Dicionário das Obras Básicas da
Cultura Ocidental

Antonio Paim

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(A) Ciência e a hipótese, de Henri Poincaré

O livro em epígrafe foi publicado em 1905, tendo se tornado um ponto de referência fundamental no combate ao cientificismo. Embora este não haja chegado a desaparecer do pensamento francês – mantendo, ao contrário, uma grande vitalidade –, a obra de Poincaré permitiu que se estabelecesse uma nova linhagem, em matéria de filosofia da ciência, propondo-se alcançar a superação do conceito oitocentista de ciência, em que se baseou a formulação do positivismo. Esse movimento fixou-se não apenas na França, tendo repercutido amplamente em outros países, notadamente em Portugal e no Brasil.

Em A ciência e a hipótese, Poincaré estabelece uma distinção fundamental entre física experimental e física matemática. É certo que a experiência é a fonte única da verdade; que somente ela pode nos ensinar algo de novo e, ainda, apenas ela pode proporcionar-nos certezas.

Acontece que não basta observar; acumular observações. É necessário generalizá-las. Faz-se ciência com fatos do mesmo modo que se faz uma casa com tijolos. Mas a acumulação de fatos não chega a constituir-se em ciência do mesmo modo que um monte de tijolos não corresponde a uma casa.

Além disto, a ciência deve ser capaz de fazer previsões. E, sem generalizar, as previsões seriam impossíveis. Semelhante imperativo é que acabaria levando à crescente sofisticação dos instrumentos matemáticos empregados no ordenamento das experiências. Esta é uma forma de corrigi-los.

Tais ordenamentos e correções deverão facultar-nos a possibilidade de prever outros tantos fatos. Adverte: “Somente não nos devemos esquecer que apenas os primeiros são certos enquanto todos os outros são prováveis. Por mais sólida que possa parecer-nos uma previsão, jamais estaremos absolutamente seguros de que a experiência não possa desmenti-la; jamais estaremos absolutamente seguros de que a experiência não a desmentirá, se nos decidimos a verificá-la. Mas a probabilidade é com freqüência suficientemente grande para que possamos nos contentar na prática. Mais vale prever sem certeza do que nada prever”. As verificações nem sempre são exeqüíveis a nível de laboratório, sendo mais das vezes negligenciável o seu número, razão pela qual cabe sobretudo valorizar o aumento do rendimento da máquina científica.

Escreve: “Permitam-me comparar a ciência a uma biblioteca que deve crescer incessantemente; o bibliotecário não dispõe para as suas compras de créditos suficientes; deve esforçar-se por usá-los com parcimônia.

A física experimental encarrega-se das compras; somente ela pode enriquecer-nos a biblioteca. Quanto à física matemática, terá por missão esboçar o catálogo. Se o catálogo for bem feito, a biblioteca não ficará mais rica. Mas poderá ajudar o leitor a servir-se destas riquezas”. Em suma, a física matemática deve promover a generalização de modo a aumentar o rendimento científico.

É preciso levar em conta também que a generalização não se efetiva sem pressupostos. Louva-se da crença na unidade e na simplicidade da ciência. O primeiro aspecto não suscita controvérsias. No segundo, entretanto, supõe-se que a crença na simplicidade possa levar a equívocos. Mas corrigíveis, como se tem verificado, cabe ter presente.

A partir da própria física newtoniana tornou-se patente que a simplicidade de suas leis do movimento encobriam realidades complexas, segundo determinadas dimensões do universo. Em que pese a circunstância, Poincaré entende que o cientista não pode renunciar, no processo de generalização e de ordenação dos fatos observados, àquela busca porque se trata de uma condição de progresso do conhecimento.

