Reflexões sobre a
revolução em
França, de Edmund
Burke
Sendo um político liberal de destaque e acreditando firmemente na superioridade
do sistema representativo ainda que sua existência, na época, estivesse
circunscrita à Inglaterra, Edmund Burke ficou vivamente impressionado
com o fato de que uma organização, de que sequer se tinha conhecimento,
tivesse enviado moção de apoio à Assembléia Nacional
Francesa e o documento fosse acolhido com grande alarde e interpretado como se
refletisse o pensamento da opinião pública inglesa. Dispôs-se
então a examinar de perto as opiniões sustentadas por aquela organização
(denominava-se “Sociedade da Revolução”) e o fez em
forma de cartas a “um jovem fidalgo de Paris, que lhe concedeu a honra
de desejar conhecer sua opinião sobre os acontecimentos que então
ocupavam, e ainda ocupam, a atenção de todos”. Era comum
esse tipo de forma literária, em muitos casos inexistindo o suposto missivista.
Na verdade, Burke, como afirma claramente, estava preocupado com o destino das
instituições em seu próprio país. Estávamos
em 1790. A revolução na França começara a 14 julho
do ano anterior e adotara a forma do que passou a chamar-se de monarquia constitucional,
por oposição ao absolutismo vigente no continente. Ainda não
produzira todos os desdobramentos que Burke prenunciava. Mas como seu prognóstico
viria a ser confirmado, no período subsequente o livro acabou obtendo
grande acolhida.
Em agosto de 1792 seria abolida a monarquia e, no ano seguinte, a condenação à morte
e execução do rei. Segue-se (de junho de 1793 a julho de 1794)
a fase do terror, assim batizada pelo fato de que a guilhotina era acionada com
intensidade crescente, sendo mortas apenas em Paris, nos dois últimos
meses desse ciclo, 1.300 pessoas. Em 1795 aprova-se uma Constituição
Republicana e instaura-se no país a verdadeira anarquia, ensejando o golpe
de Estado desfechado por Napoleão em fins de 1799. De tudo isto resultou
que se fixasse uma apreciação inteiramente negativa, tanto da Revolução
Francesa como da idéia de democracia a que estava associada. Várias
décadas se passaram até que aqueles acontecimentos pudessem ser
avaliados de forma mais serena.
O mérito do texto de Burke reside no fato de ter sabido entrever o papel
de determinadas instituições na manutenção e sobrevivência
da sociedade civil. Preocupa-o inicialmente o fato de que a referida Sociedade
da Revolução tivesse avançado a tese de que a legitimidade
dos reis estivesse na dependência da escolha popular, sendo esta a circunstância
da monarquia inglesa. Por essa razão, detém-se no exame detalhado
das características da chamada Revolução Gloriosa de 1688,
quando os ingleses depuseram um rei católico eestabeleceram que o monarca
deveria obrigatoriamente pertencer à Igreja Anglicana. O país
vivera praticamente todo um século de guerras civis e grande instabilidade
pela presença de católicos na Casa Reinante quando a maioria da
população convertera-se ao protestantismo. Burke insiste no fato
de não ter havido descontinuidade na substituição de Jaime
II, já que em seu lugar foi colocada a filha protestante. Tem em vista
fixar o entendimento dos riscos que representam para a estabilidade social desconhecer
o papel de determinadas tradições.
Tomando por base crítica que dirige à Assembléia Nacional
Francesa consiste na subestimação da própria experiência
de que dispunha o país, afirmando que embora a praxe de convocação
da Cortes tivesse sido abandonada - e isto precisamente caracteriza a monarquia
absoluta, a tradição precedente deveria ter sido retomada. Escreve: “A
Constituição tinha sido suspensa antes de ter sido aperfeiçoada,
mas os franceses possuíam os elementos de uma Constituição
quase tão boa quanto poderiam desejar”. Ao invés disto, “preferiram
agir como se nunca tivessem sido moldados em uma sociedade civil, como se pudessem
tudo refazer a partir do nada”.
A partir dessa tese principal, Burke irá mostrar que a liderança
da Revolução Francesa estava agindo como aprendizes de feiticeiro
e ao abalar as instituições tradicionais, a começar da monarquia,
desencadearam um processo completamente fora de controle. O desenrolar do acontecimentos
iria comprovar a pertinência da observação. Afirma: “Eles
encontraram seu castigo no seu próprio sucesso: leis não cumpridas
tribunais destituídos; a indústria aniquilada e o comércio
se extinguindo; imposto não pagos e, no entanto, o povo empobrecido; a
Igreja pilhada sem que o Estado se beneficie com isto; a anarquia civil e militar
transformada em constituição do reino; todas as coisas humanas
e divinas sacrificadas ao ídolo do crédito público, cuja
conseqüência é a bancarrota nacional; e para coroar tido isto,
o papel moeda emitido por um poder novo, precário e titubeante, os desacreditados
papéis de uma fraude empobrecida e de uma rapina reduzida à mendicância,
tais notas apresentadas como moeda legal que pode sustentar um império,
ao invés das duas grandes espécies reconhecidas que sempre representaram
o crédito convencional da humanidade e que desapareceram para se esconderem
na terra de onde elas vieram, quando o princípio da propriedade, do qual
elas são as criaturas e os representantes, foi sistematicamente destruído”.
Na enumeração precedente estão apontadas as conseqüências,
isto é, a anarquia em lugar da ordem legal. Mas também os institutos
que sustentam a sociedade, no exame dos quais deter-se-á pormenorizadamente.
No seu entendimento, a religião é a base da sociedade. Ao
instituir o confisco da propriedade das ordens religiosas, a nova liderança
francesa atentou contra dois dos mais importante sustentáculos da vida
social. No caso particular da propriedade, acrescenta o papel que incumbe à elite
proprietária, como maior interessada na estabilidade. Naturalmente, insiste,
a sociedade não pode limitar-se a conservar, devendo dispor de mecanismos
que propiciem a mudança. Mas mesmo esta tem de provir de instituições
consagradas.
Eis como apresenta a questão: “Conservar e reformar ao mesmo tempo
são coisas bem diferentes. Para se conservar as partes úteis de
uma velha instituição, e acomodar aquilo que acrescentamos àquilo
que conservamos, é necessário um espírito vigoroso, uma
atenção perseverante e contida. Um poder de comparar e combinar
as coisa entre si, e recursos de uma inteligência fértil em expedientes. É preciso
lutar contra as forças combinadas dos defeitos opostos, contra a
rotina que rejeita todo melhoramento e a frivolidade que se fatiga e se desgosta
de tudo aquilo que possui”. Contra o argumento de que este seria um caminho
demorado, mostra os resultados da pressa com exemplos colhidos na própria
França.
O livro contém ainda uma minuciosa análise do primeiro texto constitucional
proveniente da Assembléia Nacional Francesa.
Esta seria a conclusão: “Estaria eu tão fora de propósito
que não conseguiria perceber, no trabalho incansável dessa Assembléia,
nada que seja merecedor de algum elogio? Não nego que no meio de uma infinidade
de violências e de extravagâncias algum bem possa ter sido feito.
Os que tudo destroem não poderão deixar e destruir algum abuso
que existisse, da mesma forma como os que a tudo refazem nova não podem
deixar de fazer algum bem. Porém, para dar-lhe crédito pelo que
fizeram em virtude da autoridade que usurparam, ou para perdoar os crimes pelos
quais obtiveram tal autoridade, deve-se mostrar que as mesma coisas não
poderiam ter sido obtidas sem que fosse produzia tal revolução.” (Ver
também BURKE, Edmund).
Voltar