Moll Flanders, de Daniel
Defoe
A intenção moral
de Defoe ao escrever este livro é enfatizada
abertamente desde o início.
No "Prefácio do Autor",
simula ter recebido um manuscrito,
como era comum entre os novelistas.
Assinala achar-se "escrito
numa linguagem muito semelhante à de
qualquer prisioneiro de Newgate
e em nada recordava a de uma
humilde arrependida, como parece
ter sido mais tarde." Explica-se: "Se
uma mulher que se corrompeu na
juventude, ou, mais ainda, que é fruto
da devassidão e do vício,
deseja contar suas práticas
viciosas, descendo aos pormenores
das ocasiões e circunstâncias
que inicialmente a perverteram
e esmiuçando seus progressos
no mundo do crime, realizados
ao longo de três vintenas
de anos, é claro que
um escritor terá dificuldade
em tornar decentes suas memórias,
de forma a não ensejar,
especialmente aos leitores maldosos,
a ocasião de se voltarem
contra ele próprio".
Ainda que haja tomado as precauções
necessárias ao rever o
original, "para se relatar
a vida de uma corrupta e seu
arrependimento, é preciso
que se apresentem os trechos
menos inocentes com a mesma crueza
da história verídica,
até onde seja suportável,
a fim de que ilustre ou ressalte
o trecho do arrependimento que é com
certeza o melhor e o mais belo,
caso venha apresentado espirituosa
e vivamente".
Defoe foi um panfletário
temível a serviço
da destruição da
Igreja Anglicana, em nome da
seita puritana a que pertencia.
Quando se decide por dedicar-se
sobretudo à pregação
moral elabora um tratado com
este expressivo título: "Acerca
do uso e do abuso do leito matrimonial",
no qual, entre outras coisas,
defende a tese de que a libidinagem
do casal acaba por refletir-se
na aparência dos filhos,
cujos rostos tornam-se "cobertos
de pústulas e cheios de
manchas". Assim, atribuía
a acne que, com muita freqüência,
inferniza a vida de jovens adolescentes, à violação
de regras morais no seio da família.
O sucesso de Moll Flanders não
se deve entretanto à intenção
moral do autor mas à sua
força literária.
A personagem foi prostituta durante
doze anos, ladra profissional
outros doze anos, casou-se cinco
vezes (uma das quais com o próprio
irmão), finalmente apanhada é deportada
para a América onde passa
a viver honestamente, tendo alcançado
fortuna graças ao trabalho árduo.
Essa vida atribulada é descrita
com maestria. A maneira como
refere o processo de seu arrependimento
nada tem de piegas, tornando-se
de todo convincente.
O relato da prisão e do
julgamento de Moll Flanders é efetivado
com grande vivacidade. O roubo
que pretendia fazer não
chega a consumar-se. O dono da
loja inclina-se por perdoá-la
mas acaba presa. Seu passado
leva o júri a condená-la à morte.
Convenceu-se tratar-se de criatura
irrecuperável. Contando
na prisão com assistência
religiosa, é levada a
balancear sua vida e também
julgá-la com severidade.
Arrepende-se. Mas será que
não o fez por temor da
morte? Hipótese provável
quando teve oportunidade de ver
o pavor de outros condenados
no momento da execução.
O sofrimento por que passa é transmitido
com dramaticidade.
Por interferência de um
protetor, sua pena é transformada
em deportação para
a América. Reencontra
o último marido, que está preso
por ter sido levado ao crime
por ela mesma. Libertado, acompanha-a
no desterro. A reconstituição
da parte final da vida de Moll
Flanders, na pena de Defoe, não
se transforma em simples "happy
end" porquanto entremeada
pela angústia a que corresponde
confessar ao marido passagens
da vida que a mortificam. (Ver
também DEFOE, Daniel e SWIFT,
Jonathan).
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