Dicionário das Obras Básicas da
Cultura Ocidental

Antonio Paim

Índice: a - b - c - d - e - f - g - h - i - j - k - l - m - n - o - p - q - r - s - t - u - v - x - w - z

 
 

Filosofia do Direito, de Hegel

No esquema da Enciclopédia, que Hegel imaginava seria a apresentação do seu sistema filosófico, o espírito desdobra-se em espírito subjetivo (Antropologia, Fenomenologia do Espírito e Psicologia); espírito objetivo (Direito, Moralidade e Moralidade Social) e espírito absoluto (Arte, Religião Revelada e Filosofia). Os Princípios da Filosofia do Direito (1821) consideram apenas o momento do espírito objetivo, tendo naturalmente presente a circunstância de que é parte de uma totalidade.

O ponto de partida de Hegel é o esquema abstrato onde o logos que precede a Filosofia da Natureza desdobra-se no plano puramente lógico, passando da categoria do ser à essência e ao conceito. Na natureza do espírito encontra-se como que adormecido e seu despertar verdadeiro ocorre na consciência (Fenomenologia do Espírito) a que se segue um momento em que é teórico, prático e finalmente livre. O espírito subjetivo é ainda o espírito individual, sendo o seu momento mais alto não o conhecimento mas a vontade, à qual incumbe realizar o trânsito entre o espírito subjetivo e o espírito objetivo.

O ponto de partida da Filosofia do Direito – que pretende ser meditação sobre a sociedade e o Estado – é pois essa vontade livre que se orienta pelo seu próprio desejo e trata de sobreviver. Talvez se possa pensar aqui no que foi chamado de estado de natureza. Essa liberdade cifra-se na posse mas não tem por si maior garantia. O espírito busca, por isto mesmo, um contrato que lhe assegure a propriedade. Locke havia indicado que, embora plenamente livre no estado de natureza, o homem não tinha qualquer garantia quanto ao respeito à sua posse, razão pela qual teria abdicado daquela liberdade plena a fim de dispor de uma lei que o protegesse e à propriedade. Hegel chama a isto de direito abstrato. Presumivelmente por esta razão define ao direito como “a existência da vontade livre”, isto é, o que assegura a sobrevivência dessa vontade.

Partindo da propriedade e desta ao contrato, instaura-se o direito de punir a quem desrespeite a regra estabelecida, fixando-se por esse meio um primeiro nível de legalização da violência. Assim procedendo, o direito não elimina o crime mas apenas permite que seja punido. Não se trata de instaurar a harmonia entre os homens mas de sancionar uma situação de fato. A violência se contrapõe à liberdade. Tal verificação leva à descoberta da moralidade como algo de subjetivo, como dever ser.

Hegel segue Kant quando define o direito sem referência à sua característica essencial – opor-se ao fato e se constituir concretamente de um direito positivo, resultante das leis escritas ou dos costumes que têm força de lei – mas buscando enfatizar aquilo a que corresponderia sua natureza primordial. Para Kant o direito compreende as condições necessárias ao acordo das vontades segundo uma lei de liberdade. Esta seria a matéria da filosofia do direito, que pressupõe o conhecimento do direito propriamente dito. Neste ponto Hegel acompanha a tradição iniciada no século XVIII, se fizermos abstração do chamado direito natural, que, embora não se atenha igualmente ao direito positivo, forma nitidamente uma outra tradição.

No que se refere entretanto à moralidade, Hegel rompe com os cânones consagrados. Agora a característica essencial e distintiva da moralidade – que reside em seu caráter subjetivo – transforma-se em seu pecado capital.

Na seqüência da Filosofia do Direito, em que se dá a passagem da moralidade subjetiva para a moralidade objetiva, Hegel distingue Moralish de Sittlichkeit. Kant emprega esta última palavra na acepção usual de costume (a metafísica dos costumes é Metaphysik der Sitten). Hegel atribuiu-lhe sentido inteiramente distinto. Enquanto a Moralish (moralidade), como vimos, é a vontade subjetiva (individual ou privada), a Sittlichkeit (que diversos autores traduziram por eticidade) é a realização do bem em realidades históricas ou institucionais, equivalentes à família, à sociedade civil e ao Estado. Na definição de Hegel, “é o conceito de liberdade que se tornou mundo existente e natureza da autoconsciência”.

A moralidade objetiva (eticidade) corresponde à existência concreta de comunidades humanas que não se alçaram à reflexão filosófica para fixar as regras de seu funcionamento. Aqui as coisas são como são e não como deveriam ser. Tornando-as seu objeto, o filósofo (Hegel, no caso) pode fazer estimativas de validade universal, isto é, dizer como as coisas são e não apenas como deveriam ser.

No primeiro nível de realização do bem aparece a família, que se atualiza no casamento, conduzindo à formação de um patrimônio e ao nascimento dos filhos. Justamente por intermédio destes tem lugar seu desenvolvimento e superação. Os filhos não permanecem crianças; crescem e acabam por construir nova família. Assim, não há a família, mas diversas famílias, restando aquela como uma simples forma. As famílias são instadas a organizar-se com vistas à luta pela subsistência, dando origem à sociedade civil.

