Dicionário das Obras Básicas da
Cultura Ocidental

Antonio Paim

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Esaú e Jacó e Memorial de Aires, de Machado de Assis

O Conselheiro Aires regressou ao Brasil em fevereiro de 1888, depois de ter passado grande parte de sua vida no exterior, como diplomata. Voltou em definitivo ao país por ter se aposentado. Confidencía Machado de Assis: “Quando o Conselheiro Aires faleceu, acharam-se- lhe na secretária sete cadernos manuscritos, rijamente encadernados em papelão”. Os seis primeiros numerados e, o sétimo, batizado de último. Entendeu-se que era para ser publicado em separado. Machado de Assis assim explica o título:: “Quanto ao título, foram lembrados vários, em que o assunto se pudesse resumir, Ab ovo, por exemplo, apesar do latim; venceu, porém, a idéia de lhe dar estes dois nomes que o próprio Aires citou uma vez: Esaú e Jacó.”

Tanto Esaú e Jacó como o próprio Memorial de Aires contêm as histórias de personagens dos quais se dirá. Contudo, a grande criação do autor é o próprio Conselheiro Aires, que, como diz, “não representou papel eminente neste mundo; percorreu a carreira diplomática e aposentou-se. Nos lazeres do ofício, escreveu o Memorial, que, aparado das páginas mortas ou escuras, apenas daria (e talvez dê) para matar o tempo da barca de Petrópolis”.

O primeiro livro (Esaú e Jacó), pela pena do Conselheiro, conta a história de dois gêmeos (Pedro e Paulo) absolutamente incompatíveis. A descrição da rivalidade dos dois é um verdadeiro primor. Desde o berço implicam um com o outro; adolescentes recorrem aos murros. Adulto, sendo Paulo republicano, Pedro adere fervorosamente à monarquia. Para culminar, apaixonam-se pela mesma moça: Flora. Trata-se, como diz o Conselheiro, de “uma inexplicável ...Acho-lhe um sabor particular de uma pessoa assim, tão humana e tão fora do mundo, tão etérea e tão ambiciosa, ao mesmo tempo, de uma ambição recôndita”. Diante das demonstrações de afeto dos dois rapazes, não consegue dividir-se. “Que o Diabo a entenda, se puder – exclama o Conselheiro--; eu, que sou menos que ele, não acerto de a entender nunca. Ontem parecia querer a um, hoje quis ao outro; pouco antes das despedidas, queria a ambos. Encontrei outrora desses sentimentos alternos e simultâneos, eu mesmo fui uma e outra coisa, e sempre me entendi a mim. Mas aquela menina e moça ... A condição dos gêmeos explicará esta inclinação dupla; pode ser também que alguma qualidade falte a um que sobre a outro, e vice-versa, e ela, pelo gosto de ambos, não acaba de decidir de uma vez. É fantástico, sei; menos fantástico é se eles, destinados á inimizade, acharem nesta mesma criatura um campo estrito de ódio, mas isto os explica a eles, não  a ela...” Flora morre sem decidir-se, depois do que os gêmeos encontrarão sempre pretextos para entrar em disputa.

No Memorial de Aires o centro da história é um casal sem filhos (Aguiar e dona Carmo). Apegam-se a um pequeno (Tristão), de quem dona Carmo era madrinha. Torna-se uma segunda mãe. Regressando a Portugal, os pais verdadeiros levam-lhe o Tristão. O vácuo é preenchido pela jovem viúva Noronha (Fidélia) que, para casar-se, rompe com o pai. Embora viva com um tio, passa a fazer parte da família Aguiar. Tristão regressa ao Brasil para rever os pais adotivos, apaixona-se e casa-se com Fidélia e a leva embora. O casal de velhos experimentam tremenda solidão.

Mestre da arte de escrever, Machado de Assis, além dos mencionados, cria nos dois livros personagens vivos, levando o leitor a participar da vida de gente que nos é tornada familiar. Sem embargo, o grande tipo humano que sai dos dois romances é o Conselheiro Aires.

