Dicionário das Obras Básicas da
Cultura Ocidental

Antonio Paim

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Reflexões sobre a revolução em França, de Edmund Burke

Sendo um político liberal de destaque e acreditando firmemente na superioridade do sistema representativo ainda que sua existência, na época, estivesse circunscrita à Inglaterra, Edmund Burke ficou vivamente impressionado com o fato de que uma organização, de que sequer se tinha conhecimento, tivesse enviado moção de apoio à Assembléia Nacional Francesa e o documento fosse acolhido com grande alarde e interpretado como se refletisse o pensamento da opinião pública inglesa. Dispôs-se então a examinar de perto as opiniões sustentadas por aquela organização (denominava-se “Sociedade da Revolução”) e o fez em forma de cartas a “um jovem fidalgo de Paris, que lhe concedeu a honra de desejar conhecer sua opinião sobre os acontecimentos que então ocupavam, e ainda ocupam, a atenção de todos”. Era comum esse tipo de forma literária, em muitos casos inexistindo o suposto missivista. Na verdade, Burke, como afirma claramente, estava preocupado com o destino das instituições em seu próprio país. Estávamos em 1790. A revolução na França começara a 14 julho do ano anterior e adotara a forma do que passou a chamar-se de monarquia constitucional, por oposição ao absolutismo vigente no continente. Ainda não produzira todos os desdobramentos que Burke prenunciava. Mas como seu prognóstico viria a ser confirmado, no período subsequente o livro acabou obtendo grande acolhida.

Em agosto de 1792 seria abolida a monarquia e, no ano seguinte, a condenação à morte e execução do rei. Segue-se (de junho de 1793 a julho de 1794) a fase do terror, assim batizada pelo fato de que a guilhotina era acionada com intensidade crescente, sendo mortas apenas em Paris, nos dois últimos meses desse ciclo, 1.300 pessoas. Em 1795 aprova-se uma Constituição Republicana e instaura-se no país a verdadeira anarquia, ensejando o golpe de Estado desfechado por Napoleão em fins de 1799. De tudo isto resultou que se fixasse uma apreciação inteiramente negativa, tanto da Revolução Francesa como da idéia de democracia a que estava associada. Várias décadas se passaram até que aqueles acontecimentos pudessem ser avaliados de forma mais serena.

O mérito do texto de Burke reside no fato de ter sabido entrever o papel de determinadas instituições na manutenção e sobrevivência da sociedade civil. Preocupa-o inicialmente o fato de que a referida Sociedade da Revolução tivesse avançado a tese de que a legitimidade dos reis estivesse na dependência da escolha popular, sendo esta a circunstância da monarquia inglesa. Por essa razão, detém-se no exame detalhado das características da chamada Revolução Gloriosa de 1688, quando os ingleses depuseram um rei católico eestabeleceram que o monarca deveria obrigatoriamente pertencer à Igreja Anglicana. O país vivera praticamente todo um século de guerras civis e grande instabilidade pela presença de católicos na Casa Reinante quando a maioria da população convertera-se ao protestantismo. Burke insiste no fato de não ter havido descontinuidade na substituição de Jaime II, já que em seu lugar foi colocada a filha protestante. Tem em vista fixar o entendimento dos riscos que representam para a estabilidade social desconhecer o papel de determinadas tradições.

Tomando por base crítica que dirige à Assembléia Nacional Francesa consiste na subestimação da própria experiência de que dispunha o país, afirmando que embora a praxe de convocação da Cortes tivesse sido abandonada - e isto precisamente caracteriza a monarquia absoluta, a tradição precedente deveria ter sido retomada. Escreve: “A Constituição tinha sido suspensa antes de ter sido aperfeiçoada, mas os franceses possuíam os elementos de uma Constituição quase tão boa quanto poderiam desejar”. Ao invés disto, “preferiram agir como se nunca tivessem sido moldados em uma sociedade civil, como se pudessem tudo refazer a partir do nada”.
A partir dessa tese principal, Burke irá mostrar que a liderança da Revolução Francesa estava agindo como aprendizes de feiticeiro e ao abalar as instituições tradicionais, a começar da monarquia, desencadearam um processo completamente fora de controle. O desenrolar do acontecimentos iria comprovar a pertinência da observação. Afirma: “Eles encontraram seu castigo no seu próprio sucesso: leis não cumpridas tribunais destituídos; a indústria aniquilada e o comércio se extinguindo; imposto não pagos e, no entanto, o povo empobrecido; a Igreja pilhada sem que o Estado se beneficie com isto; a anarquia civil e militar transformada em constituição do reino; todas as coisas humanas e divinas sacrificadas ao ídolo do crédito público, cuja conseqüência é a bancarrota nacional; e para coroar tido isto, o papel moeda emitido por um poder novo, precário e titubeante, os desacreditados papéis de uma fraude empobrecida e de uma rapina reduzida à mendicância, tais notas apresentadas como moeda legal que pode sustentar um império, ao invés das duas grandes espécies reconhecidas que sempre representaram o crédito convencional da humanidade e que desapareceram para se esconderem na terra de onde elas vieram, quando o princípio da propriedade, do qual elas são as criaturas e os representantes, foi sistematicamente destruído”.

Na enumeração precedente estão apontadas as conseqüências, isto é, a anarquia em lugar da ordem legal. Mas também os institutos que sustentam a sociedade, no exame dos quais deter-se-á pormenorizadamente.

No seu entendimento,  a religião é a base da sociedade. Ao instituir o confisco da propriedade das ordens religiosas, a nova liderança francesa atentou contra dois dos mais importante sustentáculos da vida social. No caso particular da propriedade, acrescenta o papel que incumbe à elite proprietária, como maior interessada na estabilidade. Naturalmente, insiste, a sociedade não pode limitar-se a conservar, devendo dispor de mecanismos que propiciem a mudança. Mas mesmo esta tem de provir de instituições consagradas.

Eis como apresenta a questão: “Conservar e reformar ao mesmo tempo são coisas bem diferentes. Para se conservar as partes úteis de uma velha instituição, e acomodar aquilo que acrescentamos àquilo que conservamos, é necessário um espírito vigoroso, uma atenção perseverante e contida. Um poder de comparar e combinar as coisa entre si, e recursos de uma inteligência fértil em expedientes. É preciso lutar contra as forças combinadas dos  defeitos opostos, contra a rotina que rejeita todo melhoramento e a frivolidade que se fatiga e se desgosta de tudo aquilo que possui”. Contra o argumento de que este seria um caminho demorado, mostra os resultados da pressa com exemplos colhidos na própria França.

O livro contém ainda uma minuciosa análise do primeiro texto constitucional proveniente da Assembléia Nacional Francesa.

Esta seria a conclusão: “Estaria eu tão fora de propósito que não conseguiria perceber, no trabalho incansável dessa Assembléia, nada que seja merecedor de algum elogio? Não nego que no meio de uma infinidade de violências e de extravagâncias algum bem possa ter sido feito. Os que tudo destroem não poderão deixar e destruir algum abuso que existisse, da mesma forma como os que a tudo refazem nova não podem deixar de fazer algum bem. Porém, para dar-lhe crédito pelo que fizeram em virtude da autoridade que usurparam, ou para perdoar os crimes pelos quais obtiveram tal autoridade, deve-se mostrar que as mesma coisas não poderiam ter sido obtidas sem que fosse produzia tal revolução.” (Ver também BURKE, Edmund).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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