por engravidar.
Para abafar o escândalo,
a família consegue faze-lo
passar pelo filho bastardo de
um nobre e permite que se realize
o casamento. É colocado
no exército. A sorte parece
sorrir-lhe. Nessa altura, investigando
o seu passado, o Marquês
obtém uma carta da Senhora
de Rênal onde diz coisas
dessa ordem: “Pobre e ávido, é com
a ajuda da mais consumada hipocrisia
e pela sedução
de uma mulher rica e infeliz
que este homem procurou
conseguir uma nova situação
e se tornar alguma coisa. Faz
parte de meu penoso dever, acrescentar
que sou obrigada a crer que o
sr. J. não deve ter nenhum
princípio de religião.
Em sã consciência
sou levada a crer que um dos
seus meios para ter êxito
em uma casa consiste em procurar
seduzir a mulher que ocupe a
mais destacada posição.
Coberto por uma aparência
de desinteresse e por frases
de romance, seu grande e cínico
objetivo é chegar a dispor
do dono da casa e de sua fortuna.
Deixa atrás de si um rastro
de desgraças e de lamentações
eternas ...”.
Tudo desfeito, a reação
de Julien Sorel é verdadeiramente
espantosa e mais ainda o que
se segue. Vai a Verrières
e dá dois tiros na Senhora
de Rênal, em plena igreja,
durante o culto. Preso é condenado á morte.
Tendo sofrido apenas um ferimento,
a vítima o procura na
prisão e a paixão
se reacende de ambos os lados.
A pobre Matilde como que é esquecida.
Finalmente, morre na guilhotina.
Como se indicou no verbete dedicado
ao autor, Stendhal baseou-se
numa história em parte
verídica, notadamente
o incidente da igreja. Mas, a
partir de tais elementos, criou
uma figura verdadeiramente espantosa..
Afora a fixação
no amor impossível, típico
de uma época de exaltação
romântica, o que de fato move Julien
Sorel perante a sociedade? Ressentimento
pela origem humilde e a simultânea
evidência de sua superioridade
intelectual diante de nobres
e burgueses? Difícil de
decidir. Do mesmo modo que o
título pondo em contrate
duas cores que podem simbolizar
coisas diversas e que nem por
isto se enquadram no contexto
do livro. O certo é que
se trata de uma criação
imorredoura. Capaz de prender
e deleitar o leitor mesmo em
sucessivas leituras quando não
há surpresas. Somente
essa extraordinária qualidade
literária explica a sua
permanência no Cânon,
que somente pode abrigar em seu
seio as obras literárias
que alcançam a perenidade
por seus exclusivos méritos.
(Ver também (A) Cartuxa
de Parma e STENDHAL)
A
denominação
designa as figuras que exercem
o poder no período
que vai da queda de Napoleão
(1815) à Revolução
Liberal de 1830. Trata-se
do ciclo em que se tenta
restaurar o Antigo Regime
(assim chamado o que vigorava
antes da Revolução
Francesa).