Dicionário das Obras Básicas da
Cultura Ocidental

Antonio Paim

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KANT, Immanuel

Immanuel Kant é o mais importante filósofo ocidental dos último séculos. Tal se dá porque coube-lhe definir como se deveria conceber a filosofia apta a substituir a Escolástica, dando conta da situação em face do surgimento de uma ciência física que colocava por terra a física antiga, aristotélica, cultuada na Idade Média. Ao fazê-lo instaurou uma nova perspectiva filosófica. (1)  Além disto, fecundou por duas vezes o pensamento de sua época. Primeiro, dando surgimento ao idealismo alemão, que se considera como uma vertente essencial da Filosofia Moderna. E, segundo, quando se tratou de superar o positivismo que empolgou os espíritos em vários países, durante algumas décadas da segunda metade do século passado, que postulava o fim da investigação filosófica, desde que a ciência ocuparia todos os campos. Nos decênios subseqüentes promoveu-se o que foi denominado de “volta a Kant”, de que emergiu o neokantismo, que chegou a ser a corrente dominante na Alemanha, por volta da Primeira Guerra, com irradiação por toda parte, enterrando a pretensão positivista e fazendo de novo florescer a diversidade filosófica. Muitos estudiosos acreditam que a meditação de Kant deverá fecundar mais uma vez a filosofia ocidental, já que seria o instrumento para conceber uma ética que desse conta da perplexidade moral vigente no Ocidente neste fim de milênio.

Immanuel Kant passou toda a vida onde nasceu, Koeningsberg, capital da Prússia Oriental, hoje integrada à Rússia, em decorrência do desmembramento da Prússia ocorrido no último pós-guerra. Viveu oitenta anos, de 1724 a 1804. Em seus estudos, interessou-se primeiramente pela física newtoniana e chegou a ensinar geografia, tendo concebido uma doutrina explicativa da origem do Universo que passou à história com o nome de “hipótese cosmológica Kant-Laplace”.  Durante muitos anos atuou como “livre-docente”, que na Universidade alemã corresponde ao direito de oferecer cursos livres, em geral concorrentes ao oficial. Somente ingressou no Corpo Docente da Universidade aos 46 anos de idade, em 1770, ensinando a filosofia oficial que, em seu tempo, correspondia às doutrinas de Leibniz, que passaram à história com a denominação de “sistema Wolf-Leibniz”. Dava-se conta de que esse sistema não era capaz de explicar a aceitação universal da física newtoniana, que não só substituiu a física antiga (aristotélica) como eliminou de vez as físicas cartesiana e leibniziana. E trabalhou nessa questão pelo menos durante dez anos, que foi o tempo exigido pela elaboração da Crítica da Razão Pura,  publicada em 1781, quando tinha 57 anos de idade. O livro causou desde logo um grande impacto. Nesse tempo a Prússia era governada por Frederico II (reinou de 1740 a 1786), chamado de “O Grande”, que dá início à projeção da Prússia na Europa, notabilizando-se pelo empenho na modernização do Estado e do Exército e também amigo das artes e da intelectualidade, o que de certa forma serviu para projetar a Kant. Tenha-se presente, também, que desde 1714, a Inglaterra era governada pelos eleitores da Casa de Hanover, o que serviu para estreitar os vínculos entre a Inglaterra, de um lado, e a Prússia e os diversos principados alemães, de outro.

Tendo em vista que muitos dos que se manifestaram acerca da Crítica da Razão Pura não se deram conta de que inaugurava uma nova perspectiva filosófica,(1) Kant publicou em 1783 Prolegômenos a toda metafísica futura, com a pretensão de explicá-la. Mas acabou mesmo revendo-a e procurando esclarecer pontos considerados obscuros numa segunda edição, aparecida em 1787.

A metafísica futura seria a metafísica crítica por ele proposta e que deveria substituir o sistema Wolf-Leibniz, que batizou de “metafísica dogmática”. A nova metafísica dispõe de um primeiro patamar que, posteriormente, foi chamado de gnoseologia (teoria do conhecimento geral), ou epistemologia (teoria do conhecimento científico). Não se confunde com a ciência que deixa de fazer parte do sistema filosófico, a exemplo do que ocorria em Aristóteles e na Escolástica. Para tanto desinteressa-se de questões cosmológicas deste tipo: saber se o mundo é finito ou infinito. Na nova visão proposta por Kant, essa questão está acima da experiência humana e, portanto, não pode ser decidida discursivamente. Para ele o conhecimento não pode prescindir da experiência.

