Dicionário das Obras Básicas da
Cultura Ocidental

Antonio Paim

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Moral positiva, de Pierre Lafitte

Pierre Lafitte nasceu na França em 1823, tendo sido professor de matemática. Em 1892 seria nomeado professor de filosofia da ciência no Collège de France. Aderiu muito cedo ao positivismo de Augusto Comte. Essa doutrina era caudatária da hipótese de que, com o aparecimento da física moderna, abria-se o caminho à elaboração de uma doutrina da sociedade que culminaria com moral científica. Não tendo conseguido atrair para a sua doutrina o professorado da área científica, Comte acabaria procurando restaurar a religião, na esperança de lograr apoio para a reforma social que preconizava. Inspirando-se na Idade Média imaginava restaurar um Poder Espiritual capaz de eliminar a chamada "anarquia moderna". Essa inflexão provocaria uma cisão profunda no positivismo, entre os que somente aceitavam a filosofia da ciência e os que preferiam a chamada "religião da humanidade". Comte criara uma Igreja, com o respectivo Apostolado, Antes de morrer designou a Lafitte como seu sucessor e sacerdote da Igreja.(1) Caberia a Lafitte a tarefa de elaborar a moral positiva, preconizada por Comte. Faleceu em 1903, aos 80 anos de idade.

O livro de Pierre Lafitte chamou-se diretamente: Moral Positiva. Sua necessidade atual; seus caracteres fundamentais; suas principais aplicações e viria a merecer tradução brasileira (Rio de Janeiro, 1938).  Trata-se de um conjunto de conferências pronunciadas em 1878, coligidas por um dos participantes (Emile Antoine), revistas e ampliadas pelo autor antes de serem dadas à luz. O Apostolado não teve nenhuma participação na edição da tradução brasileira.(2)  O livro é interessante como demonstração do entendimento (melhor dito: do desentendimento) comteano da moral.

Lafitte define a moral como o "conjunto de regras universais, que servem à Humanidade para dirigir e aperfeiçoar a vida individual, doméstica e social". Antes de mais nada, cumpre ter presente que o estado positivo concebido por Comte deveria levar à constituição de pequenas unidades nacionais. Assim, escreve: "De acordo com Augusto Comte, é mister conceber a pátria nacional como uma Cidade preponderante com um território necessário à sua nutrição, no qual vive certo número de famílias, tendo antecedentes comuns e trabalhando para uma prosperidade comum. A Holanda, entre os diversos estados atuais, pode ser encarada como um tipo mais próximo deste padrão, suas dimensões são suficientes para a existência durável de um regime pacífico e industrial, regrado por uma fé demonstrável. Em que poderá consistir a utilidade das nações mais extensas, quando já não nos batermos no exterior para manter internamente um regime de opressão"? Na medida em que o sacerdócio da Humanidade esteja suficientemente amadurecido, seguir-se-á a decomposição das nacionalidades muito desenvolvidas e a concentração dos poderes legislativo e executivo. "Durante a transição, prossegue, caberá ao governo temporal manter a ordem e impedir todos os atentados contra a família e contra a propriedade". A França também não escapará desta lei!" - exclama. Vale dizer, subdividir-se-á em "pequenas pátrias".

Embora não o explicite, a marcha no sentido do estado positivo, consiste na eliminação progressiva da diferença entre direito e moral. As regras desta última serão obrigatórias mas a educação positiva fará com que sejam, cumpridas de bom grado.
Em matéria moral, o comtismo não se cansa de exaltar o passado. Foi a marcha da humanidade que constituiu as regras que o estado positivo preservará, limitando-se a retirar-lhe os fundamentos teológicos. A passagem de Moisés para Cristo introduz, "pela primeira vez, a idéia de progresso em moral". Nessa progressão, cabe destacar o papel do clero católico, cujo "devotamento social ..., durante treze séculos, fez, da maior parte de seus membros, verdadeiros cidadãos da Terra". As regras constantes do Decálogo resultam de longa evolução espontânea. Também a moral teológica tem o mérito de ter sido um meio de conservação dos progressos morais. Comte não revela a mesma simpatia pelo que determina de moral metafísica – isto é, da Época Moderna - que, a seus olhos, revelou-se "falsa, contraditória e anárquica". Finalmente, a sociedade tende espontaneamente para a moral positiva, ao consagrar, em nome da Humanidade, preceitos que se defendiam em nome de Deus. Tal evolução deu-se nos diversos planos da existência e assim se resume: pessoal, com o reconhecimento da importância da higiene; doméstica, no culto aos mortos e na família; cívica, no respeito à lei e na defesa da Pátria; e religiosa, no culto dos grandes homens. A moral positiva não passaria, portanto, da síntese de toda a evolução da humanidade nos estágios precedentes.

