Dicionário das Obras Básicas da
Cultura Ocidental

Antonio Paim

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(O) Ensaiador e Diálogo sobre os dois maiores sistemas do mundo, de Galileu

Considera-se que O Ensaiador (1623) contenha as indicações básicas acerca do método de investigação da natureza que deu origem à física moderna. A primeira versão dessa ciência estaria contida no Diálogo sobre os dois maiores sistemas do mundo (1632). Os dois textos representam o fundamental da contribuição de Galileu.
O Ensaiador não corresponde a uma exposição sistemática. Trata-se da refutação às críticas que lhe vinham sendo endereçadas e, por isto mesmo, desenvolve-se ao sabor dessa refutação. Contudo, apresenta claramente a diferença do seu método em relação à física de Aristóteles.

A física de Aristóteles consistia numa consideração dos corpos de um ponto de vista qualitativo. A análise buscava descobrir qual a qualidade essencial. As substâncias corpóreas classificavam-se por sua qualidades distintas.

Em contrapartida, em sua investigação Galileu tinha em vista o estabelecimento de relações mensuráveis. Assim, não se satisfazia com a simples observação. Tratava de descobrir nos processos físicos aquilo que podia ser reproduzido segundo parâmetros fixados pelo investigador. Para alcançar tal objetivo, no estudo do movimento, confeccionou objetos e os fez moverem-se em diferentes circunstâncias, aumentando ou reduzindo a aceleração e outros componentes, como o peso, medindo sempre seus efeitos. Na base dessas experiências refutou a impressão errônea, da percepção comum, segundo a qual a velocidade da queda dos corpos dependeria de suas dimensões (massas), impressão incorporada à física aristotélica. É da autoria de Galileu a lei da queda livre dos corpos, que deu base às novas formas de experimentação destinadas a descobrir as leis do movimento.

Tenha-se presente que o Renascimento italiano dos dois séculos anteriores difundira diálogos de Platão, que foi festejado como uma alternativa a Aristóteles. Havia portanto se espalhado a crença platônica de que a natureza estaria escrita em linguagem matemática. Galileu a expressa deste modo: “A filosofia está escrita neste grandíssimo livro que continuamente está aberto ante nossos olhos (digo: o universo), mas não pode ser entendido se antes não se procure entender sua linguagem e conhecer os caracteres nos quais está escrita. Este livro está escrito em linguagem matemática, e seus caracteres são triângulos, círculos e outras formas geométricas, sem as quais é totalmente impossível entender humanamente uma palavra e sem as quais nos agitamos de modo vão num labirinto escuro”.

Na crítica a Aristóteles contida em O Ensaiador, Galileu recorre à autoridade de Euclides. Embora as teses aristotélicas não pudessem ser confrontadas às euclidianas, porquanto as primeiras diziam respeito à qualidade e as últimas, à quantidade, sua crítica alcançava grande sucesso e trazia ao ridículo uma personalidade que se tornara uma espécie de sustentáculo da doutrina da Igreja. De todos os modos, tratando-se de uma discussão abstrata, foi tolerada, o mesmo não ocorrendo quando o autor confrontou diretamente o sistema ptolomaico ao copernicano. Tal se deu no Diálogo sobre os dois maiores sistemas do mundo, aparecido nove anos depois, em 1632. Embora não tome partido expressamente, como se indicará, desencadeia abertamente os seus problemas com a Inquisição.

O tradutor espanhol do Diálogo sobre os dois maiores sistemas do mundo, Antonio Beltrão Mari (Madrid, Alianza Editorial, 1994), na introdução faz uma advertência que, por si só, exprime o significado da obra. Beltrão Mari indica que, embora houvesse numerosas adesões às teorias de Copérnico, estas achavam-se entremeadas por preocupações de ordem mística, como é o caso mais expressivo de Giordano Bruno. Ao contrário disto, Galileu quer dar conta dos problemas exclusivamente físicos que, a seu ver, ainda impediam uma adesão definitiva à teoria heliocêntrica. E aqueles problemas, como indica Beltrão Mari, eram muito sérios. Resume-os deste modo: “Uma Terra móvel eliminava toda a física vigente. Em decorrência, a partir da física e da cosmologia aristotélicas, que eram as doutrinas aceitas, não era automático o entendimento de que os corpos continuassem caindo na direção do centro da Terra, se agora não mais se constituía no centro do Universo. Era incrível que, movendo-se a Terra numa velocidade superior a 1500 km horários, tal fato não produzisse nenhum efeito perceptível. O heliocentrismo e o movimento terrestre copernicanos poderiam ser aceitos como recursos matemáticos mas nunca como a descrição do mundo real”. Assim, o mérito de Galileu, com seus experimentos e princípios daí derivados, reside em haver tornado aceitável o sistema copernicano. Atuam neste sentido a lei da queda dos corpos, antes referida, e também a relatividade do movimento e o princípio de inércia. O Diálogo, como procura comprovar Beltrão Mari, preencheu as principais lacunas da teoria de Copérnico. Embora corresponda à apresentação dos dois sistemas, a superioridade de Copérnico em relação a Ptolomeu torna-se evidente. Talvez por isto, a Igreja não haja aceito que se tratava de uma exposição “neutra”, que era o permitido, e a condenasse.

Sabe-se que o compromisso de Galileu com o Papa era o de que exporia os argumentos em favor do geocentrismo e do heliocentrismo, deixando entretanto a avaliação em suspenso. Vejamos como Galileu atende àquele compromisso. Na década de vinte tivera lugar uma polêmica acerca do movimento das marés e, a esse propósito, Galileu divulgara um texto. É um exemplo expressivo de como, na verdade, Copérnico é que sai fortalecido. Assim, não defende diretamente o movimento terrestre mas afirma que se a Terra realmente se movesse o fluxo e refluxo do mar seriam conseqüências necessárias daquele movimento.

A força da argumentação de Galileu constante do Diálogo não reside apenas em que critica o método e as teses filosóficas de Aristóteles mas o faz invocando exemplos advindos de seus experimentos. Além disto, não pretende negar a perfeição e a ordem presentes no Universo, entendidas como prova de sua origem divina. Apenas essa premissa de ordem geral pode perfeitamente sustentar-se a partir do heliocentrismo. Assim, escreve no Diálogo: “Não há dúvida de que para manter a disposição ótima e a ordem perfeita das partes do Universo não existem mais que o movimento circular e o repouso. Quanto ao movimento retilíneo, não vejo que possa servir mais do que para explicar o posicionamento natural de fragmentos de algum dos corpos integrais que, por algum acidente, se tivessem separado e desviado seu sentido”.

O Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo está estruturado tomando por modelo ao diálogo platônico – que, já se disse, tem a forma de uma peça de teatro –, no qual intervêm três personagens. São quatro os “atos” dessa peça, a que chama de “jornadas”. A Quarta jornada chegou a ser classificada como um “apêndice desconcertante de um trabalho brilhante”, devido ao fato de ser inconcluso. A crítica perde de vista o contexto histórico. Para comprovar a sua improcedência, basta ter presente que o autor foi obrigado a desdizer-se, pela Inquisição, escapando de morrer na prisão, ou queimado na fogueira, por circunstâncias fortuitas. (Ver também PTOLOMEU e GALILEU, Galilei).

 

 

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