Na tradição liberal iniciada por Locke e Kant, a sociedade civil dá nascedouro ao Estado de Direito, fixa-lhe regras de funcionamento, subordina-o e, de certa forma, integra-o à própria sociedade. Em Hegel, a sociedade civil corresponde ao “sistema das necessidades”, à esfera do aparelho produtivo, ao império dos interesses e, portanto, ao predomínio da luta e da disputa. Não seria o campo próprio para o florescimento da moralidade.

A realização plena da moralidade dá-se com o Estado. Na Filosofia do Direito, Hegel trata da constituição e do papel dos funcionários que, no seu esquema, são os portadores da racionalidade.

A questão do endeusamento do Estado por Hegel suscitou longas disputas, alguns considerando-o partidário do autoritarismo prussiano, outros afirmando a sua condição de liberal. O exame desse aspecto nos distanciaria demasiado de nossos objetivos. Embora seja possível reconstituir o pensamento político de Hegel e discuti-lo especificamente, não se pode ignorar que, no seu sistema, procura colocar-se naquele plano que Kant denominou de numenal, isto é, puramente racional. Quanto às relações desse plano com o processo histórico, o próprio Hegel, precisamente na Filosofia do Direito, deixou-nos esta advertência explícita:

“Conhecer o que é, eis a tarefa da filosofia, pois o que é equivale à razão. No que se refere ao indivíduo, cada um é filho de seu tempo; a filosofia, do mesmo modo, resume seu tempo no pensamento. Seria estúpido imaginar que um filósofo qualquer ultrapasse o mundo contemporâneo do mesmo modo que um indivíduo salte por cima do seu tempo... Se uma teoria de fato ultrapassa esses limites, se constrói um mundo tal qual deva ser, este mundo existe somente em sua opinião, elemento inconsistente que pode assumir não importa que forma”.

Do que se indicou precedentemente, vê-se que a denominada ética hegeliana é algo de muito ambíguo e impreciso. Enquanto o esforço do pensamento moderno cifra-se em delimitar com rigor a esfera de sua abrangência, para distingui-la plenamente tanto da religião como do direito, o esforço de Hegel dá-se na direção oposta, superpondo esses conceitos e esmaecendo as suas fronteiras. Além do mais, não corresponde a exame específico do tema.

Hegel não considerou o problema teórico da moral social, como o fizeram os ingleses. Assim, sua “ética” reduz-se a dois postulados: 1º) por seu caráter subjetivo a moral individual requer ser superada; e 2º) o Estado é o ser moral por excelência.

A superação do caráter subjetivo da moral dá-se pelo direito. A questão do trânsito de uma esfera à outra é naturalmente complexa, pela dificuldade de sua reconstituição, em decorrência sobretudo do fato de que, em grande parte da história do Ocidente, a moral confunde-se com a religião. Na Época Moderna, ali onde a moral conquistou sua autonomia, pode-se dizer que o trânsito para o direito dá-se por consenso. Mas isto não significa que todas as questões morais venham algum dia experimentar semelhante processo. Quem tem um mínimo de familiaridade com aquilo que os grandes tratadistas arrolaram para exaltar a virtude, dá-se conta da impropriedade de semelhante expectativa. Não haverá sociedade da qual sejam banidas a inveja, a mesquinhez, a falta de grandeza e nenhum direito poderá enquadrar e punir os invejosos e mesquinhos.

A esse propósito vale lembrar aqui a arguta observação de Benedetto Croce quanto ao erro em que incide Hegel ao colocar no mesmo plano a evolução do espírito em suas determinações concretas, a que chama de dialética dos graus, e o pensamento dessa evolução (dialética dos contrários; conceito universal; concreto, idéia). Em Hegel tudo se passa como se da superação (teórica) da religião pela filosofia resultasse o desaparecimento da primeira ou que o surgimento do Estado Constitucional eliminasse a moralidade, tanto social quanto individual. Escreve Croce:

“O espírito individual passa da arte à filosofia e torna a passar da filosofia à arte, do mesmo modo porque passa de uma forma de arte a outra, ou de um problema de filosofia a outro: isto é, não por contradições intrínsecas a cada uma dessas formas na sua distinção, mas pela própria contradição intrínseca ao real, que é devir; e o espírito universal não passa do a a b e de b a a por outra necessidade que não seja a de sua eterna natureza, que é de ser ao mesmo tempo arte e filosofia, teoria e prática ou o que mais se queira. Tanto isso é verdade que, se esta passagem ideal fosse determinada pela contradição que se desenvolveria intrínseca a um determinado grau, não tornaria a ser possível voltar àquele grau, reconhecido como contraditório: tornar a ele seria uma degenerescência ou um atraso”. (O que é vivo e o que é morto na filosofia de Hegel (1906), trad. portuguesa, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1933, p. 81).

E quanto ao segundo postulado, isto é, a noção de que o Estado possa se constituir no ser moral por excelência, é daquelas que os juristas denominam de contraditio in adjecto. A moral não pode louvar-se da força. O Estado, como entreviu Max Weber, é a esfera da violência legalizada. (Ver também HEGEL).

 

 

Voltar