(A) Sociedade aberta e
seus inimigos, de Karl
Popper
A Sociedade Aberta e seus
Inimigos, de Karl Popper
(1902-1994), foi publicada
(1945) num momento em que o
caráter totalitário
do regime soviético
ficara obscurecido em decorrência
da aliança da União
Soviética com o Ocidente,
contra o nazismo. Logo adiante,
na medida em que os russos
logram impor o seu odioso sistema
a sucessivos países
no Leste europeu, a pertinência
do alerta de Popper iria tornar-se
evidente, assegurando o sucesso
da obra e a sua sucessiva reedição.
Para muitos segmentos da sociedade,
a União Soviética
estava associada ao socialismo,
criação ocidental
francamente caudatária
da tradição cristã.
Os fundadores do socialismo,
no século XIX, associaram-no à idéia
cristã da fraternidade
universal. Ao mesmo tempo, entretanto,
tinha-se consciência de
que o bolchevismo inseria uma
componente despótica inquestionável,
amesquinhadora da pessoa humana,
entrando em franca contradição
com o cristianismo. Os socialistas
alemães, ao longo da década
de 20, advertiram quanto à verdadeira
característica do regime
soviético, movendo uma
crítica demolidora, notadamente às
idéias de “socialismo
científico” e “ditadura
do proletariado”. Contudo,
nos anos 30, ao formar inicialmente
contra o nazismo, os russos e
seus seguidores no Ocidente turbaram
de alguma forma aquela consciência.
Embora a aliança entre
os dois totalitarismos haja sido
recomposta com a assinatura do
Pacto Germano-soviético,
em 1937, a invasão da
União Soviética
pela Alemanha, em 1941, e o ingresso
desta na Aliança Ocidental
criou a ilusão de que
o regime soviético poderia
caminhar no sentido da democracia.
O seu empenho de domínio
da Europa, nos anos subseqüentes
ao término da guerra,
acabaria evidenciando o irrealismo
daquela expectativa. Neste particular é que
o livro de Popper tornou-se um
verdadeiro marco, ao identificar
e criticar os fundamentos doutrinários
dos inimigos do sistema democrático
representativo vigente nos principais
países do Ocidente, que
batizou com a feliz expressão
de sociedade aberta.
Karl Popper era austríaco
de nascimento e emigrou de sua
pátria, em 1935, para
escapar ao nazismo, primeiro
para a Inglaterra e depois para
a Nova Zelândia. A partir
de 1949 radica-se na Inglaterra,
onde cria, na London School of
Economics, um grupo de estudiosos
da filosofia das ciências
que viria a se tornar um dos
mais importantes do Ocidente.
Popper contribuiu grandemente
para superar a visão oitocentista
que se tinha da ciência,
segundo a qual repousava na observação,
sendo o método indutivo
sua base primordial. Inverteu
essa relação ao
reconstituir minuciosamente o
trabalho do cientista, no livro
que denominou de Lógica
da Investigação
Científica (1935). A
ciência parte de hipóteses,
formuladas por quem está habilitado
a fazê-lo, estando sujeitas à refutação.
Ao mesmo tempo, submeteu a indução
a uma crítica demolidora.
Assim, em suas mãos a
ciência deixa de ser algo
dogmático e concluso para
exercitar-se em limites perfeitamente
estabelecidos, além de
experimentar avanços e
recuos. Sua obra como filósofo
das ciências é integrada
por significativo conjunto de
textos, entre os quais destacam-se,
além do livro citado, Conjecturas
e Refutações: o
desenvolvimento do conhecimento
científico (1962)
e Conhecimento Objetivo (1972).
Nos últimos anos de vida
publica o que chamou de Post
Scriptum à sua meditação
sobre as ciências. Essa
parcela de sua obra, pelo que
tem de mais representativo, está traduzida
ao português.
Com A Sociedade Aberta e
Seus Inimigos, Popper notabilizou-se
igualmente como pensador político.
Sua proposta fundamental consiste
em aplicar, à organização
social, o mesmo método
que desenvolveu em relação à ciência.
Se o crescimento desta depende
da derrota do dogmatismo, também
a democracia não pode
sobreviver à existência
de verdades irrefutáveis.
