(A)
Idéia do sagrado,
de Rudolf Otto
Rudolf Otto (1869-1937) foi professor
em diversas universidades alemãs,
tendo chegado a titular de teologia
em Breslau, de 1915 a 1917, transferindo-se
em seguida para Marburgo, onde
se aposentou em 1919.
Seguiu a orientação
daqueles autores, como Jacob
Friederich Fries (1773-1893),
que consideravam certos aspectos
do idealismo pós-kantiano
como violadores da crítica
da razão, propugnada por
Kant, notadamente a filosofia
especulativa da natureza. Fries
entendia que esta deveria partir
dos resultados das ciências
particulares, a exemplo do procedimento
de Kant em relação
a Newton. Somente uma tal investigação
poderia determinar precisamente
quais são as categorias a
priori que lhes dão
sustentação, isto é,
quais os princípios que
não provêm da experiência.
Rudolf Otto aplicou tais procedimentos
ao estudo da religião,
motivo pelo qual considera-se
que haja efetivado uma análise
de caráter transcendental,
na acepção que
Kant deu a tal denominação.
O termo em Kant se opõe
tanto ao que é empírico
como ao que é transcendente
e designa uma forma particular
de conhecimento. Na Crítica
da Razão Pura teria
oportunidade de afirma: “Chamo
transcendental todo conhecimento
que, em geral, não se
ocupa tanto dos objetos como
de nossos conceitos a priori dos
objetos”. Vale dizer: trata-se
de organizar o nosso conhecimento
acerca do fenômeno, de
maneira que possa alcançar
validade absoluta.
As análises de Otto obedecem
a tal pressuposto. Além
disto, seguindo a Fries admite
seja considerada a experiência
psicológica, não
tanto para subjugar o objeto
do conhecimento ao relativismo
da vida psíquica, mas
para identificar as certezas
que propicia e, por essa via,
aproximar-se da formalização
de caráter a priori,
desde que, no seu entendimento,
a experiência completa
da consciência abrange
não apenas a percepção
mas também a possibilidade
do pensamento.
A categoria fundamental de que
parte Otto é a de numinoso.
O termo é pouco usual
mas se revelou muito expressivo.
Provém da palavra latina numine que
significa divindade. O sufixo oso corresponde
a cheio de (medroso
= cheio de medo; numinoso = cheio
de divindade).
Rudolf Otto quer apreender o
racional e o irracional na idéia
de Deus, para o que procede a
análise histórica,
psicológica e semântica
do conceito de numinoso. Tratando-se
de um a priori não
pode ser definido mas pode ser
descrito.
Quando nos deparamos com o fato
religioso, uma tendência
natural ao espírito humano
consiste em torná-lo compreensível. “Para
toda idéia teísta
de Deus, mas muito especialmente
para a cristã – frisa
Rudolf Otto – é essencial
que a divindade seja concebida
e designada com rigorosa precisão
por predicados tais como espírito,
razão, vontade, vontade
inteligente, boa vontade, onipotência,
unidade de substância,
sabedoria e outros semelhantes;
quer dizer, por predicados que
correspondam aos elementos pessoais
e racionais que o homem possui
em si mesmo, ainda que em forma
mais limitada e restrita. Ao
mesmo tempo, todos esses predicados
são, na idéia do
divino, pensados como absolutos;
ou seja, como perfeitos e supremos
(...)”. Justamente
o que nos permite apreender o
fato religioso como algo mais
que puro sentimento é a
possibilidade de formularmos,
dele, idéias claras e
distintas. Esse é, aliás,
um dos distintivos de religiões
como o cristianismo.
Mas ao mesmo tempo, devemos chamar
a atenção para
um outro aspecto fundamental:
se, por um lado, captamos em
conceitos claros o fato religioso,
a experiência do transcendente,
não há dúvida,
por outro, de que eles não
esgotam a essência da divindade.
Há uma como que inadequação
fundamental entre o conceito
e aquilo que pretende ser significado
através dele: Deus não é (somente)
aquilo que falamos dele. Os nossos
predicados acerca da divindade
seriam, assim, essenciais sintéticos,
ou seja, como frisa Rudolf Otto, “(...)
predicados atribuídos
a um objeto que os recebe e sustenta,
mas que não é compreendido
por eles nem pode sê-lo,
mas que, ao contrário,
deve ser compreendido de outra
maneira distinta e peculiar (...)”.
