Dicionário das Obras Básicas da
Cultura Ocidental

Antonio Paim

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Escritos políticos, de Kant

Embora Kant não haja dedicado expressamente nenhuma obra à política, tratou de questões relacionadas ao tema em diversos textos. Assim, por exemplo, no livro que intitulou de Para a paz perpétua (1796), formulou aquelas regras que deveriam reger as relações entre as nações – inclusive o princípio da autodeterminação dos povos – adotadas pela Organização das Nações Unidas. Devido ao fato, há em muitas línguas coletâneas com o título de Escritos políticos. Entre os mais famosos comentários desses textos encontra-se Direito e Estado no pensamento de Immanuel Kant, de Norberto Bobbio, traduzido ao português pela Editora da Universidade de Brasília, sucessivamente reeditado.

Nos Escritos políticos de Kant sobressai a sua concepção do Estado Liberal de Direito, motivo pelo qual é considerado, juntamente com Locke, fundador da doutrina liberal. As linhas gerais dessa fundamentação acham-se resumidas adiante.

Kant abordou os temas clássicos da teoria política do seu tempo, notadamente as questões do estado de natureza e do contrato social. Em relação a estes, buscou sobretudo despi-los da condição de fato histórico – o que levava a uma discussão inócua e sem sentido porquanto centrada em hipótese de comprovação impossível –, para  transformá-los em entes de razão. Afirmaria taxativamente que “é inútil buscar as origens históricas desse mecanismo, ou seja, é impossível analisar o ponto de partida da sociedade civil”. Advertiu também que essa discussão serviu de pretexto aberto para o mais exacerbado arbítrio, tendo em vista o curso seguido pela Revolução Francesa.

Kant situa-se entre os primeiros pensadores que formularam com toda a clareza a idéia de que o Estado não tem fins próprios, isto é, os seus fins devem coincidir com os fins múltiplos dos indivíduos. Comentando essa formulação clássica do Estado Liberal, escreve Bobbio na obra antes mencionada: “Através de uma metáfora, esta concepção de Estado foi chamada de Estado-protetor, para significar que sua tarefa não é dirigir os súditos para este ou aquele fim, mas unicamente vigiá-los para impedir que, na busca de seus próprios fins, cheguem a conflitos. Através de uma metáfora mais atual, seria possível comparar o Estado Liberal, não a um protetor (ou, como também foi dito, a um vigia noturno), mas a um guarda de trânsito com a tarefa não de indicar de forma imperativa aos motoristas qual direção devem seguir, mas unicamente de agir de maneira que, ordenando a circulação, cada um possa alcançar, da melhor maneira e de modo compatível com igual direito dos outros, sua própria meta”.

O Estado tem como fim a liberdade e não a busca da felicidade de seus súditos, como era suposição generalizada na época em que meditou o mestre de Köenigsberg. Em contraposição a essa crença, afirmaria taxativamente que “o bem público, que acima de tudo deve ser levado em consideração, é precisamente a constituição legal que garante a cada um sua liberdade através da lei; com isso continua lícita para ele a busca de sua própria felicidade por meio do caminho que lhe parece melhor, sempre que não viole a liberdade geral em conformidade com a lei e, portanto, o direito dos outros consorciados”.

Kant também facultou uma definição precisa de liberdade civil ou jurídica ao estabelecer que consiste na “faculdade de fazer tudo aquilo que se quer sempre que não seja feita injustiça a pessoa alguma”. A liberdade dos cidadãos está portanto subordinada à lei e termina justamente onde pode interferir na liberdade dos outros.
A idéia central ou o postulado básico sobre o qual assenta-se a ordem política, o Estado, na concepção de Kant, está expresso desta forma: “O princípio e a idéia da formação do Estado não é o princípio da felicidade universal, mas da liberdade segundo leis universais”.

Daí decorre o modo como vai derivar sua organização política ou como interpreta a melhor forma de governo escapando ao paternalismo e ao democratismo.

O bom ou mau governo não dependerá mais das pessoas que detêm o poder mas tão-somente de sua forma orgânica, ou seja, de como se constitui.  A boa forma de governo na teorização de Kant seria a republicana, mas é necessário que se observe a definição de República, a qual não se limita a uma oposição à forma monárquica conforme a interpretação geral. A monárquica inclusive pode ser republicana, depende apenas de se libertar do despotismo e do absolutismo. A monarquia constitucional, a qual impõe limitação do poder do monarca e estabelece a repetição dos poderes, já poderia ser considerada, segundo Kant, uma República. Para tanto, vejamos como interpreta Bobbio este momento:

“Das formas de governo Kant fala em dois momentos: no pequeno tratado Sobre a Paz Perpétua e na Metafísica dos Costumes. Pensa ele que, para distinguir as formas de governo, podem ser adotados dois critérios diferentes de distinção: ou leva em conta a diferença das pessoas que detêm o poder soberano, ou se leva em conta a diferença no modo de governar. Com base no primeiro critério, o Estado é caracterizado segundo o fato de que o governo seja regido por um, por poucos, ou por todos, e tem-se assim as três formas tradicionais (conhecidas já na filosofia política grega e estudadas de maneira particular por Aristóteles) da autocracia, da aristocracia e da democracia. Com base no outro critério, os estados se distinguem segundo o fato de que os governantes, sejam eles um, poucos ou muitos, exerçam o poder legal ou arbitrariamente. Neste segundo critério fundamenta-se a distinção entre a república e o despotismo”.

