(O) Ensaiador e Diálogo
sobre os dois maiores sistemas
do mundo, de Galileu
Considera-se que O Ensaiador (1623)
contenha as indicações
básicas acerca do método
de investigação
da natureza que deu origem à física
moderna. A primeira versão
dessa ciência estaria contida
no Diálogo sobre os
dois maiores sistemas do mundo (1632).
Os dois textos representam o
fundamental da contribuição
de Galileu.
O Ensaiador não corresponde a uma exposição sistemática.
Trata-se da refutação às críticas que lhe vinham
sendo endereçadas e, por isto mesmo, desenvolve-se ao sabor dessa refutação.
Contudo, apresenta claramente a diferença do seu método em relação à física
de Aristóteles.
A física de Aristóteles
consistia numa consideração
dos corpos de um ponto de vista
qualitativo. A análise
buscava descobrir qual a qualidade
essencial. As substâncias
corpóreas classificavam-se
por sua qualidades distintas.
Em contrapartida, em sua investigação
Galileu tinha em vista o estabelecimento
de relações mensuráveis.
Assim, não se satisfazia
com a simples observação.
Tratava de descobrir nos processos
físicos aquilo que podia
ser reproduzido segundo parâmetros
fixados pelo investigador. Para
alcançar tal objetivo,
no estudo do movimento, confeccionou
objetos e os fez moverem-se em
diferentes circunstâncias,
aumentando ou reduzindo a aceleração
e outros componentes, como o
peso, medindo sempre seus efeitos.
Na base dessas experiências
refutou a impressão errônea,
da percepção comum,
segundo a qual a velocidade da
queda dos corpos dependeria de
suas dimensões (massas),
impressão incorporada à física
aristotélica. É da
autoria de Galileu a lei da queda
livre dos corpos, que deu base às
novas formas de experimentação
destinadas a descobrir as leis
do movimento.
Tenha-se presente que o Renascimento
italiano dos dois séculos
anteriores difundira diálogos
de Platão, que foi festejado
como uma alternativa a Aristóteles.
Havia portanto se espalhado a
crença platônica
de que a natureza estaria escrita
em linguagem matemática.
Galileu a expressa deste modo: “A
filosofia está escrita
neste grandíssimo livro
que continuamente está aberto
ante nossos olhos (digo: o universo),
mas não pode ser entendido
se antes não se procure
entender sua linguagem e conhecer
os caracteres nos quais está escrita.
Este livro está escrito
em linguagem matemática,
e seus caracteres são
triângulos, círculos
e outras formas geométricas,
sem as quais é totalmente
impossível entender humanamente
uma palavra e sem as quais nos
agitamos de modo vão num
labirinto escuro”.
Na crítica a Aristóteles
contida em O Ensaiador,
Galileu recorre à autoridade
de Euclides. Embora as teses
aristotélicas não
pudessem ser confrontadas às
euclidianas, porquanto as primeiras
diziam respeito à qualidade
e as últimas, à quantidade,
sua crítica alcançava
grande sucesso e trazia ao ridículo
uma personalidade que se tornara
uma espécie de sustentáculo
da doutrina da Igreja. De todos
os modos, tratando-se de uma
discussão abstrata, foi
tolerada, o mesmo não
ocorrendo quando o autor confrontou
diretamente o sistema ptolomaico
ao copernicano. Tal se deu no Diálogo
sobre os dois maiores sistemas
do mundo, aparecido nove
anos depois, em 1632. Embora
não tome partido expressamente,
como se indicará, desencadeia
abertamente os seus problemas
com a Inquisição.
O tradutor espanhol do Diálogo
sobre os dois maiores sistemas
do mundo, Antonio Beltrão
Mari (Madrid, Alianza Editorial,
1994), na introdução
faz uma advertência que,
por si só, exprime o significado
da obra. Beltrão Mari
indica que, embora houvesse numerosas
adesões às teorias
de Copérnico, estas achavam-se
entremeadas por preocupações
de ordem mística, como é o
caso mais expressivo de Giordano
Bruno. Ao contrário disto,
Galileu quer dar conta dos problemas
exclusivamente físicos
que, a seu ver, ainda impediam
uma adesão definitiva à teoria
heliocêntrica. E aqueles
problemas, como indica Beltrão
Mari, eram muito sérios.