O erro do racionalismo consiste,
no terreno da religião,
em ter substituído os
conceitos com que nos aproximamos
do absoluto, por outros que não
são privados da esfera
religiosa, mas que pertencem,
também, “à esfera
natural das representações
humanas”. Pretendendo deitar
luz sobre a essência da
religião, os racionalistas
terminam por inviabilizá-la,
despindo-a do seu caráter
emocional e supra-racional. Certamente,
quando os adversários
da religião frisam que
a “agitação
mística” nada tem
a ver com a razão, prestam
um maior serviço àquela,
do que o prestado pelos seus
pretensos defensores, os racionalistas. “(...)
Tomara – diz Rudolf Otto – que
seja um saudável estímulo
o observar que a religião
não se reduz a enunciados
racionais (...)”.
O estudo da base vivencial do
fato religioso, envereda necessariamente
pelo caminho do conhecimento
do sagrado. Poderíamos,
em primeiro lugar, fazer uma
definição descritiva
desse termo. “O sagrado é – frisa
Rudolf Otto – uma categoria
explicativa e valorativa que,
como tal, se apresenta e nasce
exclusivamente na esfera religiosa. É certo
que interfere em outras, por
exemplo, na ética; mas
não procede de nenhuma. É complexa,
e entre os seus diversos componentes
contém um elemento específico,
singular, que escapa à razão
(...) e que é árreton,
inefável; ou seja, completamente
inacessível à compreensão
por conceitos (como em terreno
diferente ocorre com o belo)”.
Na tentativa em prol de chegar à essência
da categoria do sagrado, é necessário
que o separemos do seu componente
moral, bem como de qualquer outro
componente racional. A essência
da categoria do sagrado seria,
para Rudolf Otto, o numinoso.
Trata-se de uma categoria peculiar,
explicativa e valorativa, que
vai acompanhada de uma disposição numinosa de ânimo,
não passível de
definição, mas
apenas de descrição,
compreensível indiretamente,
mediante sugestões aproximadas
que se apresentam ao espírito,
de forma a permitir que emirja
nele a vivência característica
do sagrado, num misto de terror-admiração.
O numinoso não se deve
confundir, entretanto, com o “sentimento
de criatura” ou de anulação
perante o sagrado. Este sentimento,
certamente, acompanha a vivência
do numinoso. Mas é, do
ponto de vista psicológico,
apenas efeito da presença
de um elemento transbordante
e misterioso. Esse “sentimento
de criatura” é o
que aparece, por exemplo, quando
Abrahão ousa falar com
Deus acerca da sorte dos sodomitas
(Gén. I, 18, 27): “Eis
que me atrevo a te falar, eu,
que sou pó e cinza”.
Schleiermacher analisou detalhadamente
este sentimento, denominado por
ele de “absoluta dependência”.
Em que pese a importância
desse sentimento na teologia
bíblica (todas as passagens
que, no Antigo e no Novo Testamento,
se referem à anawa – pobreza
de espírito, esvaziamento
de si próprio, plena disponibilidade –)
ou na literatura mística
(o leitmotiv da pequenez
nas mãos de Deus, tão
em voga no pensamento de S. Teresa
de Lisieux ou de Charles de Foucauld,
por exemplo), não constitui,
contudo, o cerne da vivência
do numinoso. “Mas – pergunta
Rudolf Otto – o que é e
como é, objetivamente,
tal como o sinto fora de mim,
isso que chamamos de numinoso?
A resposta consistirá na
análise circunstanciada
das experiências do temor,
da fascinação e
do aniquilamento.
Tais noções, contudo,
não se esgotam no plano
psicológico, remetendo,
a seu ver, a uma experiência
metafísica que o sentimento
como tal é impotente
para expressar.
Além do seu texto fundamental
(aparecido em 1917, com o título
de O sagrado – Das
Heilege, que a Universidade
de Oxford, Inglaterra, traduziu
em 1923 com o título de The
idea of Holy, adotado também
nas traduções a
outras línguas), Otto
publicou extensa bibliografia,
na qual se destacam A concepção
do Espírito Santo em Lutero (1899); Vida
e ação de Jesus (1902); Concepção
naturalista e concepção
religiosa do mundo (1904); A
filosofia da religião
de Kant – Fries e sua aplicação à teologia (1909)
e Estudos relativos ao numinoso (1923).
Suas concepções
mereceram diversos estudos. O
Curso de Humanidades da Open
University (Inglaterra) dedica
uma de suas unidades ao livro O
Sagrado. (Ver também ELIADE).
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