include '../include/menu.php'?>
|
|
Dicionário das Obras
Básicas da
Cultura Ocidental
Antonio Paim
Índice: a - b - c - d - e - f - g - h - i - j - k - l - m - n - o - p - q - r - s - t - u - v - x - w - z
(O) Segundo tratado do governo
civil, de John Locke
São dois os tratados acerca do governo civil, da autoria de John Locke.
O primeiro consiste numa refutação da tese aventada por Robert
Filmer, no livro Patriarca (1680), segundo a qual a origem do poder
dos reis provém da circunstância de que correspondem à descendência
de Adão. O segundo desenvolve a doutrina daquilo que seria a autêntica
origem do poder, isto é, o governo representativo. Tornou-se, portanto,
o marco inicial de fundação da doutrina liberal.
Acontece que o livro tem uma história interessante. Tudo indica que tenha
circulado no seio da elite em forma manuscrita na década de oitenta, desde
que se admite Locke haja assumido a liderança do movimento cujo desfecho
seria a Revolução Gloriosa de 1688, a partir de 1683, com a morte
de Lord Shafsterbury. Em 1885 assume o poder Jaime II, católico, que era
rei da Escócia e mais uma vez nuvens negras, ameaçadoras de reinício
da guerra civil, pairam sobre a Inglaterra.
Entretanto, a primeira impressão (1690) apareceu sem o nome do autor.
Em vida, Locke nunca permitiu a inclusão entre as obras de sua autoria,
embora se tratasse de fato incontroverso. Por isto mesmo, a primeira edição
com indicação do autor somente ocorre em 1714 (dez anos depois
da morte de Locke). A circunstância talvez se explique por ter o movimento
de 1688 deposto o rei, sem afetar a Casa Reinante, porquanto o poder foi entregue à filha
protestante de Jaime II. Ainda que, casada com Guilherme de Orange, rei da Holanda,
este haja acabado por ser proclamado rei da Inglaterra, quando em 1694, tem lugar
o falecimento da rainha (Maria II). Todos entendiam que a monarquia era um dos
esteios da estabilidade política do país, notadamente por ser muito
recente a experiência de sua abolição (entre 1649, quando
se dá a execução do rei Carlos I, e 1660, restauração
devida sobretudo à dificuldade em substituir a Cromwell, falecido em
1658). Tenha-se presente que Locke vivia exilado na Holanda e regressou à Inglaterra
no mesmo navio que trouxe os novos governantes.
A guerra civil, de grande intensidade entre 1642 e 1646, além da questão
religiosa, revestia-se de aspecto político. Carlos I entrara em choque
aberto com o Parlamento. Mas, depois de sua execução, pelo fato
de que as atribuições daquela instituição não
se achassem perfeitamente definidas, o próprio Cromwell acabou por fechá-lo,
o que certamente envolvia uma grande contradição na medida em que
a luta que liderava contra o monarca visava assegurar a sua sobrevivência.
No Segundo Tratado, Locke apresenta uma formulação teórica
acerca do seu surgimento que, por si só, já fixa o rumo da solução
do problema que a todos preocupava (a questão das atribuições).
Como se sabe, Hobbes havia posto em circulação a idéia de
que, antes de organizar-se em sociedade, os homens viveriam no chamado “estado
de natureza”, em guerra uns com os outros, acabando por impor-se a autoridade
governamental.
Locke aceita a idéia de “estado de natureza” mas apresenta-a
de forma muito diferente, consoante se pode ver da citação a seguir.
“O fim capital e principal em vista do qual os homens se associam nas repúblicas,
e se submetem aos governos, é a conservação de sua propriedade” (parágrafo
124). No estado de natureza, carecia o homem de certas condições
para lograr semelhante objetivo, notadamente as seguintes: 1ª) “uma
lei estável, fixada, conhecida, que um consentimento geral aceite e reconheça
como critério do bem e do mal e como medida comum para estatuir sobre
todos os deferendos”; 2ª) “um juiz conhecido de todos o imparcial,
que seja competente para estatuir sobre todos os deferendos segundo a lei estabelecida”;
e, 3ª) “em apoio da decisão, falta sempre a potência
para a impor quando ela é justa e colocá-la em execução
da forma devida”. Em vista disto, o homem renuncia aos poderes de que dispunha – o
de fazer tudo que julgasse conveniente para sua própria conservação,
nos limites autorizados pela lei natural, e o de punir infrações
cometidas contra a mesma lei natural – passando a atribui-los à sociedade,
mais precisamente, ao poder legislativo, que é o poder por excelência
da sociedade.