A República contrapõe-se, na concepção kantiana, ao despotismo e não à monarquia, e não se confunde com democracia. A democracia poderia gerar o despotismo; a República, no sentido liberal kantiano, seria a forma de governo que “trataria o povo segundo princípios conforme ao espírito das Leis de Liberdade”.

O sistema republicano liberal, a melhor forma de governo segundo Kant, está configurado na perfeita repartição dos poderes dentro do Estado e assim se expressa: “Cada Estado contém em si três poderes, ou seja, a unidade da vontade geral se decompõe em três pessoas (trias política): o Poder Soberano (a soberania), que reside na pessoa do legislador; o Poder Executivo, na pessoa que governa (em conformidade às leis); e o Poder Judiciário (que determina para cada um o seu, segundo a lei) na pessoa do juiz”. O Poder Legislativo é o poder soberano pois representa a vontade coletiva do povo e ao mesmo tempo a sua liberdade, ou seja, se dá a lei (autonomia).

No liberalismo, desde seu fundador, este poder tem precedência, sendo os outros – executores segundo as leis que emanam de sua vontade; em Locke a representação dos interesses econômicos (questão da propriedade como núcleo da reflexão); em Kant a representação de toda a cidadania.

No liberalismo que vinha da concepção inglesa, a questão da extensão dos direitos políticos já estava posta de forma acabada na época de Kant, ou seja, a participação política estava reservada aos proprietários. Esta idéia liberal sofreu distorção com a Revolução Francesa gerando o democratismo. Kant, que procura racionalizar o processo político conforme já fizera com o problema do conhecimento, enfrenta as posições inglesa e a francesa e daí infere o seguinte: é necessário, primeiro, determinar a composição do quadro dos direitos políticos, ou seja, quem dele deve participar.

Em primeiro lugar, vai definir quem são os cidadãos e como reconhecê-los pelos atributos que são: liberdade, igualdade e independência. Kant, como sempre, empregará sua própria filosofia no sentido da coerência da definição, diz ele: “Ninguém pode me obrigar a ser feliz à sua maneira (...), mas cada um pode buscar a felicidade segundo o caminho que parece bom para ele, sempre que não prejudique a liberdade dos outros de visar a mesma meta de forma que sua liberdade possa coexistir com a liberdade de qualquer outro segundo uma possível lei universal”.

Diante desta definição de liberdade, todos que estão sob a jurisdição de um Estado são livres, desde que este não intervenha na meta de vida traçada em liberdade.

Quando à igualdade diante do Estado, Kant acha que todos são também iguais, pois esta igualdade é entendida em sentido formal, ou seja, iguais perante a lei, diz ele: “Com relação ao direito (...) eles (os cidadãos) são, como súditos, todos iguais entre si, porque ninguém pode exercer coação, a não ser em virtude da lei pública (e por meio do executor dela, o soberano); mas, com base nessa mesma lei pública, também qualquer outro pode resistir contra ele de igual maneira”.

Diante da igualdade formal cada um pode elevar-se na escala social, seja cultural ou economicamente. A partir de Locke já estava estabelecida a igualdade desde o nascimento.

A questão da independência, o terceiro atributo para completar a cidadania, Kant define como sendo de origem econômica. No Estado todos têm (ou devem ter) a liberdade e a igualdade, mas a independência deve ser conquistada e isto se dá pela forma do trabalho e não apenas conforme a propriedade no liberalismo inglês. Kant, nesta parte, lança uma separação na atividade do trabalho e considera apenas produtiva aquela que depende do próprio impulso para a sobrevivência ou os que estão no comando de outros. Veja-se este pensamento: “O trabalhador empregado numa loja ou numa fábrica; o servidor (não aquele que está ao serviço do Estado) (...) todas as mulheres e em geral todos aqueles que na conservação da própria existência (na manutenção e na proteção) não dependem do próprio impulso, mas dos comandos dos outros (fora do comando do Estado) carecem de personalidade civil, e sua existência é de certa forma somente inerência”.

Embora Kant tenha mantido a separação civil daqueles que ainda não podiam participar do processo político, conforme já foi considerado acima, os dependentes de um modo geral, os empregados comuns, os servidores, as mulheres, avançou mesmo assim o escopo da idéia liberal estendendo-a a todos considerados independentes conforme sua definição.

Para Kant somente aqueles que desfrutam uma certa posição, por exemplo, trabalhadores autônomos, artesãos e outros, poderiam participar como cidadãos do processo de organização política. É necessário que se compreenda sua posição dentro da época. O processo de democratização da idéia liberal é fenômeno posterior à segunda metade do século XIX. (Ver também KANT).

 

 

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