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Dicionário das Obras
Básicas da
Cultura Ocidental
Antonio
Paim
Índice: a - b - c - d - e - f - g - h - i - j - k - l - m - n - o - p - q - r - s - t - u - v - x - w - z
Discurso sobre o engano
do povo com as palavras de
ordem de liberdade e igualdade, de
Lenine
O discurso em apreço foi
pronunciado em 1919 e retrata
bem o desapreço que o
fundador do Estado Soviético
nutria em relação à democracia
e, em geral, às conquistas
legais no que respeita às
liberdades individuais (de consciência,
de associação etc.)
bem como à liberdade de
imprensa, do mesmo modo que à igualdade
perante a lei, que, no Ocidente,
foi sendo progressivamente estendida à área
social. Como se verá,
a argumentação
tangencia o essencial.
Lenine começa tentando
justificar o não cumprimento
da promessa de estabelecer a
paz, lançando toda a responsabilidade
sobre os outros. Tendo recusado
o caminho aberto pela Assembléia
Constituinte (dissolvida logo
no início do seu governo),
que teria permitido o funcionamento
de instituições
que facultariam a negociação
pacífica entre os interesses
conflitantes, não deixou
a seus oponentes outra alternativa
senão a guerra civil.
Exclama: “Quem quer que
tenha pretensões ao nome
de democrata ou de socialista
de qualquer matiz e lança
entre o povo, de um modo ou de
outro, direta ou indiretamente,
a acusação de que
os bolcheviques prolongam a guerra
civil, uma guerra penosa, uma
guerra dolorosa, quando prometiam
a paz, é um partidário
da burguesia, e nós responder-lhe-emos
assim: pôr-nos-emos contra
ele como fizemos com Koltchak”.(1) Cita
em seguida a exclamação
de um jornal social revolucionário
(partido que fez a maior bancada
na Assembléia Constituinte,
gozando de imensa popularidade
no campo), nestes precisos termos: “Mas
nós não estamos
com Koltchak; é uma injustiça
gritante perseguir-nos” e
responde simplesmente que atribuir
aos bolcheviques a responsabilidade
pela guerra civil é fazer
o jogo daquele grande inimigo,
devendo ser tratado como tal.
Refere também as críticas
de Kautski e, em geral, dos socialistas
europeus, quanto ao caráter
ditatorial do regime soviético
e vai considerar o tema do ângulo
da liberdade. Sua argumentação é simplista
e até pueril como se pode
ver da transcrição
adiante:
“Esses franceses, ingleses e americanos civilizados chamam liberdade,
digamos, à liberdade de reunião. Na Constituição
deve estar escrito: “Liberdade de reunião para todos os cidadãos”. “Tal é”,
dizem eles, “o conteúdo, tal é a manifestação
fundamental da liberdade. E vós, bolchevique, violastes a liberdade
de reunião”.
Sim, respondemos nós,
a vossa liberdade, ingleses,
franceses, americanos, é um
logro se ela contraria a libertação
do trabalho do jugo do capital.
Vós esquecestes um pequeno
pormenor, senhores civilizados.
Esquecestes que a vossa liberdade
está inscrita numa Constituição
que legitima a propriedade privada.
Eis onde está o fundo
da questão”.
Alega em seguida que as grandes
salas, onde é possível
tornar realizável aquela
prerrogativa, “pertencem
aos capitalistas e aos latifundiários
e chamam-se, por exemplo, salas
da “assembléia da
nobreza”. Podeis reunir-vos
livremente, cidadãos da
república democrata da
Rússia, mas isto é propriedade
privada, senão sereis
bolcheviques, criminosos, bandidos,
ladrões, malvados. E nós
dizemos: “Vamos inverter
isto. Primeiro vamos transformar
este edifício de assembléia
da nobreza em edifício
das organizações
operárias, e depois falamos
da liberdade de reunião”.
Com efeito, na Rússia
Soviética tudo foi estatizado
mas também os sindicatos,
cuja liberdade, nos setenta anos
em que o regime funcionou, limitou-se
a aplaudir o ditador de plantão
e seus acólitos.
