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Dicionário das Obras
Básicas da
Cultura Ocidental
Antonio Paim
Índice: a - b - c - d - e - f - g - h - i - j - k - l - m - n - o - p - q - r - s - t - u - v - x - w - z
História da civilização
na Europa, de François
Guizot
História da civilização
na Europa (da queda do
Império romano à Revolução
Francesa) reúne as aulas
sobre o tema ministradas por
François Guizot nos
anos letivos de 1818, 1829
e 1830, publicadas em 1840.
Considera a civilização
européia como inteiramente
distinta das civilizações
antigas que a precederam e
fundamenta essa convicção
de forma ampla e consistente.
O traço essencial residiria
em que não obedece a
um princípio diretivo único,
como se dava anteriormente.
Na multiplicidade encontra-se
a sua superioridade. Essa circunstância
deve-se sobretudo à feição
assumida pela Igreja, notadamente
a separação entre
os poderes temporal e espiritual. É certo
que a Igreja, em muitas de
suas fases, pretendeu sobrepor-se
ao poder temporal. Contudo,
o fato de que, em tal separação
consiste precisamente a fonte
da liberdade de consciência,
estimulou a resistência àquelas
investidas. Outra contribuição
notável advém
do fato de que não se
haja estruturado em forma de
casta, a exemplo do que ocorria
nos impérios antigos.
A característica desta é a
hereditariedade de que resulta
o predomínio de determinadas
famílias, conduzindo
ao mais franco imobilismo social.
Ao contrário disto,
a Igreja recrutou seus membros
nos diversos segmentos da sociedade,
tanto nas camadas elevadas
como nas inferiores. Esse elemento
determinou que, no Ocidente,
se formassem classes sociais.
A obra corresponde justamente à reconstituição
do processo de estruturação
das classes, da luta que vieram
a travar entre si, e dos grandes
princípios que caracterizam
a nossa civilização.
São estes os elementos
constitutivos da civilização
européia: a aristocracia
feudal, a Igreja, as comunas
e a realeza. Ao longo dos séculos
V ao XII estratificam-se os germens
de tudo aquilo que requeria a
formação das nações.
Mas este último elemento
- uma verdadeira nacionalidade
- só vai de fato emergir
no período seguinte, para
concluir-se, no fundamental,
nos séculos XVII e XVIII.
Fator aglutinante será a
tensão entre os princípios
da liberdade e da ordem, o primeiro
herdado dos germanos e, o segundo,
dos romanos.
Na última lição,
Guizot estabelece um confronto
entre a Inglaterra e o continente
que exprime com toda propriedade
o seu entendimento da singularidade
da civilização
européia. Assim, escreve: "Existe, é certo,
entre a civilização
inglesa e a civilização
dos estados continentais uma
diferença grave, de que
cumpre dar conta. O desenvolvimento
dos diferentes princípios
fez-se, na Inglaterra, numa espécie
de simultaneidade. Quando tentei
determinar a fisionomia própria
da civilização
ocidental, comparada às
civilizações antigas
e asiáticas, fiz ver que
a primeira era variada, rica,
complexa, que jamais havia tombado
sob a dominação
de nenhum princípio exclusivo,
que os diversos elementos do
estado social achavam-se combinados,
combatidos, modificados, que
haviam sido continuamente obrigados
a transigir e a viver em comum.
Este fato, caráter geral
da civilização
européia, foi sobretudo
da civilização
inglesa: foi na Inglaterra que
se produziu com maior evidência;
foi ali que a ordem civil e a
ordem religiosa, a aristocracia,
a democracia, a realeza, as instituições
locais e centrais, o desenvolvimento
moral e político marcharam
em conjunto, mesclados por assim
dizer, com igual rapidez, ao
menos a pouca distância
uns dos outros. Sob o reino dos
Tudor, por exemplo, em meio aos
mais expressivos progressos da
monarquia pura, vê-se o
princípio democrático,
o poder popular fortalecer-se
quase ao mesmo tempo. Desencadeia-se
a revolução do
século XVII: ela é ao
mesmo tempo religiosa e política.
A aristocracia feudal aparece
fortemente enfraquecida e com
todos os sintomas de decadência.
Entretanto, acha-se em condições
de preservar um lugar, de desempenhar
um papel importante e de fazer
sua parte na obtenção
dos resultados. O mesmo ocorre
ao longo de toda a história
da Inglaterra: jamais algum elemento
antigo perece completamente;
jamais algum princípio
especial chega a uma dominação
exclusiva. Há sempre desenvolvimento
simultâneo das diferentes
forças, transação
entre suas pretensões
e interesses".
