Guia dos perplexos, de
Maimônides
O propósito de Maimônides
(1135-1204) ao elaborar O
guia dos perplexos acha-se
deste modo expresso na Introdução: “O
objeto deste tratado é iluminar
o homem religioso que foi educado
a crer nas verdades de nossa
sagrada lei, que conscientemente
cumpre seus deveres religiosos
e morais e que, ao mesmo tempo,
foi bem sucedido em seus estudos
filosóficos. A razão
humana o atraiu para habitar
em sua esfera e ele encontra
dificuldade em aceitar como correto
o ensinamento baseado na interpretação
literal da lei, e especialmente
aquela que ele próprio
ou outros derivam das expressões
harmônicas, metafóricas
ou híbridas. Daí estar
ele perdido em perplexidade e
ansiedade. Se for guiado apenas
pela razão, e renunciar
a suas concepções
anteriores que se baseiam nessas
expressões, há de
se considerar que rejeitou os
princípios fundamentais
da lei; e mesmo que conserve
as opiniões derivadas
dessas expressões, e se
em vez de seguir sua razão,
abandonar totalmente a orientação
desta, ainda assim parecia que
suas convicções
religiosas sofreram perda e injúria.
Pois terá então
abandonado aqueles erros que
deram origem ao medo e ansiedade,
ao constante pesar e grande perplexidade”.
O princípio, segundo o
qual se valerá de Aristóteles,
consiste no primado do religioso
e do especialmente judaico. Alguns
exemplos servirão para
apreender-se o seu estilo.
Cinqüenta dos setenta e
cinco capítulos do Livro
Primeiro do Guia dos Perplexos estão
dedicados à apreensão
do sentido das palavras, acerca
do que avança esta advertência: “Não
pensais que só a doutrina
secreta há de ser ensinada
com avareza ao vulgo e aos não-iniciados.
Reiteradamente temos aluído
ao dito dos sábios: “Não
interpreteis o capítulo
relativo à Criação
em presença de duas pessoas”.
Este princípio não
era privativo de nossos sábios,
pois os antigos filósofos
e eruditos de outras nações
procuravam tratar também
com obscuridade os principia
rerum (princípio
das coisas) e se valiam de linguagem
figurada para discorrer acerca
de tais questões. ... Pois
se aqueles filósofos que
nada podiam temer de clara explicação
de tais questões metafísicas
costumavam discuti-las mediante
figuras e metáforas, enquanto
mais não teremos que fazer,
nós que levamos em nosso
coração o cuidado
do religioso, obstando-se de
comunicar claramente ao vulgo
o que está acima de sua
compreensão, ou pode ser
tomado em sentido contrário
ao que nos propomos?”
Eis como Maimônides explica
a maneira de dizer que Deus tem
forma e figura (Livro Primeiro,
cap. III):
“Pode-se pensar que as palavras hebréias temuna e tabnit significam
a mesma coisa mas não é assim. Tabnit significa a figura
de uma coisa que foi construída, se é quadrada, redonda, triangular
ou de alguma outra maneira. Diz-se no Êxodo: “A
forma (tabnit) do Tabernáculo e das ânforas”; “a
forma de qualquer pássaro” (Deuteronômio); “a forma
da mão”; “a forma do pórtico” ... De modo que
a língua hebréia nunca prega a palavra tabnit quando
fala das qualidades de Deus Onipotente.
O termo temuna se usa
com três sentidos diferentes
na Bíblia. Significa,
primeiramente, o perfil das coisas
de que percebemos pelos sentidos.
Em segundo lugar, as formas de
nossa imaginação,
as impressões que aparecem
quando os objetos cessarem de
afetar os sentidos, e em terceiro
lugar, a idéia de um objeto,
quando unicamente o percebe a
inteligência: é neste
terceiro sentido como se aplica
a Deus a palavra. Portanto, a
sentença: “E contemplará a
imagem do Senhor (Números,
12.8) quer dizer: “E compreenderá a
verdadeira essência de
Deus”.
O problema da criação é outro
exemplo de como Maimônides
coloca em primeiro plano os ensinamentos
judaicos, sem, entretanto, eliminar
a possibilidade de encará-los
racionalmente. Na meditação
grega, sistematizada por Aristóteles,
não se dá a possibilidade
da criação. Para
atestar a validade do ensinamento
bíblico, em contraposição
a Aristóteles, Maimônides
dividirá a sua argumentação
em dois segmentos. No primeiro,
analisa o entendimento de Aristóteles
quanto à causalidade mecânica,
para mostrar que não vale
como explicação
universal. No segundo, refuta
a conclusão de que, tendo
sido criado pela vontade de Deus,
o mundo seria inteiramente ocasional
e arbitrário.
“A causalidade mecânica, estabelecida por Aristóteles, é válida
para o mundo sublunar, onde a grande variedade das coisas deve ser referida às
leis imutáveis que governam a influência das esferas sobre os
seres que se encontram abaixo. Mas não explica a diferença entre
as estrelas, sempre inteligências separadas, conforme a cosmologia aristotélica-ptolomaica.
E como fica, nessa circunstância, o princípio de que de uma causa
simples só pode resultar um efeito simples? Tais dificuldades provenientes
dos ensinamentos aristotélicos sobre causalidade mecânica, imperativo
da lei natural e perenidade do universo, seriam afastadas se fosse admitido,
em seu lugar, uma causa inteligente operando com finalidade”.
Quanto à segunda linha
de argumentação
escreve o seguinte (Guia
dos Perplexos, cap. XXV):
“Manifestamos assim, claramente, e explicamos nossa opinião, que
concorda com Aristóteles em método de sua teoria. Pois acreditamos
que neste universo permanece perpetuamente com as mesmas propriedades com que
o Criador o dotou, e nenhuma delas jamais mudará exceto por via de
milagre em alguns casos individuais, embora o Criador tenha o poder de mudar
o universo inteiro, de aniquilá-lo, ou de remover qualquer de suas propriedades.
O universo tem, entretanto, um princípio e começo, pois, quando
nada tinha ainda existência salvo Deus, sua sabedoria decretou que o
universo fosse trazido à existência a um certo tempo, que não
deveria ser aniquilado ou mudado com respeito a qualquer de suas propriedades,
salvo em alguns casos; alguns nos são conhecidos. Tal é a nossa
opinião e a base de nossa religião. A opinião de Aristóteles é que
o universo, sendo permanente e indestrutível, é também
eterno e sem começo. Já mostramos que semelhante teoria se baseia
na hipótese de que o universo é o resultado necessário
da relação casual, e que essa hipótese inclui certa dose
de blasfêmia”.
O Guia dos Perplexos foi
traduzido tão apareceu,
acreditando-se que haja contribuído
no sentido de que a Escolástica
Ocidental tenha evoluído
no sentido de substituir a influência
platônica pela aristotélica.
(Ver também MAIMÔNIDES)
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