A sociedade aberta é uma
conquista da civilização,
corresponde ao sistema concebido
e praticado pelo homem maduro,
que recusa ser tratado como criança
pelo Estado, aceita todas as
suas responsabilidades – entre
as quais inclui não apenas
direitos mas também deveres –,
reconhece a impossibilidade do
paraíso terrestre e desdenha
das utopias socialistas.
No entendimento de Popper, a
civilização começa
com sociedades fechadas, organizadas
em bases tribais, repousando
as relações sociais
na rigidez dos costumes, geralmente
fundados em crenças mágicas.
Na Grécia iniciou-se uma
outra experiência de criar
um espaço para a responsabilidade
pessoal. A obra de Platão
está destinada a obstar
essa mudança. Popper enxerga
na teoria política platônica
a origem do totalitarismo, razão
pela qual submete-a a uma crítica
profunda.
Platão desenvolve a teoria
de que os seres e as instituições
existentes são cópias
imperfeitas de idéias
imutáveis, cumprindo reconstitui-las
como ideal a fim de dispor de
uma espécie de arquétipo.
No caso do Estado, o ideal deveria
refletir aqueles aspectos presentes
aos Estados existentes. O critério
para identificá-los consiste
nas estruturas que se tenham
revelado mais duradouras, isto é,
que impeçam as mudanças.
A origem destas provém
da desunião da classe
governante, cumprindo portanto
substitui-la pelo sábio
(filósofo). O modelo que
estaria mais próximo do
Estado ideal seria Esparta, onde
vigorava uma espécie de
ditadura dos mais experientes.
Como vimos na breve caracterização
precedente de A República o
remédio de Platão
consiste numa operação
de enquadramento da sociedade
de forma que nesta não
venha a prosperar qualquer espécie
de individualismo.
Segundo Popper, coube a Hegel
proceder à reelaboração
moderna do totalitarismo platônico,
tendo se tornado o “elo
perdido” que permite identificar
as origens do totalitarismo em
nosso tempo. Como Platão,
Hegel irá ocupar-se em
sua obra de demonstrar que o
Estado é tudo e, o indivíduo,
nada. Sua doutrina mereceu de
Popper caracterização
e análise exaustivas.
Tal é, no entendimento
de Popper, o verdadeiro suporte
do marxismo. Na sua abordagem
de idéias de Marx, torna-se
patente o equívoco da
suposição, algo
difundida no Ocidente, de que
o bolchevismo corresponderia
a uma distorção
do “humanismo” de
Marx. Popper demonstra que Marx
apóia-se numa consideração
apresentada como sendo resultante
da experiência histórica
mas que, de fato, não
passa de um determinismo sem
qualquer suporte científico.
No livro estão considerados
ainda o economicismo, a luta
de classes, a teoria de que o
Estado é uma espécie
de comitê da classe dominante,
o advento do socialismo, a revolução
social e o relativismo moral.
Finalmente, Karl Popper repõe
em seu devido lugar o papel da
história. Nesse particular,
cumpre ter presente que sua crítica
ao que denomina de historicismo
tem em vista a suposição
de que haveria determinismos
históricos. Na tradição
anglo-saxônica o emprego
do termo não induz a equívocos,
o mesmo entretanto não
ocorrendo na tradição
latina. Nos países latinos
há uma longa tradição
historicista que consiste no
inventário dos valores
que caracterizam a cultura ocidental,
justamente o que Miguel Reale
denominou de historicismo
axiológico. Popper
vale-se justamente dessa espécie
de historicismo ao reivindicar
para a sociedade aberta aqueles
princípios que se fundam
no valor da pessoa humana, uma
das características distintivas
de nossa civilização.
Embora na tradução
não coubesse adotar outro
termo, cumpre levar em conta
o sentido em que o emprega e
de que tradição
se louva para fazê-lo.
A Sociedade Aberta e Seus Inimigos inicia um ponto de inflexão
a partir do qual a doutrina liberal encontrou o caminho que o levaria, nas
décadas seguintes, a impor ao comunismo totalitário uma derrota
que se espera seja definitiva.
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