Escritos
políticos, de
Kant
Embora Kant não haja dedicado
expressamente nenhuma obra à política,
tratou de questões relacionadas
ao tema em diversos textos. Assim,
por exemplo, no livro que intitulou
de Para a paz perpétua (1796),
formulou aquelas regras que deveriam
reger as relações
entre as nações – inclusive
o princípio da autodeterminação
dos povos – adotadas pela
Organização das
Nações Unidas.
Devido ao fato, há em
muitas línguas coletâneas
com o título de Escritos
políticos. Entre
os mais famosos comentários
desses textos encontra-se Direito
e Estado no pensamento de Immanuel
Kant, de Norberto Bobbio,
traduzido ao português
pela Editora da Universidade
de Brasília, sucessivamente
reeditado.
Nos Escritos políticos de
Kant sobressai a sua concepção
do Estado Liberal de Direito,
motivo pelo qual é considerado,
juntamente com Locke, fundador
da doutrina liberal. As linhas
gerais dessa fundamentação
acham-se resumidas adiante.
Kant abordou os temas clássicos
da teoria política do
seu tempo, notadamente as questões
do estado de natureza e do contrato
social. Em relação
a estes, buscou sobretudo despi-los
da condição de
fato histórico – o
que levava a uma discussão
inócua e sem sentido porquanto
centrada em hipótese de
comprovação impossível –,
para transformá-los
em entes de razão. Afirmaria
taxativamente que “é inútil
buscar as origens históricas
desse mecanismo, ou seja, é impossível
analisar o ponto de partida da
sociedade civil”. Advertiu
também que essa discussão
serviu de pretexto aberto para
o mais exacerbado arbítrio,
tendo em vista o curso seguido
pela Revolução
Francesa.
Kant situa-se entre os primeiros
pensadores que formularam com
toda a clareza a idéia
de que o Estado não tem
fins próprios, isto é,
os seus fins devem coincidir
com os fins múltiplos
dos indivíduos. Comentando
essa formulação
clássica do Estado Liberal,
escreve Bobbio na obra antes
mencionada: “Através
de uma metáfora, esta
concepção de Estado
foi chamada de Estado-protetor,
para significar que sua tarefa
não é dirigir os
súditos para este ou aquele
fim, mas unicamente vigiá-los
para impedir que, na busca de
seus próprios fins, cheguem
a conflitos. Através de
uma metáfora mais atual,
seria possível comparar
o Estado Liberal, não
a um protetor (ou, como também
foi dito, a um vigia noturno),
mas a um guarda de trânsito
com a tarefa não de indicar
de forma imperativa aos motoristas
qual direção devem
seguir, mas unicamente de agir
de maneira que, ordenando a circulação,
cada um possa alcançar,
da melhor maneira e de modo compatível
com igual direito dos outros,
sua própria meta”.
O Estado tem como fim a liberdade
e não a busca da felicidade
de seus súditos, como
era suposição generalizada
na época em que meditou
o mestre de Köenigsberg.
Em contraposição
a essa crença, afirmaria
taxativamente que “o bem
público, que acima de
tudo deve ser levado em consideração, é precisamente
a constituição
legal que garante a cada um sua
liberdade através da lei;
com isso continua lícita
para ele a busca de sua própria
felicidade por meio do caminho
que lhe parece melhor, sempre
que não viole a liberdade
geral em conformidade com a lei
e, portanto, o direito dos outros
consorciados”.
Kant também facultou uma
definição precisa
de liberdade civil ou jurídica
ao estabelecer que consiste na “faculdade
de fazer tudo aquilo que se quer
sempre que não seja feita
injustiça a pessoa alguma”.
A liberdade dos cidadãos
está portanto subordinada à lei
e termina justamente onde pode
interferir na liberdade dos outros.
A idéia central ou o postulado
básico sobre o qual assenta-se
a ordem política, o Estado,
na concepção de
Kant, está expresso desta
forma: “O princípio
e a idéia da formação
do Estado não é o
princípio da felicidade
universal, mas da liberdade segundo
leis universais”.
Daí decorre o modo como
vai derivar sua organização
política ou como interpreta
a melhor forma de governo escapando
ao paternalismo e ao democratismo.
O bom ou mau governo não
dependerá mais das pessoas
que detêm o poder mas tão-somente
de sua forma orgânica,
ou seja, de como se constitui. A
boa forma de governo na teorização
de Kant seria a republicana,
mas é necessário
que se observe a definição
de República, a qual não
se limita a uma oposição à forma
monárquica conforme a
interpretação geral.
A monárquica inclusive
pode ser republicana, depende
apenas de se libertar do despotismo
e do absolutismo. A monarquia
constitucional, a qual impõe
limitação do poder
do monarca e estabelece a repetição
dos poderes, já poderia
ser considerada, segundo Kant,
uma República. Para tanto,
vejamos como interpreta Bobbio
este momento:
“Das formas de governo Kant fala em dois momentos: no pequeno tratado Sobre
a Paz Perpétua e na Metafísica dos Costumes. Pensa
ele que, para distinguir as formas de governo, podem ser adotados dois critérios
diferentes de distinção: ou leva em conta a diferença
das pessoas que detêm o poder soberano, ou se leva em conta a diferença
no modo de governar. Com base no primeiro critério, o Estado é caracterizado
segundo o fato de que o governo seja regido por um, por poucos,
ou por todos, e tem-se assim as três formas tradicionais (conhecidas
já na filosofia política grega e estudadas de maneira particular
por Aristóteles) da autocracia, da aristocracia e
da democracia. Com base no outro critério, os estados se distinguem
segundo o fato de que os governantes, sejam eles um, poucos ou
muitos, exerçam o poder legal ou arbitrariamente. Neste segundo
critério fundamenta-se a distinção entre a república e
o despotismo”.
