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Dicionário das Obras
Básicas da
Cultura Ocidental
Antonio Paim
Índice: a - b - c - d - e - f - g - h - i - j - k - l - m - n - o - p - q - r - s - t - u - v - x - w - z
(O) Ópio
dos intelectuais,
de Raymond Aron
O Ópio dos intelectuais,
de Raymond Aron, apareceu em
1955 e representou uma tomada
de posição diante
da influência marxista
na França, marcando
também um certo direcionamento
da obra do autor. Nos anos
trinta, preparou-se para especializar-se
em filosofia da história,
com o que se habilitava a alcançar
um lugar de destaque no magistério.
Veio a guerra. Atuou na resistência.
Dirigiu um jornal que tinha
o propósito de manter
elevada a moral dos franceses
perante o ocupante alemão.
Finda esta, retornou ao magistério
mas logo se deu conta de que
a derrota da ameaça
nazista não significava
tranqüilidade para a Europa
diante do expansionismo soviético.
Vivendo no meio intelectual,
considerando-se, como todos
os outros, homem de esquerda,(1) impressionou-o
vivamente o caráter
religioso que assumira a adesão
ao marxismo, o que, no seu
entendimento, acabaria predispondo
a sociedade francesa à capitulação
perante a agressividade dos
russos, a exemplo do que tivera
oportunidade de assistir em
relação à Alemanha
hitlerista.
O Ópio dos intelectuais procura
desvendar as razões
pelas quais uma proposta aparentemente
laica, como a marxista, pudera
transformar-se num dogma milenarista.
Não teve maior impacto
sobre a intelectualidade francesa
e serviu sobretudo para que
o autor concebesse um programa
de trabalho destinado a mostrar
a fragilidade e a inconsistência
do marxismo, que executou ciosamente
a partir de então e
nas décadas seguintes.
De todos os modos, abriu a
pensadores independentes, em
toda parte do mundo, a possibilidade
de dissentir dos comunistas
sem cair nas armadilhas do
anticomunismo profissional
que então chegou a grassar,
nos marcos da guerra fria entre
o campo ocidental e o império
soviético.
O caminho através do qual
trata de desvendar o caráter
religioso da adesão ao
marxismo, consiste em examinar
os grandes mitos em torno dos
quais se estrutura aquela adesão,
o “mito da esquerda”,
o “mito do proletariado” e
o “mito da Revolução”.
No tocante ao primeiro mito,
Aron transcreve esta definição
do homem de esquerda adotada
pela revista católica Esprit: “ ...
o homem de esquerda – pelo
menos aos olhos dos franceses – é aquele
que não dá sempre
razão à política
de seu país e que sabe
que não existe nenhuma
garantia mística de que
continue justa no futuro; é um
homem que protesta contra as
investidas coloniais; é um
homem que não admite atrocidade
alguma, seja ela exercida contra
o inimigo seja ela exercida em
represália. Pode-se falar
em esquerda lá onde não
embotou este simples sentimento
de solidariedade humana para
com os oprimidos e os sofredores,
que fez outrora multidões
européias e americanas
levantarem-se em defesa de Sacco
e Vanzetti”.(2)
Levando em conta a subserviência
da intelectualidade francesa
perante o imperialismo soviético,
pergunta Aron: será de
esquerda a pessoa para quem a
União Soviética
tem sempre razão? Aqueles
que reclamam a liberdade para
todos os povos da Ásia
e da África mas não
para os poloneses ou alemães
do Leste? Conclui: “A linguagem
da esquerda histórica
talvez triunfe em nossa época:
o espírito da esquerda
eterna morre quando a própria
piedade só funciona em
mão única”.
Segundo a doutrina marxista,
o capitalismo criaria um polo
da pobreza e outro da riqueza,
cada vez mais distanciados. No Capital,
Marx “provou” que
ocorreria não só a
pauperização relativa
do proletariado, isto é,
confrontado o padrão de
vida da classe mais baixa com
o da classe mais alta, mas igualmente pauperização
absoluta, vale dizer, presenciaríamos
miséria crescente. Por
essa razão, os proletários
nada tinham a perder senão
os próprios grilhões,
enterrando para sempre o capitalismo
mediante uma revolução.
Os socialistas alemães
preferiram o curso histórico
concreto e foram arquivando sucessivamente
as previsões marxistas,
inclusive a revolução,
embora não renegassem
totalmente a doutrina. Na França,
entretanto, a “bíblia” do “profeta” Carlos
Marx era intocável. De
modo que o proletariado continuava
sendo encarado como entidade
mitológica ao invés
de um agrupamento social em vias
de desaparecimento, se o considerássemos
apenas do ângulo focalizado
por Marx, isto é, o padrão
de vida, já que se revelava
crescente. A argumentação
de Aron segue essa linha se bem
que haja sentido, mais ou menos
na mesma época, a necessidade
de aprofundar o entendimento
do que seria de fato a sociedade
industrial, tema a que dedicou
os seus cursos na Universidade
e também um conjunto de
livros.
Na análise do mito da
Revolução, Aron
comprova que seus partidários
acabam inexoravelmente por aderir
ao culto fascista da violência.
Acontece que, segundo toda evidência,
pondera, “o reino do homem
não é certamente
o reino da guerra”. Lembra
que Herodoto já dizia
que “nenhum homem é bastante
desprovido de razão para
preferir a guerra à paz”.
Dessa análise conclui
que, agora, o proletariado é o
salvador. Por paradoxal que pareça,
a ressurreição
das crenças seculares,
sob uma forma que se apresenta
como “científica”,
seduz enormemente aos espíritos
que, por vontade própria,
privaram-se da fé tradicional.