No tocante à igualdade
escreve o seguinte:
“Engels tinha mil vezes razão quando escreveu: o conceito de igualdade é um
preconceito estúpido e absurdo à margem da supressão das
classes. Os professores burgueses tentaram, a propósito da noção
de igualdade, acusar-nos de querermos tornar cada homem igual aos outros. Eles
tentaram acusar os socialistas desse absurdo, por eles próprios inventado.
Mas eles não sabiam, dada a sua ignorância, que os socialistas – e
concretamente os fundadores do socialismo científico contemporâneo,
Marx e Engels – diziam: a igualdade é uma frase oca se não
se entender por igualdade a supressão das classes. Nós queremos
suprimir as classes, e nesse sentido somos a favor da igualdade. Mas pretender
que nós tornamos todos os homens iguais uns aos outros é uma
frase oca e uma tola invenção de intelectual que, por vezes honestamente,
faz trejeitos e alinha palavras sem conteúdo – quer ele se chame
a si próprio escritor, por vezes cientista ou seja o que for”.
Mas logo Lenine esbarra com o
problema do campesinato que representava
a imensa maioria da população
russa. A classe proprietária
urbana, independentemente das
dimensões do seu negócio,
foi expropriada e perseguida.
Os que não conseguiam
emigrar foram simplesmente fuzilados.
Não só suas empresas
como as próprias casas
foram ocupadas. Mas, e os camponeses?
Como se explica que os bolcheviques
os tratem com mão de ferro,
confiscando suas colheitas e
igualmente fuzilando-os ao menor
sinal de resistência?
O próprio Lenine reconhece
a dificuldade em que se encontra.
Veja-se como a enfrenta. Escreve: “E
aqui abordamos a questão
que suscita mais reprovação
por parte dos nossos inimigos,
que gera mais dúvidas
entre as pessoas inexperientes
e irrefletidas e que mais nos
separa daqueles que querem considerar-se
democratas, socialistas, e que
se ofendem conosco porque não
os consideramos nem democratas
nem socialistas e lhes chamamos
partidários dos capitalistas,
talvez por ignorância,
mas partidários dos capitalistas.
A situação do camponês,
pelos seus costumes, pelas suas
condições de produção,
pelas condições
da sua vida, pelas condições
da sua economia, faz do camponês
meio trabalhador, meio especulador.
Isso é um fato. E não
escapareis a este fato enquanto
não eliminardes o dinheiro,
não eliminardes a troca.
Mas para o fazer são precisos
anos e anos de dominação
estável do proletariado,
porque só o proletariado é capaz
de vencer a burguesia. Quando
nos dizem: “Vós
sois violadores da igualdade,
vós violastes a igualdade
não apenas com os exploradores – com
isso eu talvez ainda esteja de
acordo, declara um qualquer socialista-revolucionário
ou menchevique, sem compreender
o que diz – mas violastes
a igualdade dos operários
com os camponeses, violastes
a igualdade da ‘democracia
do trabalho’, sois uns
criminosos!” Nós
respondemos: “Sim, nós
violamos a igualdade dos operários
com os camponeses e afirmamos
que vós, que defendeis
essa igualdade, sois partidários
de Koltchak”.
As eleições para
a Assembléia Constituinte
realizaram-se em novembro, coincidindo
sua posse com o golpe de Estado
que levou os comunistas ao poder.
Estes não tiveram condições
de impedi-la, valendo a pena
referir a circunstância
por se achar relacionada ao tema
precedente.
Compareceram às eleições
36 milhões de eleitores.
O grande vitorioso seria o Partido
Social Revolucionário,
que era forte em todo o país,
enquanto a base dos bolcheviques
limitava-se às cidades
(tinham também uma forte
organização no
Exército e na Armada,
embora numericamente inferior à dos
sociais revolucionários).
Os sociais revolucionários
alcançaram 58% dos votos
e fizeram maioria na Assembléia
(267 deputados num, total de
520). Os “cadetes” – liberais,
assim chamados porque a sigla
Partido Constitucional Democrata,
em russo, correspondia à palavra Kadiet – conseguiram
13% e os bolcheviques 25%. Dos
4,5 milhões de votantes
no Exército e na Armada,
os sociais revolucionários
tiveram apoio de 1,9 milhão
e os bolcheviques de 1,8 milhão.
