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Sistema totalitário, de
Hannah Arendt
Em 1951, Hannah Arendt começou
a publicar As origens do
totalitarismo, em três
tomos, dedicando o primeiro ao
anti-semitismo, o segundo ao
imperialismo e o terceiro ao
totalitarismo propriamente dito.
Deste último promoveu
reedições corrigidas
e ampliadas em 1958 e 1966. Tornou-se
praxe publicá-lo de modo
autônomo com o título
de O sistema totalitário.
Arendt retoma a idéia
muito difundida de que a revolução
industrial criara uma sociedade
de massas e através de
análises sociológicas
minuciosas, identifica as relações
entre os movimentos totalitários
europeus e as massas. Refutando
as crenças estabelecidas
de que a ascensão da massa
seria produto da igualdade crescente
das condições sociais
sob o capitalismo, Arendt logra
estabelecer a sua característica
essencial.
Assim escreve:
“Na verdade, as massas se desenvolvem a partir dos fragmentos de uma
sociedade altamente atomizada, cuja estrutura competitiva, e a solidão
daí resultante, só é limitada pela circunstância
de pertencer a uma classe. A principal característica do homem de massa
não é a brutalidade ou o atraso mental, mas o isolamento e ausência
de relações sociais normais. Estas massas provêm de uma
sociedade de classes cravadas de cisões que fortalecem o sentimento
nacionalista: é pois natural que em seu desespero inicial se tenham
inclinado por um nacionalismo particularmente violento...”(O sistema
totalitário. Tradução francesa com base na edição
de 1966, Paris, Editions du Seuil, 1972, p. 40).
Essa massa atomizada e dispersa,
aparentemente amorfa e alheia às
estruturas políticas que
a democratização
do sistema representativo davam
nascimento, é que seria
atraída pelos movimentos
totalitários da Europa.
Chegado ao poder, todo o empenho
do totalitarismo há de
consistir em transformar todas
as camadas sociais em simples
massa. Por esse expediente conseguirá quebrar
a solidariedade formada historicamente
no seio das comunidades. Estas
irão transformar-se em
massa atomizada, manobrável
e mobilizável para impedir
o estabelecimento de qualquer
forma de pluralismo. Partido único
e aparelho repressor completam
o quadro.
Eis como Arendt apresenta a questão:
“A atomização do conjunto da sociedade soviética
foi obtida graças ao uso hábil de expurgos repetidos que precediam
invariavelmente a liquidação efetiva dos grupos. A fim de destruir
todos os laços sociais e familiares, os expurgos são conduzidos
de forma a ameaçar de igual modo acusado e parentes mais próximos.
Conseqüência da simples e engenhosa técnica da “culpabilidade
por associação”, desde que um homem é acusado,
seus antigos amigos se transformam nos inimigos mais encarniçados; para
salvar a própria existência, tornam-se delatores e não
se cansam de corroborar, por suas denúncias, as inexistentes provas
contra os acusados; tal é, e evidentemente, a única maneira
de provar que são dignos de confiança. Retrospectivamente, tratam
de provar que sua relação ou amizade com o acusado não
era senão um pretexto para espioná-lo e denunciá-lo como
sabotador, trostsquista, agente estrangeiro ou fascista. Desde que o mérito “se
julga pelo número de denúncias de camaradas próximos”, é evidente
que a mais elementar prudência exige que se evite todo contato pessoal,
se isto é possível: não se trata de impedir que descubram
seus pensamentos secretos, mas sobretudo de eliminar (na hipótese quase
certa dos problemas que se seguirão) todas as pessoas que poderiam ter
não apenas um interesse banal em denunciá-lo, mas também
uma necessidade irresistível de provocar sua ruína, simplesmente
porque sua própria vida estaria em perigo. Em suma, foi levando a aplicação
dessa técnica, às últimas conseqüências, que
os dirigentes bolchevistas conseguiram criar uma sociedade atomizada como jamais
se tinha visto antes...”(ed. cit., p. 46).
Quanto às dimensões
desse fenômeno, Arendt
avança a seguinte hipótese: “Às
vítimas, estimadas de
9 a 12 milhões, do primeiro
plano qüinqüenal (1928-1933),
convém acrescentar as
vítimas dos grandes expurgos
que alcançam cerca de
3 milhões de execuções
e de 5 a 9 milhões de
prisões e deportações
(Cf. a importante introdução
de Robert C. Tucker, ‘Stalin,
Bukarin e a história enquanto
conspiração’, à nova
edição das atas
do processo de Moscou de 1938, O
processo do grande expurgo,
Nova Iorque, 1965). Mas todas
estas estimativas parecem inferiores às
cifras reais. Elas não
levam em consideração
as execuções em
massa das quais não se
sabia nada até que ‘as
forças de ocupação
alemãs descobriram na
vila de Vinitsa uma fossa comum
contendo os corpos de milhares
de pessoas executadas em 1937
e 1938’(Cf. John A. Armstrong. A
política do totalitarismo.
O Partido Comunista da União
Soviética de 1934 a nossos
dias, Nova Iorque, 1961, p. 65
e seguintes). É desnecessário
enfatizar que esta descoberta
recente faz com que os sistemas
nazista e bolchevista, mais que
antes, apareçam como variantes
do mesmo modelo.”
A hipótese de Arendt de
que o totalitarismo se sustentaria
na quebra da solidariedade entre
as pessoas encontrou sua comprovação
empírica no fato de que
o único movimento surgido
em países totalitários
que chegou de fato a ameaçar
a sorte do regime se haja intitulado
de Solidariedade. Na
Polônia foram reestruturados
os laços sociais e as
pessoas reconquistaram a identidade.
O totalitarismo viu-se, assim,
atacado em sua base fundamental.
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