Resume-os deste modo: “Uma
Terra móvel eliminava
toda a física vigente.
Em decorrência, a partir
da física e da cosmologia
aristotélicas, que eram
as doutrinas aceitas, não
era automático o entendimento
de que os corpos continuassem
caindo na direção
do centro da Terra, se agora
não mais se constituía
no centro do Universo. Era incrível
que, movendo-se a Terra numa
velocidade superior a 1500 km
horários, tal fato não
produzisse nenhum efeito perceptível.
O heliocentrismo e o movimento
terrestre copernicanos poderiam
ser aceitos como recursos matemáticos
mas nunca como a descrição
do mundo real”. Assim,
o mérito de Galileu, com
seus experimentos e princípios
daí derivados, reside
em haver tornado aceitável
o sistema copernicano. Atuam
neste sentido a lei da queda
dos corpos, antes referida, e
também a relatividade
do movimento e o princípio
de inércia. O Diálogo,
como procura comprovar Beltrão
Mari, preencheu as principais
lacunas da teoria de Copérnico.
Embora corresponda à apresentação
dos dois sistemas, a superioridade
de Copérnico em relação
a Ptolomeu torna-se evidente.
Talvez por isto, a Igreja não
haja aceito que se tratava de
uma exposição “neutra”,
que era o permitido, e a condenasse.
Sabe-se que o compromisso de
Galileu com o Papa era o de que
exporia os argumentos em favor
do geocentrismo e do heliocentrismo,
deixando entretanto a avaliação
em suspenso. Vejamos como Galileu
atende àquele compromisso.
Na década de vinte tivera
lugar uma polêmica acerca
do movimento das marés
e, a esse propósito, Galileu
divulgara um texto. É um
exemplo expressivo de como, na
verdade, Copérnico é que
sai fortalecido. Assim, não
defende diretamente o movimento
terrestre mas afirma que se a
Terra realmente se movesse o
fluxo e refluxo do mar seriam
conseqüências necessárias
daquele movimento.
A força da argumentação
de Galileu constante do Diálogo não
reside apenas em que critica
o método e as teses filosóficas
de Aristóteles mas o faz
invocando exemplos advindos de
seus experimentos. Além
disto, não pretende negar
a perfeição e a
ordem presentes no Universo,
entendidas como prova de sua
origem divina. Apenas essa premissa
de ordem geral pode perfeitamente
sustentar-se a partir do heliocentrismo.
Assim, escreve no Diálogo: “Não
há dúvida de que
para manter a disposição ótima
e a ordem perfeita das partes
do Universo não existem
mais que o movimento circular
e o repouso. Quanto ao movimento
retilíneo, não
vejo que possa servir mais do
que para explicar o posicionamento
natural de fragmentos de algum
dos corpos integrais que, por
algum acidente, se tivessem separado
e desviado seu sentido”.
O Diálogo sobre
os dois máximos sistemas
do mundo está estruturado
tomando por modelo ao diálogo
platônico – que,
já se disse, tem a forma
de uma peça de teatro –,
no qual intervêm três
personagens. São quatro
os “atos” dessa peça,
a que chama de “jornadas”.
A Quarta jornada chegou a ser
classificada como um “apêndice
desconcertante de um trabalho
brilhante”, devido ao fato
de ser inconcluso. A crítica
perde de vista o contexto histórico.
Para comprovar a sua improcedência,
basta ter presente que o autor
foi obrigado a desdizer-se, pela
Inquisição, escapando
de morrer na prisão, ou
queimado na fogueira, por circunstâncias
fortuitas. (Ver também PTOLOMEU
e GALILEU, Galilei).
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