A Assembléia Constituinte
instalou-se e elegeu como presidente
um dirigente do Partido Social
Revolucionário. Nesse
mesmo dia foi aprovada a reforma
agrária. A terra deveria
ser confiscada à nobreza,
que detinha a sua propriedade,
e distribuída aos camponeses.
Os bolcheviques eram absolutamente
contrários a tal medida
porquanto pretendiam a sua estatização.
Os bolcheviques abandonaram a
Constituinte nesse primeiro e único
dia de seu funcionamento e, na
mesma noite, promulgaram um decreto
dissolvendo-a, ocupando militarmente
as suas instalações
e prendendo os que esboçaram
qualquer espécie de resistência.
Acontece que os sociais revolucionários
tinham controle sobre grande
número de Soviets(1) e
expressiva representação
no Congresso, dessas organizações
que tomou o poder, que se viu
na contingência de aceitar
a reforma agrária.
No desdobramento das relações
do Estado Soviético com
o campesinato, foram liquidados
fisicamente os que se enriqueceram
concentrando a propriedade em
seguida à reforma – calcula-se
que foram mortos dez milhões
de kulaks, nome russo que os
designava –, obrigados
os camponeses a se organizarem
em fazendas coletivas (kolkojes)
mas facultando-lhes o acesso
a uma propriedade individual,
em comum com os habitantes de
uma mesma aldeia. Essas propriedades
individuais chegaram a corresponder
a mais de 50 milhões de
hectares (quando o país
se reconstituiu depois da guerra,
havia 26 milhões de famílias
no campo, cada uma detendo em
média 2 hectares), que
acabaram respondendo pela oferta
da parcela fundamental dos gêneros
de consumo alimentar (as fazendas
estatais – denominadas
de sovkojes, do mesmo
modo que grande número
de kolkojes, especializaram-se
em determinadas culturas técnicas).
As colheitas individuais passaram
a dispor, igualmente, da prerrogativa
de vender seus produtos em mercados
livres nas cidades.
Outro desmentido
implacável
da hipótese comunista de
que a igualdade adviria da supressão
da propriedade privada – e
da liquidação física
dos burgueses e assemelhados – consistiu
no aparecimento da chamada nomenklatura,
isto é, das pessoas que
assumiram o poder no novo regime.
Acabaram se transformando numa
casta de privilegiadas, enquanto
a imensa maioria, segundo se pôde
comprovar com o fim do regime,
vivia em condições
consideradas, a partir de padrões
ocidentais, abaixo da linha de
pobreza, verdadeiros indigentes,
conforme se pode ver agora, na
televisão, com a vigência
da liberdade de imprensa. A fim
de expressar o caminho seguido
pela nomenklatura para
justificar seus privilégios,
George Orwell (1903-1950) em sua
famosa obra satírica denominada Animal Farm – aliás
numa linha de argumentação
muito próxima da seguida
por Lenine no texto que vimos acompanhando – avançou
a tese segundo a qual “todos
são iguais mas alguns são
mais iguais do que os outros”.
(Ver também LENINE,
Vladimir Ilitich).
(1) Alessandr
Vassilievitch Koltchak (1874-1920),
almirante russo que liderou
a oposição
armada ao Estado Soviético,
tendo organizado um governo
em Omsk, na Sibéria.
Derrotado pelo Exército
vermelho, foi fuzilado.
(1) Soviet em
russo significa Conselho.
Tratava-se de uma organização
que surgiu espontaneamente
no Exército em guerra,
congregando soldados e demais
subalternos, experiência
que os comunistas trataram
de generalizar, constituindo
nas cidades Soviets de Operários.
No desenrolar dos acontecimentos
que se seguiram à queda
da monarquia (fevereiro de
1917), os comunistas lançaram
a palavra de ordem de “Todo
o Poder aos Soviets”. Para
torná-la realidade é que
realizaram um congresso nacional
a 25 de outubro (com a mudança
de calendário, decorrente
da adoção do
vigente no Ocidente, essa
data passou a ser 7 de novembro.
Mas seguiu-se denominando àquele
golpe de Estado de “Revolução
de Outubro”).
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