Don Juan,O Misantropo e
Tartufo, de Molière
Molière escreveu trinta
peças e as encenou, assumindo
não só o encargo
de dirigi-las como a representação
de um dos papeis centrais. Muitas
delas alcançaram retumbante
sucesso imediato e outras continuam
até hoje atraindo grande
público, em muitos países.
As três peças cujo
conteúdo é brevemente
referido adiante –Don
Juan (1665); O Misantropo (1666)
e Tartufo (1666/1669) – dão
bem uma idéia do seu estilo
e da forma pela qual contribuiu
para enriquecer o Cânon
Ocidental.
Don Juan é talvez
a peça mais famosa e
conhecida de Molière. “Don
Juan” tornou-se sinônimo
do conquistador de mulheres,
que as atrai mas também
se apaixona, sem fixar-se em
nenhuma delas. O divertido
na peça parecem ser
os diálogos de Don Juan
com o criado, Leporelo. Caracterizam-se
pela ambigüidade. Leporelo
condena francamente o comportamento
do patrão. Instado por
vezes a expressar sua opinião,
avança-a, mas esta irá oscilar
em consonância com as
reações de Don
Juan. Mais das vezes acaba
sempre por concluir o raciocínio
em franca discordância
com as premissas de que partira.
Na peça, Molière
conduz o enredo como se Elvira
fosse a grande paixão
de Don Juan. Para casar-se com
ela simplesmente a raptou de
um convento. Mas logo apaixona-se
por outra e foge em seu encalço.
Viagem atribulada de que resulta
um naufrágio, impossibilitando-o
de encontrar-se com o novo amor.
Aparecem duas camponesas rudes
que (pelo menos é o que
dá a entender Leporelo)
não seriam nada atraentes,
sobretudo tratando-se de um fidalgo.
Pintado por Molière como
se não tivesse o menor
senso de ridículo, Don
Juan declara-se a ambas. A teoria
amorosa de Don Juan é a
seguinte: “Você pretende
que uma pessoa se ligue definitivamente
a um só objeto de paixão,
como se fosse o único
existente? Depois disso renunciar
ao mundo – ficar cego para
todas as outras formosuras? Bela
coisa, sem dúvida, uma
pessoa em plena juventude enterrar-se
para sempre na cova de uma sedução,
morto para todas as belezas do
mundo em forma de mulher. Tudo
em nome de uma honra artificial
que chamam fidelidade? Ser fiel é ridículo,
tolo, só serve aos medíocres.
Todas as belas têm direito
a um instante de nosso encantamento.
E a fortuna de ter sido a primeira
não pode impedir às
outras o direito de estremecer
o nosso coração.”
Encenada pela primeira vez em
junho de 1666 – em plena
batalha pela liberação
de O Tartufo, -- O
Misantropo é por
muitos considerada como um diálogo
filosófico porquanto,
ao abordar um fato real, autobiográfico,
suscita questões dessa
ordem: devemos sempre falar a
verdade ou, nas relações
sociais, cabe fazer prevalecer
a cortesia? A aceitação
pela Corte desse tipo de comportamento
não corresponderia à simples
exaltação da hipocrisia?
O herói da peça,
Alceste, é o marido traído,
o que de fato ocorria com o autor.
A adúltera chama-se Celimene
e, nas primeiras exibições,
os dois papeis são representados
por aqueles que, na vida real,
vivem tal situação,
Molière e a esposa (Armande).
Armande Béjart era filha
de Madeleine Béjart, atriz
famosa que atuara juntamente
com Molière durante largo
período e fora sua
amante. Na época do casamento
tinha 40 anos e Armande a metade.
Seus inimigos acusavam-no da
prática de incesto, passando
a viver com quem talvez fosse
sua filha. Tal situação,
na vida real, parece haver contribuído
para nutrir simpatias por Celimene,
sobretudo na circunstância
em que era a própria Armande
a representar o papel.
Os diálogos são
francos. Alceste diz a Celimene
que não pode adaptar-se
a que seu coração
abra-se ao primeiro que aparece,
além de que atrai muitos
apaixonados. Cinicamente, Celimene
diz não ter culpa se a
acham encantadora. Pergunta: “devo
tomar de uma vara para enxotá-los?”. “Não é uma
vara que deveis tomar, exclama
o marido traído, mas um
espírito menos complacente”.