Nessa obra, Aron trata ainda
da aproximação
entre o marxismo e a Igreja Católica.
Na época (década
de cinqüenta), a circunstância
parecia limitada ao fenômeno,
que analisa, dos “padres
operários”. Na arenga
que adotam, recusam a hipótese
de que estariam abandonando o
cristianismo e substituindo-o
pelo marxismo. Aron cita o seguinte: “Trazemos
em nossa carne os dramas do proletariado
e nem uma só das nossas
preces e das nossas eucaristias é alheia
a esses dramas. ... Nossa fé,
que foi um motor poderoso para
esta comunhão carnal,
com nossa classe operária,
com isso em nada fica diminuída
ou maculada. ... sem condições
materiais mínimas nenhuma
vida espiritual é possível... um
homem que está com fome
não pode crer na bondade
de Deus, um homem que está sendo
oprimido não pode crer
em sua onipotência”.
Semelhante catilinaria deixa
sem explicação
a própria sobrevivência
do cristianismo, já que
as sociedades precedentes ao
capitalismo caracterizavam-se
justamente pela pobreza generalizada.
Mais tarde, o Padre Arupe, que
foi Provincial da Ordem dos Jesuítas,
função que seria
batizada de “Papa Negro” – em
face da cor da batina usada pela
agremiação mas
também do poder que desfrutava
e da irradiação
alcançada no mundo – colocou-a
abertamente ao serviço
da política exterior soviética,
como o documentaria aquele sacerdote
que foi seu secretário,
Malach Martin, no livro Os
jesuítas. A Companhia
de Jesus e a traição à Igreja
Católica (tradução
brasileira, Record, 1989). Na
América Latina, tivemos
o fenômeno da teologia
da libertação,
francamente inspirada no marxismo, de
persistência inusitada
posto que sobreviveu ao fim do
comunismo.
A propósito desta simbiose
vale transcrever a análise
e as ponderações
de Roberto Campos, na apresentação
brasileira de O ópio
dos intelectuais (editora
UnB, 1980), embora se trate de
transcrição algo
extensa, efetivada a seguir:
“Essa empatia entre cristianismo e marxismo deixará de parecer
estranha se analisarmos suas semelhanças formais. Ambos começaram
como ideologia dos oprimidos, acenando-se com uma visão quiliástica
do futuro. Ambos procuraram usar o poder coercitivo do Estado, em favor da
Igreja, num caso, ou do Partido Comunista, no outro, não hesitando em
perseguir os dissidentes e os heréticos. Mas as semelhanças
não param aí. Os cristãos primevos acreditavam numa imediata “Parousia”,
isto é, o Segundo Advento de Cristo, trazendo a curto prazo, uma Nova
Era. Os marxistas primevos acreditavam numa revolução proletária
e na desintegração rápida do Capitalismo pelas suas contradições
internas: a taxa declinante de lucros e a pauperização. Ambas
as doutrinas somente tiveram êxito após fracassarem suas previsões – tanto
a da “Parousia” como a da Revolução Universal – e
ambas se tornaram corpos híbridos político-religiosos, como instrumento
de propagação do credo. Tal como os cristãos, os marxistas
desenvolveram um dogma – o materialismo dialético – pelo
qual os fatos históricos são lidos, e distorcidos, à luz
do determinismo histórico. O marxismo transformou um “esquema
de evolução” numa “história sacra”,
cujo milênio seria a sociedade sem classes. O Partido Comunista se autodesignou
delegado do proletariado, tornando-se portanto a Igreja dos novos fiéis,
completa com seu hagiológio e sua demonologia. Da mesma forma que o
Cristianismo, o Marxismo aspirou a ser uma Igreja Universal, e conheceu paralelamente
o frustrante desafio das seitas. O cisma iugoslavo e a grande heresia chinesa
reproduzem os movimentos da Reforma luterana e calvinista ou do reformismo
inglês, em que se combinaram revisionismo do dogma e impulsos nacionalistas.
Já o euro-comunismo se parece mais com os movimentos de ecumenismo e
secularização que sacodem o catolicismo moderno”.
Pondera, entretanto, “felizmente,
as semelhanças formais
acima descritas não elidem
uma incompatibilidade ontológica.
Ambas as doutrinas são
totais, no sentido de que inspiram
a existência inteira, mas
a fé cristã só foi
totalitária nas épocas
em que ignorou a autonomia da
vida profana, enquanto que o
comunismo é totalitário
na escolástica diária
e no comportamento político.
Mais fundamentalmente ainda,
como diz Aron: “O cristão
não pode jamais ser um
autêntico comunista, da
mesma forma que este não
poderia crer em Deus e no Cristo,
porque a religião secular,
animada por um ateísmo
fundamental, professa que o destino
do homem se cumpre todo sobre
a terra e na cidade. O cristão
progressista dissimula a si mesmo
esta incompatibilidade”.
(Ver também ARON,
Raymond)
(1) Nessa época,
Aron tentou integrar-se à militância
no Partido Socialista mas
não se adaptou e,
desde então,
embora assumisse francamente
a opção liberal,
preferiu não se filiar
a qualquer das organizações
partidárias ligadas àquela
vertente.
(2) Anarquistas
italianos emigrados que foram
executados em 1927, nos Estados
Unidos, envolvidos em conflito
onde morreram duas pessoas.
Como inexistissem provas
definitivas de sua autoria,
entendiam os opositores da
punição ter
pesado sobretudo a sua condição
de líderes sindicais.
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