Para que a sociedade civil corresponda à expectativa dos que renunciam
ao estado de natureza, deve preencher as condições de que carecia
este último. Assim, escreve: “Quem quer que detenha o poder legislativo,
ou supremo, de uma sociedade política, deve governar em virtude de leis
estabelecidas e permanentes, promulgadas e conhecidas do povo, e não em
decorrência de decretos improvisados; deve governar por intermédio
de juízes íntegros e imparciais, que resolvam os deferendos em
conformidade com as leis; não deve utilizar a força da comunidade,
no interior, senão para assegurar a aplicação daquelas leis
e, no exterior, somente para prevenir ou reparar ataques do estrangeiro e manter
a comunidade ao abrigo das incursões e da invasão. Tudo isto não
deve ter em vista nenhum outro fim além da paz, a segurança e o
bem público do povo”. (Two treatises of government. Introdução
e notas de Peter Laslett, Londres, Cambridge University Press/Mentor Book, 1965,
p. 399; § 131).
Segundo Locke essa conclusão impõe-se a partir da simples evidência
de que “não se poderia atribuir à criatura racional a intenção
de mudar de estado para achar-se em pior situação”.
As premissas mais gerais para semelhante colocação haviam sido
estabelecidas no Primeiro Tratado, que, consoante se indicou, refuta
ao Patriarcha (1680), de Robert Filmer, devendo ter sido elaborado nesse
mesmo ano. Para Filmer, nenhum homem nasce livre, nem mesmo os príncipes,
salvo aquele ou aqueles que, em virtude de direito divino, são herdeiros
legítimos de Adão. A tese se completa pela afirmativa de que todo
governo é monarquia absoluta. Locke se pergunta se seria cabível
admitir que Deus haja dado o mundo a Adão, se semelhante hipótese
concorda com o texto bíblico, e por essa via tratará de fixar o
que o homem recebeu de próprio, do Criador, e o que recebeu em comum com
todos os homens.
Em seu estado de natureza, o homem guarda apenas a propriedade de sua própria
pessoa, porquanto a terra e todas criaturas inferiores foram por Deus doadas
aos homens em comum – eis a conclusão do filósofo depois
de examinar detidamente a tese de Filmer. “A terra e tudo o que ela contém
são uma doação feita aos homens para seu entretenimento
e conforto. Todos os frutos que ela produz naturalmente e todas as bestas que
alimenta pertencem em comum à Humanidade, enquanto produção
espontânea da natureza; ninguém possui privativamente uma parte
qualquer, com exclusão do resto da Humanidade, quando estes bens apresentam-se
em seu estado natural; entretanto, como acham-se destinados ao uso pelo homem, é necessário
que exista algum meio segundo o qual possam ser apropriados, a fim de que indivíduos
determinados, quaisquer que sejam, possam deles servir-se ou tirar proveito” (§ 26).
Esse meio será o trabalho, através do qual o homem se apropria
de uma parte das terras comuns e adquire um indiscutível direito de propriedade. “Quando
Deus deu o mundo em comum a toda a Humanidade, ordenou ao homem que trabalhasse;
além disto, o homem via-se a tanto constrangido pela penúria de
sua condição. Deus e a razão lhe ordenavam que conquistasse
a terra, isto é, que a melhorasse no interessa da vida e, ao fazê-lo,
investisse qualquer coisa que lhe pertencesse, o seu trabalho. Quem quer que,
para obedecer a este mandamento divino, se tornasse dono de uma parcela de terra,
cultivando-a e semeando-a, acrescentava-lhe qualquer coisa que era sua propriedade,
que ninguém podia reivindicar ou tomar sem injustiça” (§ 32).
Assim, “o homem industrioso e dotado de capacidade racional, a quem o trabalho
devia servir de título”, tornava-se proprietário. A condição
da vida humana, que necessita do trabalho e dos materiais sobre os quais se exerça,
introduz forçosamente a propriedade privada. No que respeita à terra, “a
natureza regulou com acerto a medida do trabalho dos homens e das comodidades
da vida”. Ninguém, por seu trabalho, podia apropriar-se de toda
a terra. As possessões de cada um encontravam-se limitadas a proporções
bem reduzidas, “nas primeiras idades do mundo”.
A primeira premissa é pois a de que o trabalho, que é a única
coisa efetivamente inalienável que Deus deu ao homem – ao tempo
que o criou com necessidades materiais cujo atendimento requeriam a mobilização
dessa potencialidade ou capacidade de trabalho –, agregava-se a elementos
exteriores, tornando-os, por assim dizer, um prolongamento daquela propriedade
inalienável (o trabalho). Mais que isto, todos os produtos que ordinariamente
servem à vida retiram seu valor, basicamente, do trabalho. “Não
cabe espantar-se – escreve – como se faria talvez irrefletidamente,
pelo fato de que a propriedade do trabalho seja capaz de sobrepor-se à comunidade
da terra porquanto é o trabalho que dá a toda coisa seu valor próprio;
basta considerar a diferença existente entre uma parcela plantada com
fumo ou açúcar e uma parcela da mesma terra deixada indivisa, que
ninguém explora, para adquirir a convicção de que a melhoria
devida ao trabalho constitui a maior parte do valor. Acredito que proporia uma
avaliação bem modesta se dissesse que, entre os produtos da terra
que servem à vida do homem, nove décimos provêm do trabalho.