“A princípio, como diz, Aires cumpriu a solidão, separou-se da sociedade, meteu-se em casa, não aparecia a ninguém ou a raras e de longe em longe. Em verdade estava cansado de homens e de mulher, de festas e vigílias”. Passados uns tempos, confessa: “Mas tudo cansa, até a solidão. Aires entrou a sentir uma ponta de aborrecimento; bocejava, cochilava, tinha sede de gente viva, qualquer que fosse, alegre ou triste.” E assim passa a cultivar a posição de observador privilegiado de pessoas e situações, sem maiores envolvimentos emocionais porquanto acaba por recusar frontalmente o propósito da irmã de vê-lo de novo casado.

O Conselheiro casou-se por conveniência; não teve filhos; deixou a mulher enterrada na Europa. Acredita não ter sido feito para o amor. Mas...

O Conselheiro sente certa atração por Fidélia porém tudo faz para justificar-se e negar maior envolvimento, mesmo depois de haver escrito coisas desse tipo: “Parece feita ao torno, sem que este vocábulo dê nenhuma idéia de rigidez; ao contrário, é flexível. Quero aludir somente á correção das linhas – falo das linhas vistas; as restantes advinham-se e juram-se. Tem a pele macia e clara, com uns tons rubros nas faces, que não lhe ficam mal á viuvez. Foi o que vi logochegada, e mais os olhos e os cabelos pretos; o resto veio vindo pela noite adiante, até que ela se foi embora. Não era preciso mais para completar uma figura interessante no gesto e na conversação. Eu, depois de alguns instantes de exame, eis o que pensei da pessoa”. Pensou repetindo, em inglês, um verso de Shelley (Eu não posso dar o que os homens chamam amor) ao que o próprio Conselheiro acrescentaria: “...e é pena”. Num dos encontros casuais, voltando-se para vê-la, recomenda ao papel que não aceite tudo quanto escreve pois que as memórias podem sobreviver-lhe e revelar aos outros o que não gostaria. “Não papel. Quando sentires que insisto nessa nota, esquiva-se da minha mesa e foge.... Escuta, papel. O que naquela dama Fidélia me atrai é principalmente certa feição de espírito, algo parecida com o sorriso fugitivo que já lhe vi algumas vezes. Quero estuda-la, se tiver ocasião.”

A preocupação do Conselheiro em evitar manifestação de sentimentos leva-o a declarar: “Não gosto delas (lágrimas), nem sei se as verti algum dia, salvo por manha, em menino; mas lá vão.”

Lúcia Miguel Pereira, festejada biógrafa do autor, acha que o Conselheiro Aires encarna a sabedoria da velhice que Machado de Assis forcejava por adquirir e expressar. Escreve a esse propósito: “Como distinguir entre as coisas, como escolher, como saber onde o certo, onde o errado, onde o justo, onde o injusto? O melhor era mesmo sorrir com Aires, ser um velho amável, sufocar os anseios, não querer resolver nada, não pensar, trabalhar com afinco no Ministério, conversar com deleite na Garnier, aquecer-se ao bom lume do carinho de Carolina. E, assim fez durante vários anos, desde que o Conselheiro Aires se lhe instalou definitivamente na pele, até a morte da mulher”.

É quase certo que tenha razão. Veja-se essa tirada do Conselheiro, ainda a propósito de Fidélia: “Vou reconhecendo que esta moça vale ainda mais do que me parecia a princípio. ...O maior valor dela está, além da sensação viva e pura que lhe dão as coiass, na concepção e na análise que sabe achar nelas. Pode ser que haja nisto, da minha parte, um aumento de realidade, mas creio que não. Se fosse nos primeiros dias deste ano, eu poderia dizer que era o pendor de um velho namorado gasto que se comprazia em derreter os olhos através do papel, mas não é isso; lá vão as últimas gabolices do temperamento. Agora, quando muito, só me ficaram as tendências estéticas, e deste ponto de vista, é certo que a viúva ainda me leva os olhos, mas só diante deles.” (Ver também  ASSIS, Machado e Memórias Póstumas de Brás Cubas).


Petrópolis, cidade serrana, era o local chique onde se obtinha refúgio para os dias de calor do Rio de Janeiro. Ia-se de barco, pela baía de Guanabara, até a base da serra, sendo a subida efetuada por trem. A viagem toda devia demorar umas duas horas.

Machado de Assis. Estudo crítico e biografia. 6ª edição. Editora Itatiaia/EDUSP, 1988, p. 250.

 

 

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