Esclarece: “Sem dúvida, se nossos meios de investigação tornam-se cada vez mais penetrantes, descobriremos o simples sob o complexo; depois o complexo sob o simples; depois novamente o simples sob o complexo, sem que possamos prever o último passo. Contudo é necessário deter-se em algum ponto; para que a ciência seja possível, é necessário deter-se quando a simplicidade for encontrada”. Adianta ainda que não seria apropriado recusar uma lei simples que haja sido observada em muitos casos particulares; podemos admitir legitimamente que seja verdadeira em casos análogos. Não fazê-lo seria atribuir ao acaso um papel inadmissível. Tal é precisamente, segundo enfatiza, a função da crença na simplicidade. Resta fixar o papel da hipótese.
O ordenamento (a generalização) dos fatos obtidos pela experimentação somente pode efetivar-se a partir da hipótese que preside a investigação. Assim, a hipótese desempenha papel primordial. Naturalmente está sujeita à verificação e, se não a suporta, deve ser abandonada sem relutância. O cientista não deve fazê-lo de mau humor.

Em geral, as hipóteses são suficientemente amadurecidas, levam em conta todos os fatores conhecidos que poderiam intervir no fenômeno. Se não é comprovada, por certo há de ter surgido algo de inesperado e extraordinário. Aparece o novo e o desconhecido. Nessa circunstância, pode dar-se o caso de que produza melhores resultados que a situação anterior. Corresponde antes de mais nada à chamada experiência decisiva com a qual nem sempre se pode contar.

Quanto às regras para a formulação das hipóteses, Poincaré recomenda que se deve evitar aquelas que pareçam tácitas porquanto podemos estar sendo influenciados inconscientemente. Hipóteses desse tipo são difíceis de abandonar, mas, desde que nos demos conta de que correspondem a tais casos, devemos recusá-las sem quaisquer remorsos.

Cumpre ainda evitar que as hipóteses sejam desnecessariamente multiplicadas. As teorias não podem ser construídas sobre hipóteses múltiplas pois assim, se condenadas pela experiência, não sabemos qual deva ser abandonada ou alterada. Tampouco sua verificação simultânea poderia ocorrer.

Quanto ao fato de que as teorias científicas tenham vida relativamente efêmera, não justifica a conclusão precipitada de que tal fato traduziria o fracasso da ciência. Trata-se do que denomina de “ceticismo superficial”, resultante da incompreensão de qual seja o verdadeiro papel das teorias científicas.

A teoria de Fresnel (1788-1827) que atribuía à luz os movimentos do éter foi abandonada pela de Maxwell (1831-1879). Isto não quer dizer que a obra de Fresnel tenha sido em vão. Fresnel não pretendia saber se existe realmente o éter, se este é ou não formado de átomos, se estes átomos realmente se movem neste ou naquele sentido. Seu objetivo consistia em prever os fenômenos óticos. Ora, prossegue, a teoria de Fresnel sempre permite fazê-lo, do mesmo modo que antes de Maxwell. O aprimoramento proporcionado pela obra deste último consiste em precisar melhor o que na teoria de Fresnel chamou-se de movimento. Maxwell permitir compreender que se trata de corrente elétrica. Tal refinamento não significa que nossas imagens possam substituir os objetos reais que a natureza nos esconderá eternamente. Conclui: “As verdadeiras relações entre estes objetos reais são a única realidade que podemos alcançar, com a exclusiva condição de que haja as mesmas relações entre estes objetos que as que estabelecemos entre as imagens que somos forçados a colocar em seu lugar. Se estas relações nos são conhecidas, pouco importa se julgamos cômodo substituir uma imagem por outra”.

A física, observa Poincaré, marcha no sentido de integrar número cada vez maior de fenômenos. Evolui, assim, no sentido da unidade e da simplicidade. Ao mesmo tempo, a observação nos revela sempre novos fenômenos. Nos fenômenos que nos são conhecidos, tornam-se acessíveis detalhes cada vez mais variados. Aquilo que supomos simples, revela-se complexo. Na medida em que triunfa a primeira tendência a ciência é possível. Contudo, não podemos “a priori” supor que os novos fenômenos dispersos poderão sempre ser integrados à síntese geral. Resta-nos comparar a ciência de nossos dias com a precedente. O certo é que, embora as novas conquistas signifiquem progresso, envolvem também sacrifícios.

 

 

 

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