E se queremos avaliar devidamente os bens, da forma como se nos apresentam quando
deles nos servimos, e repartir as despesas que acarretaram entre a natureza,
de um lado, e o trabalho, de outro, veremos que é necessário referir,
na maioria dos casos, noventa e nove por cento às expensas exclusivas
do trabalho” (§ 40).
Nesse ponto da análise Locke estabelecerá uma segunda premissa
de grande relevância. A atividade produtiva dos homens exerce-se, nas circunstâncias
mais habituais, com vistas à obtenção de objetos perecíveis,
de pouca duração. Em relação aos excedentes do que
seria capaz de consumir, restava-lhes a alternativa de destrui-los – o
que seria estúpido e desonesto; doá-los a quem deles carecesse;
trocá-los por outros bens, aptos ainda a serem consumidos mas dotados
de maior capacidade de duração, ou, finalmente, intercambiá-los
como objetivos passíveis de durar infinitamente mas inadequados ao consumo,
como as pedras de adorno ou certos metais. Nas últimas hipóteses,
parece evidente que quem assim agisse a ninguém lesaria. Por essa forma,
a invenção da moeda deu aos homens a possibilidade de conservar
os acréscimos de propriedade resultantes de seu trabalho. “Como
o ouro e a prata, que são de pouca utilidade para a vida humana quando
comparados à alimentação, à vestimenta e aos meios
de transporte, tiram seu valor unicamente do consentimento das pessoas, que se
regula em grande parte pelo critério do trabalho, é evidente que
os homens aceitariam que a posse da terra comporta desproporções
e desigualdades... pois, com efeito, os homens elaboraram e adotaram um procedimento
que permite a cada um, legitimamente e sem causar dano, possuir mais do que pode
por si mesmo utilizar: pelo excedente, recebe ouro e prata, que podem ser entesourados
sem a ninguém lesar, desde que tais metais não se gastam nem se
deterioram entre as mãos de quem os possui. Esta repartição
desigual das posses particulares foi tornada possível pelos homens fora
dos laços da sociedade, sem contrato, apenas atribuindo um valor ao ouro
e à prata e convencionando tacitamente utilizar a moeda” (§ 50).
Eis como, na obra do grande pensador inglês, a propriedade e a riqueza
tornam-se altamente dignificantes. Em sua raiz encontra um elemento piedoso,
devoto, porquanto a propriedade decorre imediatamente da observância de
um mandamento divino. A par disto, o ascetismo protestante se entendia então
como capaz, por si mesmo, de engendrar a riqueza. John Wesley, uma das grandes
figuras do metodismo subseqüente a Locke, reconhecia que “onde quer
que se encontrem, os metodistas tornam-se diligentes e frugais; em conseqüência,
crescem os seus bens”. E embora a riqueza engendre vários perigos
para a religião, entre os quais sobressai o ócio, é de Wesley
o seguinte incitamento: “Não impeçamos as pessoas de serem
diligentes e fugazes. Exortemos os cristãos a ganhar e a poupar o quanto
possam, ou melhor, a enriquecer"” (Apud Max Weber, A ética
protestante e o espírito do capitalismo. Trad. francesa de Jacques
Chavy, 2ª ed., Paris, Plon, 1967, p. 242). Parece evidente, como sugere
Weber, que embora ao homem daquele período não restasse outra atitude
senão entregar-se de corpo e alma à obra na terra, para dignidade
e glória de Deus, sem pretender salvar-se, por essa via, o sucesso na
obra deveria corresponder a um indício de predestinação.
E a propriedade e a riqueza nada mais eram que sua resultante natural.
No liberalismo originário, cuja sistematização foi obra
de Locke, a classe proprietária é que se fazia representar no poder
legislativo, razão pela qual na constituição do corpo eleitoral,
nesse ciclo, exigia-se a posse de determinados bens de raiz ou certos níveis
de renda. A natureza desse que é o poder supremo da sociedade mereceu
de sua parte, na obra indicada, caracterização detalhada.
O legislativo não pode transferir a quem quer que seja a delegação
recebida nem modificar as leis promulgadas para atender a casos particulares
(“é necessário que a mesma regra se aplique ao rico e ao
pobre, ao cortesão favorecido e ao camponês”). Como a tarefa
que lhe incumbe não requer tenha existência permanente, nem seria
aconselhável que fosse incumbido de aplicar as leis por ele mesmo elaboradas,
constitui o poder executivo, com existência permanente, incumbido de exercer
o governo que há de subordinar-se à lei.
Embora não o refira como um poder, a necessidade de magistratura constituída
de juízes íntegros e independentes é enfatizada.(1) Locke
admitia ainda que as relações de determinada sociedade política
com as demais, isto é, as relações externas, exigiam um
outro poder autônomo, a que denomina de federativo. Finalmente, discute
a noção de prerrogativa, que define a autorização
de que desfruta o executivo para realizar certos atos, quando a lei for omissa
ou quando couber diversidade de interpretação, no interesse do
bem comum. (Ver também LOCKE).
(1) A
independência do Poder
Judiciário foi fixada,
na Inglaterra, pelo Act
of Settlement (Lei de
sucessão ao trono),
de 1701.
Voltar
|
|
|