Dicionário das Obras Básicas da
Cultura Ocidental

Antonio Paim

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Experiência e cultura, de Miguel Reale

Miguel Reale é considerado como o maior filósofo brasileiro do século XX (nasceu em 1910). Descendente de italianos, tornou-se professor da tradicional Faculdade de Direito de São Paulo e também ocupou altos cargos administrativos em seu estado natal, entre estes o de reitor da Universidade. Fundou em 1950 o Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF), instituição que passou a abrigar representantes de todas as correntes filosóficas, fato sem precedentes porquanto, até então, as sociedades desse tipo congregavam apenas os participantes de uma única tendência. Granjeou reconhecimento internacional para a filosofia brasileira do direito. Ao completar 80 (1990), 85 (1995) e 90 anos (2000) promoveram-se eventos em sua homenagem.

Na vasta bibliografia de Miguel Reale, selecionamos o livro Experiência e cultura (1977) por representar uma contribuição essencial na identificação do que têm de comum, no presente, as principais filosofias nacionais do Ocidente. Com efeito, no século XX coroa-se o processo de constituição de filosofias nacionais autônomas, iniciado ainda no século XVII . Essa circunstância transmite a idéia da mais ampla fragmentação, sobretudo quando desapareceram os grandes sistemas que, embora conflitantes, promoviam a impressão de existir uma certa unidade. A filosofia contemporânea,  expressa através de filosofias nacionais,  dá preferência aos problemas teóricos, ao contrário do passado quando estes, ainda que responsáveis pela continuidade da investigação, viam-se obscurecidos diante da intenção sistemática.

Experiência e cultura demonstra, em primeiro lugar, que a perspectiva transcendental , criada por Kant, preserva inteira validade, em que pese as lacunas e as questões controversas que o grande filósofo legou à posteridade. Além disto, cumpre restaurar a descoberta dos neokantianos relativa à diferenciação dos objetos com que lidamos, que não se esgotam, como se supunha, em naturais e ideais, existindo ainda uma terceira esfera, a dos objetos referidos a valores. Trata-se da cultura, ou melhor, da criação humana. Reduzindo-se a objetos ideais tudo quanto não aparecia como objeto natural, equiparava-se os entes matemáticos, pura criação do espírito, aos temas da moralidade, nos quais estamos todos envolvidos.

                    A partir desses dois princípios –perspectiva transcendental e admissão de uma terceira esfera de objetos, resultantes da criação humana mas diferentes dos entes ideais – lança-se uma nova luz sobre a filosofia contemporânea. A fenomenologia (Husserl) muito enriqueceu o entendimento do processo de elaboração das categorias ordenadoras do real, que Kant não soube dizer de onde provinham e Hegel, apesar de ter comprovado serem, como queria Kant, livres criações do espírito – descobrindo a sua gênese em determinados filósofos – apresentou essa descoberta de uma forma inaceitável. Mas Husserl não conseguiu criar uma nova perspectiva filosófica nem restaurar a antiga, o que ratifica a permanência da proposta kantiana, o mesmo podendo dizer-se de Heidegger e do existencialismo.

                     Assim, Experiência e cultura reordena a meditação filosófica ocidental de nosso tempo e restaura o entendimento que se trata de alcançar uma compreensão cada vez mais aprofundada da pessoa humana e de sua criação. Livros posteriores, como O homem e seus horizontes (1980; 2ª edição, 1997); Verdade e conjetura (1983; 2ª edição, 1996) e Introdução à filosofia (1988; 2ª edição, 1989) aprofundam e esclarecem os aspectos essenciais aqui considerados.

                     Em síntese, o eixo principal da obra filosófica de Miguel Reale consiste em compreender o homem em sua integralidade, reconhecendo-o antes de mais nada como singularidade intocável, sem regredir à irredutibilidade do eu mas também sem dissolvê-lo em qualquer das entidades transpessoais. Ao homem  é inerente as condição de ser pessoa, que corresponde a uma estrutura a priori, transcendental, condição de possibilidade da sociedade e do mundo da cultura. A sociedade, ao invés de constituir um fator originário e supremo, é condicionada pela sociabilidade do homem.


No livro As filosofias nacionais e questão da universalidade da filosofia (2000), Leonardo Prota defende a hipótese de que a quebra da unidade linguística, representada pelo abandono do latim, substituído pelo emprego de línguas próprias, não explica o surgimento de filosofias nacionais. O elemento impulsionador seria a recusa da Escolástica em aceitar a ciência moderna, obrigando diversos autores (Descartes, na França; Bacon e Locke, na Inglaterra e Kant, na Alemanha, entre outros) a desvendar a natureza da ciência e propor um  entendimento da filosofia, que desse conta da nova situação..

A perspectiva filosófica corresponde ao ponto de vista último a partir do qual se irá considerar a realidade. Platão criou a perspectiva transcendente—sistematizada por Aristóteles e  incorporada á Escolástica—segundo a qual tudo quanto aparece não dispõe de sustentação própria. A categoria fundamental passa a ser a substância e somente ela pode dizer em que consiste o que percebemos. A perspectiva kantiana, denominada de transcendental, parte da hipótese de que não podemos saber como seriam as coisas na ausência da nossa percepção. Lidamos com fenômenos, cumprindo estabelecer como organizamos o conhecimento.

 

 

 

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