(A) Ciência e a hipótese,
de Henri Poincaré
O livro em epígrafe foi
publicado em 1905, tendo se tornado
um ponto de referência
fundamental no combate ao cientificismo.
Embora este não haja chegado
a desaparecer do pensamento francês – mantendo,
ao contrário, uma grande
vitalidade –, a obra de
Poincaré permitiu que
se estabelecesse uma nova linhagem,
em matéria de filosofia
da ciência, propondo-se
alcançar a superação
do conceito oitocentista de ciência,
em que se baseou a formulação
do positivismo. Esse movimento
fixou-se não apenas na
França, tendo repercutido
amplamente em outros países,
notadamente em Portugal e no
Brasil.
Em A ciência e a hipótese,
Poincaré estabelece uma
distinção fundamental
entre física experimental
e física matemática. É certo
que a experiência é a
fonte única da verdade;
que somente ela pode nos ensinar
algo de novo e, ainda, apenas
ela pode proporcionar-nos certezas.
Acontece que não basta
observar; acumular observações. É necessário
generalizá-las. Faz-se
ciência com fatos do mesmo
modo que se faz uma casa com
tijolos. Mas a acumulação
de fatos não chega a constituir-se
em ciência do mesmo modo
que um monte de tijolos não
corresponde a uma casa.
Além disto, a ciência
deve ser capaz de fazer previsões.
E, sem generalizar, as previsões
seriam impossíveis. Semelhante
imperativo é que acabaria
levando à crescente sofisticação
dos instrumentos matemáticos
empregados no ordenamento das
experiências. Esta é uma
forma de corrigi-los.
Tais ordenamentos e correções
deverão facultar-nos a
possibilidade de prever outros
tantos fatos. Adverte: “Somente
não nos devemos esquecer
que apenas os primeiros são
certos enquanto todos os outros
são prováveis.
Por mais sólida que possa
parecer-nos uma previsão,
jamais estaremos absolutamente
seguros de que a experiência
não possa desmenti-la;
jamais estaremos absolutamente
seguros de que a experiência
não a desmentirá,
se nos decidimos a verificá-la.
Mas a probabilidade é com
freqüência suficientemente
grande para que possamos nos
contentar na prática.
Mais vale prever sem certeza
do que nada prever”. As
verificações nem
sempre são exeqüíveis
a nível de laboratório,
sendo mais das vezes negligenciável
o seu número, razão
pela qual cabe sobretudo valorizar
o aumento do rendimento da máquina
científica.
Escreve: “Permitam-me comparar
a ciência a uma biblioteca
que deve crescer incessantemente;
o bibliotecário não
dispõe para as suas compras
de créditos suficientes;
deve esforçar-se por usá-los
com parcimônia.
A física experimental
encarrega-se das compras; somente
ela pode enriquecer-nos a biblioteca.
Quanto à física
matemática, terá por
missão esboçar
o catálogo. Se o catálogo
for bem feito, a biblioteca não
ficará mais rica. Mas
poderá ajudar o leitor
a servir-se destas riquezas”.
Em suma, a física matemática
deve promover a generalização
de modo a aumentar o rendimento
científico.
É preciso levar em conta também que a generalização
não se efetiva sem pressupostos. Louva-se da crença na unidade
e na simplicidade da ciência. O primeiro aspecto não suscita controvérsias.
No segundo, entretanto, supõe-se que a crença na simplicidade
possa levar a equívocos. Mas corrigíveis, como se tem verificado,
cabe ter presente.
A partir da própria física
newtoniana tornou-se patente
que a simplicidade de suas leis
do movimento encobriam realidades
complexas, segundo determinadas
dimensões do universo.
Em que pese a circunstância,
Poincaré entende que o
cientista não pode renunciar,
no processo de generalização
e de ordenação
dos fatos observados, àquela
busca porque se trata de uma
condição de progresso
do conhecimento.
Esclarece: “Sem dúvida,
se nossos meios de investigação
tornam-se cada vez mais penetrantes,
descobriremos o simples sob o
complexo; depois o complexo sob
o simples; depois novamente o
simples sob o complexo, sem que
possamos prever o último
passo. Contudo é necessário
deter-se em algum ponto; para
que a ciência seja possível, é necessário
deter-se quando a simplicidade
for encontrada”. Adianta
ainda que não seria apropriado
recusar uma lei simples que haja
sido observada em muitos casos
particulares; podemos admitir
legitimamente que seja verdadeira
em casos análogos. Não
fazê-lo seria atribuir
ao acaso um papel inadmissível.
