Memórias Póstumas
de Brás Cubas, de
Machado de Assis
Brás
Cubas, como o Conselheiro Aires, é um
tipo humano que combina ceticismo
e uma certa melancolia mas sem
concessões à amargura,
na maioria dos casos. Pode-se
dizer que, no fundo, aceita sem
rebelar-se a crueza da vida.
Quando jovem, sua grande paixão
seria uma mulher de vida fácil. “...Marcela
não possuía a inocência
rústica, e mal chegava
a entender a moral do código.
Era boa moça, lépida,
sem escrúpulos, um pouco
tolhida pela austeridade do tempo,
que lhe não permitia arrastar
pelas ruas os seus estouvamentos
e berlindas; luxuosa, impaciente,
amiga do dinheiro e de rapazes.
Naquele ano, morria de amores
por um certo Xavier, sujeito
abastado e tísico – uma
pérola.” A batalha
pela conquista de Marcela é um
primor de criação
literária. Eis como descreve
o desfecho: “Teve duas
fases a nossa paixão,
ou ligação, ou
qualquer outro nome, que eu de
nomes não curo; teve a
fase consular e a fase imperial.
Na primeira, que foi curta, regíamos
o Xavier e eu, sem que ele jamais
acreditasse dividir comigo o
governo de Roma; mas, quando
a credulidade não pôde
resistir à evidência,
o Xavier depôs as insígnias,
e eu concentrei todos os poderes
na minha mão; foi a fase
cesariana. Era meu o universo;
mas, ai triste! não
era de graça, foi-me preciso
coligir dinheiro, multiplicá-lo,
inventa-lo.” No princípio,
o pai até que admitiu
os gastos. Restringiu-os em seguida
e acabou por assustar-se com
as dívidas que o rapaz
acumulava. Meteu-o à força
num navio e o mandou (inconsolável)
estudar em Coimbra. De volta,
muitos anos depois, num encontro
casual, depara-se com Marcela,
transformada numa mulher de “rosto
amarelo e bexiguento ... a doença
e uma velhice precoce destruíram-lhe
a flor das graças”.
Profundamente chocado, começa
a vasculhar o passado: “Não
era esta certamente a Marcela
de 1822; mas a beleza de outro
tempo valia uma terça
parte dos meus sacrifícios?
Era o que eu buscava saber, interrogando
o rosto de Marcela. O rosto dizia-me
que não; ao mesmo tempo,
os olhos me contavam que, já outrora,
como hoje, ardia nela a flama
da cobiça. Os meus é que
não souberam ver-lha;
eram olhos de primeira edição.”
O
balanço não será entretanto aprofundado. Brás Cubas
acaba salvo pelo vento: “Não há, às vezes, um certo
vento morno, não forte nem áspero, mas abafadiço, que
nos não leva o chapéu da cabeça, nem redemoinha nas saias
das mulheres, e todavia é ou parece ser pior que se fizesse uma ou outra
coisa, porque abate, afrouxa, e como que dissolve os espíritos? Pois
eu tinha esse vento comigo; e certo de que ele me soprava por achar-me naquela
espécie de garganta entre o passado e o presente, almejava por sair à planície
do futuro. O pior é que a sebe não andava.”
O
desenlace de seus amores com Virgília são encarados do mesmo
modo fleugmático. Tudo andava às mil maravilhas. Ia casar numa
família influente e, além da beldade, podia ganhar uma cadeira
no Parlamento e iniciar brilhante carreira política. “Então
apareceu o Lobo Neves, um homem que não era mais esbelto do que eu,
nem mais elegante, nem mais lido, nem mais simpático, e todavia foi
quem me arrebatou Virgília e a candidatura, em poucas semanas, com um ímpeto
verdadeiramente cesariano. Não precedeu nenhum despeito; não
houve a menor violência da família”. Sobrou-lhe apenas uma
vigília em meio ao sono, que não é atribuída ao
amor frustrado mas a “um despeitozinho agudo como ponta de alfinete;
o qual se desfez, com charutos, murros, leituras truncadas, até romper
a aurora, a mais tranqüila das auroras.”
Mais
tarde, Virgília, já casada, descobre ou redescobre o amor e tornam-se amantes.
Frequentando ao mesmo tempo a família, tudo indica que o marido de nada
suspeita até receber uma carta anônima e então diligencia
no sentido de afastar-se do Rio. A separação afigura-se dolorosa.
Mas eis que ... “Não a vi partir; mas à hora marcada senti
alguma coisa que não era dor nem prazer, uma coisa mista, alívio
e saudade, tudo misturado, em iguais doses. Não se irrite o leitor com
esta confissão. Eu bem que sei que, para tilitar-lhe os nervos da fantasia,
devia padecer um grande desespero, derramar algumas lágrimas e não
almoçar. Seria romanesco mas não seria biográfico. A realidade
pura é que eu almocei, como nos demais dias, acudindo ao coração
com as lembranças da minha aventura, e ao estomago com os acepipes de
M. Prudhon...”
Talvez no último capítulo (“Das
negativas”) haja uma concessão
final à amargura
ao registrar o que deixou de
fazer (“não fui
ministro”; “não
conheci o casamento”) mas
também o que usufruiu
da vida (não teve que
ganhá-la com o suor do
próprio rosto nem morreu
na miséria como ocorreria
a personagens das suas memórias): “Somadas
umas coisas e outras qualquer
pessoa imaginará que não
houve míngua nem sobra,
e conseqüentemente que saí quite
com a vida. E imaginará mal;
porque ao chegar a este outro
lado do mistério, achei-me
com um pequeno saldo, que é a
derradeira negativa deste capítulo
de negativas – Não
tive filhos, não transmiti
a nenhuma criatura o legado da
nossa miséria.”
O
certo é que Memórias Póstumas de Brás Cubas constituem
uma criação genial, evidenciando quanto a cultura brasileira
acha-se integrada à cultura ocidental e, ao mesmo tempo, a capacidade
de Machado de Assis de enriquecê-la com um tipo imorredouro. (Ver também ASSIS,
Machado de e Esaú e Jacó e Memorial de Aires).
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