No continente, em contrapartida,
observa, aparecem todos os elementos
constitutivos da civilização
ocidental, antes relacionados,
mas sucessivamente. Há um
determinado século em
que se afirma, não certamente
em caráter exclusivo,
mas com uma predominância
bem marcada, a aristocracia feudal,
por exemplo. Num outro século
o princípio monárquico
e, em outro, o princípio
democrático.
A conclusão está apresentada
nos seguintes termos: "Esta
diferença na marcha das
duas civilizações
apresentam vantagens e inconvenientes.
Ninguém duvida que este
desenvolvimento simultâneo
dos diversos elementos sociais
hajam contribuído em muito
no sentido de que a Inglaterra
haja chegado mais rápido
que os estados continentais ao
objetivo de toda sociedade".
Contudo, acrescenta ,em ambos
aparece a singularidade essencial
da civilização
ocidental que é chegar
a um governo "capaz de conciliar
todos os interesses, todas as
forças, de fazê-las
viver e prosperar em comum".
Na apresentação
da edição brasileira
da História da civilização
na Europa, Ricardo Vélez
Rodríguez indica como
Marx tornou-se caudatário
da hipótese de Guizot,
mas proporcionando-lhe feição
totalitária ao contrário
do que preconizava o liberalismo
doutrinário. Conclui deste
modo a apresentação
da obra:
"No terreno sócio-político, Guizot considera que a realidade
da Europa é constituída pela luta de classes. Nada mais alheio,
para ele, à realidade política da França e da Europa,
do que o sonho utopista dos que achavam que seria possível uma espécie
de entropia política, como se as relações sociais pudessem
ser reduzidas uni-linearmente a uma única ordem de interesses. Mas,
ao mesmo tempo, o pensador francês é consciente de que a época é a
das classes médias, as únicas capazes de dotar a França
de instituições livres e estáveis, superando os excessos
da revolução e do absolutismo. Ora, essas classes médias identificam-se,
na França da Restauração, com a burguesia. Este deve acordar
e despertar a sua consciência de que se trata de uma classe chamada a
garantir a unidade francesa, fazendo frente à dissolução
do Terror e ao anacronismo do Absolutismo bonapartista. Eis aí, formulado
claramente o conceito da consciência de classe. Sem dúvida
nenhuma que Marx fez uso desse arcabouço conceitual (luta de classes,
consciência de classe, classe habilitada para exercer o domínio
na sociedade). Plekhanov,(1) aliás,
tinha destacado esse ponto, com rara probidade intelectual que reconhecia ser
Marx herdeiro de um liberal-conservador na formulação dos seus
conceitos sociológicos chaves. Guizot considera-se o profeta dessa situação
histórica, o pregoeiro da nova ordem de coisas, de uma política
alicerçada no conceito de luta de classes, e de uma burguesia que é chamada à responsabilidade
histórica, indelegável, de garantir o exercício da liberdade,
mediante a criação de instituições que, salvaguardando
a ordem, possibilitem o amadurecimento da civilização européia.
O pensador francês atribui à burguesia o papel de pregoeira da
Verdade histórica.
A burguesia, no sentir de Guizot,
deveria garantir as instituições
que alicerçam o exercício
da liberdade, mediante a organização
da representação.
Esta consiste, cumulativamente,
na luta em prol dos interesses
de classe e na tentativa de,
mediante a explicitação
desses interesses no terreno
do discurso, dar ensejo à racionalidade
social, que é fruto do
entrechoque das opiniões.
Desse processo dialético
emerge o conceito de representação.
Esta seria considerada, quando
estabelecido o domínio
da burguesia mediante esse processo
de explicitação,
como a média da opinião.
Não há dúvida
de que esses conceitos entraram
fundo no discurso político
do século XIX, tanto na
França quanto no Brasil".
(Ver também, GUIZOT,
François).
(1) Cf.
G. Plekhanov. "Les premières
phases d'une théorie:
la lutte de classes".
In: Oeuvres philosophiques.
V. II, Moscou, s.d. (Prefácio à segunda
edição russa
do Manifesto Comunista).
Cit. por Rosanvallon, Le
moment Guizot, p. 394. Acerca
da influência de Guizot
em Marx, escreve Rosanvallon: "Poderá ser
observada a atração
exercida por Guizot sobre
certos teóricos de
inspiração
marxista, na medida em que
ele tinha sido considerado
por Marx e Engels como um
dos historiadores burgueses
que tinham inventado a
noção de luta
de classes". A respeito,
Rosanvallon menciona os seguintes
autores, além de Plekhanov:
Robert Fossaert, "La
théorie des classes
chez Guizot et Thierry",
in: La Pensée,
jan./fev. 1955; B. Reizou, L'historiographie
romantique française,
1815-1830. Moscou, s.d.
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