Tal é precisamente, segundo
enfatiza, a função
da crença na simplicidade.
Resta fixar o papel da hipótese.
O ordenamento (a generalização)
dos fatos obtidos pela experimentação
somente pode efetivar-se a partir
da hipótese que preside
a investigação.
Assim, a hipótese desempenha
papel primordial. Naturalmente
está sujeita à verificação
e, se não a suporta, deve
ser abandonada sem relutância.
O cientista não deve fazê-lo
de mau humor.
Em geral, as hipóteses
são suficientemente amadurecidas,
levam em conta todos os fatores
conhecidos que poderiam intervir
no fenômeno. Se não é comprovada,
por certo há de ter surgido
algo de inesperado e extraordinário.
Aparece o novo e o desconhecido.
Nessa circunstância, pode
dar-se o caso de que produza
melhores resultados que a situação
anterior. Corresponde antes de
mais nada à chamada experiência
decisiva com a qual nem sempre
se pode contar.
Quanto às regras para
a formulação das
hipóteses, Poincaré recomenda
que se deve evitar aquelas que
pareçam tácitas
porquanto podemos estar sendo
influenciados inconscientemente.
Hipóteses desse tipo são
difíceis de abandonar,
mas, desde que nos demos conta
de que correspondem a tais casos,
devemos recusá-las sem
quaisquer remorsos.
Cumpre ainda evitar que as hipóteses
sejam desnecessariamente multiplicadas.
As teorias não podem ser
construídas sobre hipóteses
múltiplas pois assim,
se condenadas pela experiência,
não sabemos qual deva
ser abandonada ou alterada. Tampouco
sua verificação
simultânea poderia ocorrer.
Quanto ao fato de que as teorias
científicas tenham vida
relativamente efêmera,
não justifica a conclusão
precipitada de que tal fato traduziria
o fracasso da ciência.
Trata-se do que denomina de “ceticismo
superficial”, resultante
da incompreensão de qual
seja o verdadeiro papel das teorias
científicas.
A teoria de Fresnel (1788-1827)
que atribuía à luz
os movimentos do éter
foi abandonada pela de Maxwell
(1831-1879). Isto não
quer dizer que a obra de Fresnel
tenha sido em vão. Fresnel
não pretendia saber se
existe realmente o éter,
se este é ou não
formado de átomos, se
estes átomos realmente
se movem neste ou naquele sentido.
Seu objetivo consistia em prever
os fenômenos óticos.
Ora, prossegue, a teoria de Fresnel
sempre permite fazê-lo,
do mesmo modo que antes de Maxwell.
O aprimoramento proporcionado
pela obra deste último
consiste em precisar melhor o
que na teoria de Fresnel chamou-se
de movimento. Maxwell
permitir compreender que se trata
de corrente elétrica.
Tal refinamento não significa
que nossas imagens possam substituir
os objetos reais que a natureza
nos esconderá eternamente.
Conclui: “As verdadeiras
relações entre
estes objetos reais são
a única realidade que
podemos alcançar, com
a exclusiva condição
de que haja as mesmas relações
entre estes objetos que as que
estabelecemos entre as imagens
que somos forçados a colocar
em seu lugar. Se estas relações
nos são conhecidas, pouco
importa se julgamos cômodo
substituir uma imagem por outra”.
A física, observa Poincaré,
marcha no sentido de integrar
número cada vez maior
de fenômenos. Evolui, assim,
no sentido da unidade e da simplicidade.
Ao mesmo tempo, a observação
nos revela sempre novos fenômenos.
Nos fenômenos que nos são
conhecidos, tornam-se acessíveis
detalhes cada vez mais variados.
Aquilo que supomos simples, revela-se
complexo. Na medida em que triunfa
a primeira tendência a
ciência é possível.
Contudo, não podemos “a
priori” supor que os novos
fenômenos dispersos poderão
sempre ser integrados à síntese
geral. Resta-nos comparar a ciência
de nossos dias com a precedente.
O certo é que, embora
as novas conquistas signifiquem
progresso, envolvem também
sacrifícios.
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