A República contrapõe-se,
na concepção kantiana,
ao despotismo e não à monarquia,
e não se confunde com
democracia. A democracia poderia
gerar o despotismo; a República,
no sentido liberal kantiano,
seria a forma de governo que “trataria
o povo segundo princípios
conforme ao espírito das
Leis de Liberdade”.
O sistema republicano liberal,
a melhor forma de governo segundo
Kant, está configurado
na perfeita repartição
dos poderes dentro do Estado
e assim se expressa: “Cada
Estado contém em si três
poderes, ou seja, a unidade da
vontade geral se decompõe
em três pessoas (trias
política): o Poder
Soberano (a soberania), que reside
na pessoa do legislador; o Poder
Executivo, na pessoa que governa
(em conformidade às leis);
e o Poder Judiciário (que
determina para cada um o seu,
segundo a lei) na pessoa do juiz”.
O Poder Legislativo é o
poder soberano pois representa
a vontade coletiva do povo e
ao mesmo tempo a sua liberdade,
ou seja, se dá a lei (autonomia).
No liberalismo, desde seu fundador,
este poder tem precedência,
sendo os outros – executores
segundo as leis que emanam de
sua vontade; em Locke a representação
dos interesses econômicos
(questão da propriedade
como núcleo da reflexão);
em Kant a representação
de toda a cidadania.
No liberalismo que vinha da concepção
inglesa, a questão da
extensão dos direitos
políticos já estava
posta de forma acabada na época
de Kant, ou seja, a participação
política estava reservada
aos proprietários. Esta
idéia liberal sofreu distorção
com a Revolução
Francesa gerando o democratismo.
Kant, que procura racionalizar
o processo político conforme
já fizera com o problema
do conhecimento, enfrenta as
posições inglesa
e a francesa e daí infere
o seguinte: é necessário,
primeiro, determinar a composição
do quadro dos direitos políticos,
ou seja, quem dele deve participar.
Em primeiro lugar, vai definir
quem são os cidadãos
e como reconhecê-los pelos
atributos que são: liberdade,
igualdade e independência.
Kant, como sempre, empregará sua
própria filosofia no sentido
da coerência da definição,
diz ele: “Ninguém
pode me obrigar a ser feliz à sua
maneira (...), mas cada um pode
buscar a felicidade segundo o
caminho que parece bom para ele,
sempre que não prejudique
a liberdade dos outros de visar
a mesma meta de forma que sua
liberdade possa coexistir com
a liberdade de qualquer outro
segundo uma possível lei
universal”.
Diante desta definição
de liberdade, todos que estão
sob a jurisdição
de um Estado são livres,
desde que este não intervenha
na meta de vida traçada
em liberdade.
Quando à igualdade diante
do Estado, Kant acha que todos
são também iguais,
pois esta igualdade é entendida
em sentido formal, ou seja, iguais
perante a lei, diz ele: “Com
relação ao direito
(...) eles (os cidadãos)
são, como súditos,
todos iguais entre si, porque
ninguém pode exercer coação,
a não ser em virtude da
lei pública (e por meio
do executor dela, o soberano);
mas, com base nessa mesma lei
pública, também
qualquer outro pode resistir
contra ele de igual maneira”.
Diante da igualdade formal cada
um pode elevar-se na escala social,
seja cultural ou economicamente.
A partir de Locke já estava
estabelecida a igualdade desde
o nascimento.
A questão da independência,
o terceiro atributo para completar
a cidadania, Kant define como
sendo de origem econômica.
No Estado todos têm (ou
devem ter) a liberdade e a igualdade,
mas a independência deve
ser conquistada e isto se dá pela
forma do trabalho e não
apenas conforme a propriedade
no liberalismo inglês.
Kant, nesta parte, lança
uma separação na
atividade do trabalho e considera
apenas produtiva aquela que depende
do próprio impulso para
a sobrevivência ou os que
estão no comando de outros.
Veja-se este pensamento: “O
trabalhador empregado numa loja
ou numa fábrica; o servidor
(não aquele que está ao
serviço do Estado) (...)
todas as mulheres e em geral
todos aqueles que na conservação
da própria existência
(na manutenção
e na proteção)
não dependem do próprio
impulso, mas dos comandos dos
outros (fora do comando do Estado)
carecem de personalidade civil,
e sua existência é de
certa forma somente inerência”.
Embora Kant tenha mantido a separação
civil daqueles que ainda não
podiam participar do processo
político, conforme já foi
considerado acima, os dependentes
de um modo geral, os empregados
comuns, os servidores, as mulheres,
avançou mesmo assim o
escopo da idéia liberal
estendendo-a a todos considerados
independentes conforme sua definição.
Para Kant somente aqueles que
desfrutam uma certa posição,
por exemplo, trabalhadores autônomos,
artesãos e outros, poderiam
participar como cidadãos
do processo de organização
política. É necessário
que se compreenda sua posição
dentro da época. O processo
de democratização
da idéia liberal é fenômeno
posterior à segunda metade
do século XIX. (Ver também KANT).
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