Concluído o escorço histórico, Lafitte diz que a moral positiva está elaborada na obra de Comte, cabendo apenas ensiná-la, segundo o princípio de que "a maneira de corrigir o que se mostra vicioso, arbitrário e egoísta é criar seres, individuais e coletivos, honestos razoáveis e devotados". Ao que acrescenta: "Não queremos, enfim, mudar o atual estado de coisas de um dia para o outro; a sociedade, felizmente, caminha mais ou menos por si mesma. O que procuramos é lenta e continuamente modificá-la, segundo diretrizes científicas demonstráveis, repelindo toda agitação perturbadora, que só serve para animar, quer nas instituições quer nos espíritos, uma retrogradação, já inexistente nos costumes". Trata-se, portanto, de criar o homem novo, postulando uma ficção científica que trouxe terríveis conseqüências ao longo do século XX.

Por que a ficção do homem novo tem para Comte uma base científica? Graças sobretudo à hipótese contida na obra Sobre as funções do cérebro (1825) de Franz Joseph Gall (1758-1828), onde se demonstra que a alma corresponde a um termo abstrato e que as funções cerebrais têm uma localização prévia na substância cinzenta. Graças a isto, a moral passou a dispor de uma base científica. Ainda que Gall não haja conseguido decompor as faculdades intelectuais e tenha insulado o cérebro dos sistemas vegetativo e nervoso, facultou a Comte "construir a teoria do cérebro e, sobre esta base sistemática fundar ciência moral".

O homem é tão (naturalmente) capaz de apego, veneração e bondade como é espontaneamente egoísta e ambicioso. "Graças à demonstração da existência dos sentimentos benévolos foi que o positivismo pôs em foco a questão principal: desenvolver o respeito tão seriamente comprometido pelo estado revolucionário". O princípio nuclear da moral positiva é apresentado nestes termos: "A veneração é a base de toda a hierarquia, de toda a nobre dependência, de todo o aperfeiçoamento. Se o homem não fosse um animal venerador, não teria sacerdócio, nem governo, nem sociedade e, portanto, não teria moral".

E logo adiante: "Amar os superiores é o começo da plena emancipação e do verdadeiro progresso moral, ponto de partida de todos os outros... O respeito é uma faculdade que a educação positivista cultivará e desenvolverá de modo especial".

Segue-se o programa que constitui o cerne da religião da humanidade: o culto dos grandes homens; a veneração dos fracos pelos fortes e o devotamento dos fortes aos fracos, segundo o mandamento fazer o bem pelo próprio bem. "As leis naturais não começam a existir só no dia em que são descobertas; são de todos os tempos. Eis o motivo pelo qual a Humanidade, assenhoreando-se do que lhe pertence, onde quer que o encontre, reivindica como seus todos os devotamentos que, desde o passado mais remoto, têm honrado a nossa espécie".

Estabelecida a base do que se poderia chamar apropriadamente de educação positiva, de que acabaria por resultar seres morais, Lafitte detém-se nas sanções da moral positiva, cuidando de eliminar-lhes todo caráter sobrenatural, circunscrevendo-se à expiação aqui mesmo na terra, com o propósito de desenvolver a responsabilidade pessoal, explicitando a legitimidade do recurso a meios extremos (confisco da propriedade, da liberdade e da própria vida) quando o repúdio da opinião pública ou da família não se revelarem suficientes; na consagração moral do positivismo, decorrência natural do culto da humanidade que os mortos representam, sendo portanto o Ser Supremo, de onde decorre o mandamento: os mortos governam os vivos; a teoria positiva do dever, correlacionada ao caráter social da ética positiva ("como todos os seres só têm o direito de sempre cumprir o dever, o problema da liberdade consiste em tornar esta norma cada vez mais espontânea") e, finalmente, o caráter religioso da moral positiva. O livro contém ainda uma parte denominada de "principais aplicações da moral positiva", onde recorre a exemplos dos princípios precedentemente apresentados, hauridos nos planos individual, doméstico e cívico. (Ver também MILL, John Stuart).


(1)  O Brasil figura entre os poucos países onde viria a ser criada a Igreja Positivista. Com a aceitação por Lafitte do cargo de professor no Collège de France, os brasileiros o excomungaram já que Comte proibia que seus aderentes ocupassem cargo oficial. A Igreja brasileira, que sobrevive até o presente, acabou ficando com a incumbência de administrar a Igreja Positivista da França.

(2) Ao excomungar Lafitte, o Apostolado Positivista promoveu a incineração pública de seus livros.

 

 

 

 

 

 

 

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