Dicionário das Obras Básicas da
Cultura Ocidental

Antonio Paim

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(O) Contrato Social, de Jean-Jacques Rousseau

O Contrato Social foi publicado em 1762. Aparentemente insere-se no grande debate iniciado por Hobbes sobre a instituição da sociedade civil, distinta do estado de natureza, e das razões pelas quais os homens preferiram dispor de um governo ao invés de preservar aquele estado originário. Hobbes havia postulado que este último acabara consistindo numa guerra de todos contra todos, exigindo-se a presença de um soberano para impor a ordem. Admitindo que a sociedade civil fora precedida pelo estado de natureza, Locke partiu da hipótese de que os homens decidiram restringir a própria liberdade a fim de preservar a propriedade. Optaram portanto pela existência da lei. Da tese de Hobbes resulta a preferência pela monarquia absoluta enquanto, a partir de Locke, o Legislativo é que se constitui como poder supremo. Mais tarde esse regime foi denominado de monarquia constitucional.

Rousseau adota todos os mencionados conceitos mas atribui-lhes sentido totalmente diverso a partir de uma novidade que introduz no debate: a noção de vontade geral.
Como escreve na obra em apreço, “os homens retos e simples são difíceis de enganar em virtude de sua simplicidade”. O regime que pudesse basear-se na expressão de sua vontade evidenciaria de pronto em que consiste o bem comum, exigindo sua estruturação pouquíssimas leis. A descrença nessa possibilidade resulta do fato de que, por toda parte, o Estado seja mal constituído.

Para conceber o melhor regime – ainda que os homens não possam aspirar à perfeição, atributo divino – parte de duas idealizações. Primeira: o homem é bom por sua própria natureza, a sociedade é que o corrompeu. Segunda:  a democracia antiga estaria próxima do melhor regime possível, fornecendo-nos o modelo a partir do qual podemos conceber o que nos convém. Seu modelo de democracia é basicamente Roma.

Os passos seguintes dão-se na direção do que se convencionou chamar de democratismo, isto é, uma justificativa do poder pessoal que, experimentado durante a Revolução Francesa marcou o denominado período do Terror (junho, 1793-julho, 1794), quando a guilhotina funcionou ininterruptamente e, nos dois últimos meses, apenas em Paris, foram guilhotinadas 1.300 pessoas. E, no século XX, os regimes totalitários na Rússia e no Leste Europeu.

Embora os homens sejam bons por natureza, a sociedade pode tê-los corrompido de forma irreversível. Escreve em O Contrato Social: “Os povos, assim como os homens, só são dóceis na juventude; ao envelhecer, tornam-se incorrigíveis; uma vez estabelecidos os costumes e enraizados os preconceitos, é empresa vã e arriscada pretender reformá-los; o povo não pode sequer admitir que se toque em seus males para destruí-los, como esses doentes estúpidos e pusilânimes que tremem à simples presença do médico”. (Livro II; cap. VIII)

A circunstância descrita exige obra de destruição, como afirma: “O que torna penosa a obra de legislação não é tanto o que cumpre estabelecer como o que cumpre destruir; e o que torna o sucesso tão raro é a impossibilidade de encontrar a simplicidade da natureza junto com as necessidades da sociedade. Todas essas condições, é verdade, dificilmente acham-se reunidas. Eis porque se vêm poucos estados bem constituídos”. (Livro II; cap. X)

Rousseau condena francamente o governo representativo que estava sendo experimentado na Inglaterra. Em que pese o fato de que, desde a Revolução Gloriosa de 1688, ao longo de portanto quase um século, tenham cessado as guerras civis, escreve o seguinte: “Os deputados do povo não são nem podem ser os seus representantes; são simples comissários, e nada podem concluir definitivamente. Toda lei que o povo não tenha ratificado diretamente é nula, não é uma lei. O povo inglês pensa ser livre, mas está redondamente enganado, pois só o é durante a eleição dos membros do Parlamento; assim que estes são eleitos, ele é escravo, não é nada. Nos breves momentos de sua liberdade, pelo uso que dela faz bem merece perdê-la”. (Livro III; cap. XV)

Ao invés de escolher representantes, o povo deve expressar-se diretamente em assembléias: “O povo reunido – dir-se-á –, que quimera. É uma quimera hoje, mas não o era há dois mil anos. Será que os homens mudaram de natureza?” Em vários momentos históricos, em diversos países – e não só durante a Revolução Francesa –, tentou-se o assembleísmo. A prática evidenciou a facilidade da manipulação da tão louvada “vontade geral”. E quanto isto não foi possível, recorreu-se ao terror, na França, ao chamado “massacre do Rossio”, em Portugal, no curso do movimento revolucionário de 1837 e, sob os comunistas, no século passado, à eficácia da polícia política.

Rousseau não fala diretamente em manipulação. Mas reconheceu a necessidade de um intérprete (privilegiado) da vontade geral. Avançou também a sua preferência pelo sorteio na escolha dos governantes ao invés de eleições. Diz taxativamente que “o expediente do sorteio está mais na natureza da democracia ... (porquanto) em qualquer democracia a magistratura não é uma vantagem mas uma carga onerosa que não se pode, com justiça, impor mais a um particular do que a outro”. (Livro IV; cap. III)

Não falta ao arrazoado a justificação da ditadura, a pretexto de “salvação nacional”.
O Contrato Social contém todos os ingredientes que explicam o desenrolar da Revolução Francesa. Os argumentos para desencadeá-la consistiam na atribuição da soberania exclusivamente ao povo e na tese do caráter provisório da forma monárquica. Como de fato ocorreu nas Cortes Gerais, segundo havia estabelecido, à assembléia popular, em que deve expressar-se a vontade geral, incumbe preliminarmente decidir se “apraz ao povo deixar a administração ao que delas se acham atualmente incumbidos”. De igual modo, a consigna Liberdade, Igualdade e Fraternidade inspirou-se no livro. Também se tentou implantar uma religião sem interferência das igrejas, ministrada diretamente pelo Estado, a que Rousseau denominara de religião civil. (Ver também ROUSSEAU, Jean-Jacques).

 

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