Também as questões relacionadas à religião – de que dependeria a moral, segundo o entendimento da época – não poderiam ser resolvidas pelo procedimento discursivo, vale dizer, com o emprego do raciocínio lógico. Segundo afirmou, as discussões acerca da sobrevivência da alma ou da existência de Deus somente conduzem a impasses.

Ao mesmo tempo, entretanto, Kant era um homem profundamente religioso, sendo adepto do pietismo, movimento renovador da religião luterana, que se propunha fazer renascer o fervor dos primeiros tempos da Reforma. Nessa circunstância, não poderia deixar de incomodar-se com a questão moral. Este seria justamente o tema de suas preocupações subseqüentes à publicação da Crítica da Razão Pura. Fruto dessa preocupação seria a obra Fundamentação da metafísica dos costumes  na qual a moral é dissociada da religião, o que permitiria, segundo supunha, a superação das divergências entre católicos e protestantes, levando em conta que eram idênticos os textos sagrados em que ambos se inspiravam para propugnar regras morais.

No entendimento kantiano, a sua obra crítica estava destinada a preparar o terreno para a elaboração de um novo sistema. Com a intenção de dar os primeiros passos nessa direção, publicou Crítica da Razão Pura (1788), que seria a sistematização das teses formuladas na obra precedente dedicada à moral. Ao fazê-lo, Kant de certa forma reintroduziu a dependência da moral à religião, o que não deixou de provocar certa celeuma e a recusa por muitos dos seguidores que, na altura, já havia granjeado.(1) Ao tema dedicou ainda a Metafísica dos costumes (1797), subdividida em duas partes Doutrina da virtude  e Doutrina do direito.

Parecendo-lhe que a separação entre moral e religião pressupunha a aceitação das teses, então em voga, tanto de autores ingleses como de franceses, quanto à possibilidade de uma religião natural (eminentemente racional, da qual proviriam as diversas expressões concretas além do cristianismo), Kant publicou, em 1794, a Religião dentro dos limites da razão pura.  Tendo Frederico, o Grande falecido em 1786, foi substituído por um monarca que não simpatizava com a feição ilustrada assumida pela monarquia prussiana e, por essa razão, proibiu a circulação do mencionado livro de Kant, o que proporcionou a este grandes dissabores. Completara 70 anos e não tinha boa saúde.

Kant ocupou-se ainda de diversos temas, inclusive da política. Embora a consideração desse aspecto fizesse parte da análise de outras questões, há coletâneas de textos seus com a denominação de Escritos políticos.  Como traçou abordagens muito diversas para o conhecimento da realidade natural e das manifestações culturais, tentou superar o verdadeiro fosso que criou entre as duas esferas naquilo que a posteridade denominaria de terceira crítica (Crítica do Juízo, 1790).

Ainda em vida e ao longo do século XIX, a obra de Kant mereceria sucessivas edições. Suas idéias foram conhecidas na França notadamente desde a publicação de De l’Allemagne (1810), de Mme. De Stael (1766-1817). Contribuiu também para popularizar o seu nome nos países de línguas latinas, inclusive Brasil e Portugal, o livro Filosofia de Kant ou princípios fundamentais da filosofia transcendental, em francês, de Villers, aparecido em Paris em 1801. A edição clássica esteve a cargo da Academia de Ciências de Berlim, concluída neste século, em 23 volumes. É muito volumosa a bibliografia dos estudos que tem merecido. (Ver também Crítica da Razão Pura, Escritos políticos e Fundamentação da metafísica dos costumes).


(1)  A filosofia estrutura-se com base num ponto de vista último (perspectiva), a partir do qual constituem-se sistemas. Contudo, o que anima permanentemente a filosofia são os problemas, vale dizer, as questões teóricas que apaixonam determinadas épocas ou são parte das tradições culturais nacionais.

(1) A perspectiva platônica, formalizada e sistematizada por Aristóteles, afirmava que, para compreender o real, isto é, aquilo que aparece, deve-se descobrir o que está por trás e lhe dá sustentação, a substância. Ao contrário disto, Kant afirma que não posso ter acesso às coisas como seriam em si mesmas, isto é, fora da nossa percepção. A investigação deve ater-se àquilo que aparece (fenômeno).

(1) Os diversos seguidores alemães de Kant, na primeira metade do século XIX, partindo da tese de que a crítica estava concluída, lançaram-se à elaboração do sistema. Considera-se que Hegel seria o melhor sucedido, donde falar-se de sistema Kant-Hegel.

 

 

 

 

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