Na peça intervém
Filinte, amigo de Alceste, que
aconselha postura oposta ao inconformismo.
Argumenta: os defeitos são
naturais á espécie
humana; tolera-los e aceita-los
corresponde ao “lubrificante
da vida”. Esta corresponde
a uma engrenagem que não
funcionaria se vigorasse o código
moral de Alceste. O grande rigor
nas virtudes, encontradiço
no tempo antigo, “choca
demasiado nossa época
e os costumes comuns; requer
mortais perfeitos demais; deve-se
ceder aos tempos sem obstinação;
e é uma loucura sem medida
querer corrigir o mundo”.
Derrotado, Alceste renuncia ao
mundo e refugia-se numa vida
solitária.
O Misantropo seria apaixonadamente discutido não apenas sob
Luís XIV mas na sociedade francesa subseqüente. Jean Jacques Rousseau
aprova a rigorosa moral de Alceste. Napoleão, em contrapartida, acha
que Filinte poderia ter sido mais feliz na argumentação.
Das comédias de Molière, Tartufo é a
que lhe acarretou maiores problemas
com a censura. Acolhido por uma
família, Tartufo trata
de parecer o homem mais piedoso
do mundo. O caráter hipócrita
dessa postura aparecerá aos
poucos, com o desenrolar da peça.
Na família, nem todos
deixam-se enganar. Seus maiores
defensores são Orgon,
dono da casa, e sua mãe,
a senhora Penelle. Os dois filhos
(Damis e Mariane) cuidam de desmascará-lo; a
esposa de Orgon (Elmire) acaba
dando-se conta da necessidade
de faze-lo. Numa das disputas
familiares, Orgon assim descreve
o comportamento de Tartufo: “Ah!
se você tivesse visto
como o encontrei passaria a ter
por ele e mesma amizade que lhe
dedico. Todo dia na igreja, com
ar submisso, vinha pôr-se
de joelhos na minha frente. Chamava
a atenção de todos
pelo ardor com que dirigia ao
Céu suas preces; suspirava
com grandes transportes
e beijava humildemente o chão
a todo instante; e quando eu
saía, passava-me depressa à frente
para me oferecer água
benta. Informado, pelo criado
que em tudo o imitava, da indigência
em que vivia e sabedor daquilo
que ele era, eu dava-lhe donativos;
mas, com modéstia, pretendia
sempre devolver-me uma parte. “É demais” dizia-me, “mesmo
a metade é demasiado;
não mereço qualquer
piedade”. E quando eu recusava
receber de volta a metade, diante
de meus olhos distribuía-a
aos pobres. Enfim, o Céu
fez com que eu o trouxesse para
casa, e desde então aqui
tudo parece prosperar. Veja que
tudo ele censura e toma, por
minha honra, interesse extremo,
mesmo por minha mulher; avisa-me
acerca das pessoas que lhe lançam
doces olhares e mostra-se seis
vezes mais ciumento do que eu
mesmo. Você não
poderia acreditar até onde
vai o seu zelo; para ele é pecado
a menor bagatela; um quase nada é suficiente
para escandaliza-lo; outro dia,
chegou ao ponto de acusar-se
por ter pego uma pulga enquanto
rezava e tê-la matado com
cólera exagerada”.
Enquanto age assim para enganar
Orgon, trata de seduzir a esposa
e esta, tendo-o denunciado ao
marido, sem resultado, esconde-o
e leva Tartufo a declarar-se
de modo inquestionável,
tomando além disto ostensivas
precauções para
verificar se estavam a sós.
Orgon afinal convence-se. Tarde
demais. Confiara-lhe um segredo
que pode trazer-lhe grandes dissabores.
Chegou mesmo a doar-lhe os bens,
ao pretender casa-lo com a filha.
Desmascarado, Tartufo denuncia
o segredo e consegue uma ordem
para expulsa-lo e à família
de casa.
Em suas peças, sempre
carregando nas tintas desde que
seu objetivo é, antes
de tudo, fazer rir, Molière
consegue fixar traços
da pessoa humana que muito contribuíram
para enriquecer, e suscitar nuanças,
na galeria de tipos de caráter
e personalidade que Harold Bloom
considera haja sido (magnificamente)
iniciada por Shakespeare, algumas
décadas antes.
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