(A) Ética, de
Espinosa
Ao contrário do que pode
sugerir o título, a obra
consiste numa meditação
sobre Deus, concebida em termos
puramente racionais, apresentada
seguindo o modelo das obras matemáticas
e geométricas que faziam
aparição, dando
início à Época
Moderna. Escrito provavelmente
na década de sessenta
do século XVII, editou-se,
juntamente com os textos que
havia publicado em vida, postumamente,
em 1677.
Sendo profundamente religioso,
Espinosa entende que para alcançar
serena e terna bem-aventuranças,
o homem precisa dispor de um
conhecimento correto de Deus.
Para indicar o caminho a ser
percorrido na conquista de tal
objetivo, vale-se das indicações
de Descartes quanto ao método,
a fim de eliminar as representações
confusas e chegar a idéias
claras e distintas.
Espinosa afirma que dispomos
destes tipos de representações:
as que provém da simples
transmissão verbal; as
que nascem por experiência
vaga; as originadas pela relação
de um efeito com sua causa; e
as que proporcionam um conhecimento
intuitivo e direto do objeto
estudado na forma proporcionada
pelas verdades matemáticas.
Sendo este último o único
conhecimento autêntico,
cabe-nos investigar as notas
constitutivas do objeto de modo
análogo a definição
das figuras geométricas.
Se estabelecermos deste modo
os atributos de Deus, verificaremos
que a ordem e contexto das idéias,
como elementos simples e irredutíveis,
correspondem à ordem e
conexão das coisas.
Seguindo a Descartes, Espinosa
aceita que só tenhamos
acesso à extensão
e ao pensamento, mas o corrige
ao afirmar que este corresponde à manifestação
de uma substância única,
Deus. A legalidade natural decorre
dessa substância única.
Podemos, portanto, ter conhecimento
geométrico (vale dizer,
intuitivo e certo) de Deus.
No contexto histórico
em que viveu e tendo em vista
a sua formação
religiosa, tais afirmativas correspondem
ao corolário da idéia
de que a natureza está escrita
em linguagem matemática.
Essa idéia constitui um
dos elementos impulsionadores
da ciência moderna, ainda
que de origem mística,
há de se ter tornado
cara a Espinosa na medida em
que tem familiaridade com o conhecimento
místico dos judeus, a
Cabala, que repousa justamente
na fixação de relação
rigorosamente estabelecida.
A par disto, essa crença
na ciência e no poder da
matemática era algo de
relativamente difundido na Europa
do Norte, em especial na Holanda,
do mesmo modo que o pensamento
de Descartes (1506-1650). Este
também se refugiara na
Holanda, onde viveria por largo
período (de 1628 a 1640).
Espinosa conhece com profundidade
a sua obra e o seu primeiro livro é um
comentário a Renati
Descartes Principia philosophiea,
que aparecera em 1644. No decênio
anterior, a proibição
pela Igreja Romana do Diálogo de
Galileu (1564-1642) fez surgir
um grande movimento em seu apoio
nos países protestantes.
No caso particular da Holanda,
a própria Casa Real prestara-lhe
solidariedade. Nesse país
era grande o interesse pela matemática
e pelos assuntos relacionados à navegação.
Ainda não há na
Europa o que mais tarde ficou
conhecido como comunidade
científica. Mas já se
pode falar do estabelecimento
de uma utopia científica,
a propósito do que escreve
Ben-David: “Os criadores
dessa tendência foram Peter
Ramus e Bernard Palissy, seguidos
por Francis Bacon. Comenius,
Samuel Hartlib e outros. Estavam
interessados pela educação
universal e por projetos de longo
alcance de cooperação
científica e tecnológica
que, segundo esperavam, levariam à conquista
da natureza e ao aparecimento
de uma nova civilização.
Acreditavam numa redenção
do mundo que se tornaria possível
através da ciência,
da tecnologia e de sua organização
e apoio eficientes” (O
papel do cientista na sociedade,
trad. bras., São Paulo,
Pioneira, 1974, p. 103).
De sorte que as idéias
de Espinosa circulam nesse clima.
Terá sido a sua visão “científica” de
Deus que chocara aos rabinos
de Amsterdã? Talvez não
diretamente, mas o fato visível
de que, em relação
a Maimônides, inverte nitidamente
as posições. Isto é,
os dogmas agora precisam passar
pelo crivo da razão e
não simplesmente usar
os argumentos da filosofia para
mostrar a superioridade da revelação.
No sistema de Espinosa, não
tem lugar a criação
do mundo nem os milagres.
O sistema de Espinosa compõe-se
do Tratado para reforma do
entendimento, que é uma
espécie de introdução à metodologia;
da Ética e do Tratado
Político, que deixou
incompleto, embora se manifeste
sobre temas tradicionalmente
considerados nessas disciplinas,
isto é, as formas de governo.
Estes livros aparecem na edição
das Obras Póstumas,
que vieram a luz no próprio
ano de sua morte, em 1677. Por
solicitação do
regente holandês Jan de
Witt, escreveu o Tratado
das Autoridades Teológico-Políticas,
que é a defesa da tolerância
religiosa, editado em 1670. Em
1672, tem lugar a derrubada de
Witt do poder, passando também
a Holanda a experimentar um ciclo
de intolerância e perseguição
religiosa. No tempo que lhe restou
de vida, além de completar
o sistema, Espinosa prepara uma
tradução ao holandês
do Pentateuco e uma gramática
hebraica, o que é uma
indicação expressiva
de que não pretendera
tocar no núcleo central
da herança de seu povo,
consistente na simbiose entre
religião e moral, mas
apenas em difundi-lo na linguagem
de seu tempo, a exemplo do que
fizeram tantos outros eruditos
judeus, em seus respectivos momentos.
(Ver também ESPINOSA).
Voltar