Dicionário das Obras Básicas da
Cultura Ocidental

Antonio Paim

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De Servo Arbitrio, de Lutero

Lutero tinha da pessoa humana uma visão negativa, haurida em Santo Agostinho. Ainda em 1517, quando elabora uma espécie de sumário de suas convicções diz que “não há virtude moral sem arrogância ou tristeza, isto é, sem pecado” e que, “da parte do homem existe apenas ... resistência contra a graça”. Aceita a idéia de predestinação, segundo a qual a escolha para a salvação é da exclusiva iniciativa da vontade divina, embora não a haja desenvolvido, como fez Calvino. Por isto entendeu que deveria aproveitar a publicação do livro de Erasmo(1) denominado De Libero Arbitrio (livre-arbítrio, vontade livre), aparecido em 1524, para melhor precisar o traço marcante da reforma protestante. Sua obra De Servo Arbitrio (vontade escrava, serva), do ano seguinte, destina-se justamente a refutá-lo.

A questão em debate é nuclear para o estabelecimento do papel da Igreja. Nas discussões que se travaram acerca da liberdade humana, esclareceu-se que o tema era de índole moral e dizia respeito à escolha do bem. A solução de Santo Agostinho consistiu em dizer que, para a escolha do bem, o homem precisa da interveniência da graça divina. No tempo de Lutero, o que se discutia era se para o merecimento da graça era necessária a interveniência da Igreja. Lutero queria conduzir os fiéis a relacionar-se diretamente com Deus.

No aprofundamento desse debate, a filosofia de Aristóteles tornou-se essencial para a Igreja Católica. Aristóteles aventara a doutrina das formas substanciais e acidentais. Para Roma, o pecado seria um acidente que não afetava a substância do homem, desde que a Igreja o perdoasse. Em Portugal, no século XVIII, a física de Newton – que revogava a física aristotélica – chegou a ser recusada sob a alegação de que era uma questão de fé (portanto um dogma) a existência daquelas formas postuladas por Aristóteles. O contrário deixaria a instituição romana sem função.

Erasmo não se limita a repetir a doutrina tradicional sobre o livre arbítrio. Afirma que, consoante a doutrina de Lutero, nada justificava a existência de uma igreja reformada. Acusa diretamente Lutero de incidir num paradoxo.

Aceitando o desafio, Lutero partirá do reconhecimento de que somente Erasmo havia suscitado uma questão nuclear na Reforma, enquanto os outros tangenciaram o essencial ao ater-se exclusivamente a questões tais como as indulgências, a subordinação a Roma, até onde deveria ir a obediência dos príncipes, etc.  O essencial de sua argumentação pode ser apreendido a partir da transcrição a seguir:

“Quem se empenha em corrigir sua vida? Pergunta você, e eu respondo: ninguém, nenhum homem sozinho poderá fazê-lo; porque desses emendadores sem Espírito, Deus não quer nem saber, pois são hipócritas. Serão corrigidos pelo Espírito Santo os eleitos e os piedosos, os demais perecerão na incorreção. Agostinho não diz que não serão coroadas as obras de ninguém, ou as de todos: diz que serão coroadas as de alguns; quer dizer que alguns conseguirão emendar sua vida. Quem acredita que Deus o ama? Pergunta-me, e eu respondo: ninguém acredita, nem poderá acreditar; somente os eleitos, os demais perecerão sem crer, entre críticas e blasfêmias, como você está fazendo! Então, haverá alguns que acreditarão. Mas será que com estes dogmas não se estará abrindo uma janela para a impiedade? É possível; aqueles que praticam a impiedade pertencerão então, à antes mencionada lepra do mal que deve ser tolerada. Não obstante, com os mesmos dogmas, abre-se também a porta para a justiça e a entrada ao céu e o caminho que leva a Deus para os piedosos e os eleitos. No entanto, se seguíssemos o seu conselho e nos mantivéssemos longe destes dogmas, se escondêssemos dos homens a palavra de Deus, de tal maneira que, enganado por uma idéia errada a respeito da salvação, o homem não aprendesse a temer a Deus e a humilhar-se diante dele para atingir a graça e o amor, através do temor: nesse caso realmente estaríamos fechando muito bem essa sua “janela”, e em seu lugar estaríamos abrindo de par em par as portas, melhor dizendo, os abismos e as mandíbulas para a impiedade e mais ainda, para as profundezas do inferno. Assim sendo, nós não entraríamos no céu e tornaríamos impossível a entrada dos outros”. (Ver também LUTERO).


(1) Desiderio Erasmo (1467-1536), conhecido como Erasmo de Roterdam, incumbiu-se de popularizar o humanismo renascentista, que exaltava a dignidade da pessoa humana, confrontando-a diretamente à autoridade divina. No clima da época, sua obra alcançou grande repercussão na Europa, verificando-se “erasmismo” nos diversos países católicos. Até hoje o seu livro Elogio da loucura, em que critica o papado, continua sendo reeditado. De todos os modos, não conduziu sua oposição até o ponto de ruptura, como ocorreria com os contemporâneos Lutero e Calvino.

 

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