Dicionário das Obras Básicas da
Cultura Ocidental

Antonio Paim

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Contos de Cantuária, de Chaucer

Os Contos de Cantuária correspondem ao mais famoso livro de Geoffrey Chaucer (apox. 1342/1400). Os personagens são os integrantes de um grupo constituído para efetivar uma peregrinação à tumba de São Tomás de Becker, prelado inglês do século XII, assassinado a mando do rei (Henrique II), local que passou a ser considerado milagroso. Com o propósito de passar o tempo, reunidos numa taberna em Londres, convencionam que cada um contará duas histórias na ida e duas na volta, de que resultariam mais de cem. Chaucer não conseguiu realizar esse plano inicial. A obra contém, ao todo, 24 contos.

Escrito entre 1387 e 1400, ano da morte do autor, o livro é considerado como marco do início da transição da literatura estritamente medieval para a modalidade que viria a caracterizar a obra literária do Renascimento. Até então a moda era cantar os feitos dos cavaleiros, rememorar as lendas relacionadas às vitórias de Carlos Magno contra os infiéis e, no caso da Inglaterra, voltar sempre ao Rei Artur e aos Cavaleiros da Távola Redonda. O que destoava dessa tradição era sobretudo a crítica aos vícios da sociedade, o que não deixava entretanto de refletir uma outra realidade (ou a própria realidade) em contraponto às fantasias cavaleirescas. No caso de Chaucer, entretanto, a perenidade de sua obra reside nos tipos humanos que descreve, tornando-os presença marcante na literatura ocidental. Os integrantes da peregrinação formam uma verdadeira galeria do conjunto da sociedade, com exceção da classe mais alta que, obviamente, não participaria de uma peregrinação da espécie descrita. Mais do que temor de represálias, sendo como era um alto funcionário da Corte, a omissão seria mais uma prova de realismo.

Estão presentes, como ele mesmo diz no Prólogo, um cavaleiro e representantes do clero (freiras e padres), um estudante de Oxford, um magistrado, membros das corporações de ofício – dos quais diz “cada um deles parecia um bom burguês, digno de tomar assento no estrado da sala de sua corporação ou de tornarem-se, com sua perspicácia, membros da Câmara da cidade” –e integrantes da elite acadêmica (um médico e um provedor de uma escola de direito em Londres). Desse conjunto, os tipos humanos mais destacados pelos estudiosos são a Mulher da cidade de Bath e o Vendedor de Indulgências.

Na descrição dos personagens, que efetiva no Prólogo, antes de passar-lhes a palavra, Chaucer evita qualquer intenção moralizadora. Assim, tanto a Mulher de Bath como o Vendedor de Indulgências são duas pessoas absolutamente cínicas e nem por isto Chaucer se permite denegri-las. Está concentrado em proporcionar-nos um retrato acabado das suas criaturas. A mulher de Bath aparece-nos vivamente como uma pessoa enérgica, capaz de obter o que deseja. Bem apessoada, com “seu rosto atrevido, bonito e avermelhado”. Pela descrição de seus trajes vê-se que é dotada de bom gosto. Na questão central de sua vida limita-se a informar “que tivera cinco maridos à porta da igreja – além de alguns casos em sua juventude (mas disso não é preciso falar agora).” Destaca ter feito peregrinações a Jerusalém e outros lugares sagrados e indica que “nenhuma peregrina ousava passar-lhe à gente na fila dos devotos que levavam ofertas à relíquia na igreja, pois, se o fizesse, ela certamente ficara furiosa, perdendo por completo as estribeiras”.

Alice – assim se chamava a mulher da cidade de Bath – tinha uma maneira muito peculiar de interpretar, em seu favor, os mandamentos da Igreja relativos à virgindade e à castidade. A sua discussão com os apóstolos é deveras magistral como modelo de sofisma. Afinal, se os órgãos sexuais são tão perfeitos há de ser para serem usados – eis a filosofia de vida que adota. Tal empenho em usa-los não significa entretanto que valorize o matrimônio. Tendo se casado, sucessivamente, com três pessoas idosas, conta que tudo fez para infernizar-lhes a vida. Nesse tipo de relação, ensina, alguém tem que mandar. E à mulher  compete tudo fazer para subjugar o marido.

Alice declara francamente que “Deus quis que as mentiras, as lágrimas e as intrigas fizessem parte da natureza da mulher, em todas as idades. Por isso, há uma coisa de que muito me orgulho: no fim de contas, eu sempre levava a melhor em tudo, de um jeito ou de outro, por esperteza ou á força, e sempre com  resmungos e queixumes”.
O Vendedor de Indulgências, embora parceiro de Alice em matéria de cinismo, ao contrário desta é uma criatura efeminada e nada tem de enérgico. Ao descreve-lo, Chaucer indica que “falava com a voz fina; e não tinha (nem nunca teria) barba no rosto, que era liso como se o tivesse escanhoado naquele instante. Desconfio que era um castrado ou um veado. Mas em sua atividade, de Berwick a Ware, não havia vendedor de indulgências que se igualasse a ele.” Trazia consigo “uma sacola de viagem recheada de perdões papais ainda quentes do forno”. Carregava também um conjunto de relíquias extraordinárias, a começar “de uma fronha de travesseiro que garantia ser o véu de Nossa Senhora”; um pedaço da vela do barco em que viajara São Pedro, “uma caixinha de vidro contendo ossinhos de porco” que jurava provenientes dos restos mortais dos Santos e coisas desse tipo.

Ao apresentar-se, o próprio Vendedor de Indulgências diz claramente: “Não prego outra coisa senão a repulsa à cobiça. ...Assim sendo, prego contra os mesmos pecados que pratico, a saber, a ambição e avareza. No entanto, se sou culpado desses vícios, consigo fazer que muitos os repudiem e se arrependam sinceramente. Se bem que não seja esse o meu propósito. Na verdade,  os próprios sermões que prego devem-se à cobiça. Mas creio que disso já falei o suficiente.”

 No Prólogo, Chaucer destaca que “com falsos elogios e engodos fazia o pároco e seus fieis de bobos. Entretanto, para fazer-lhe justiça, é preciso não esquecer que, na igreja, era um clérigo dos mais dignos: lia muito bem o versículo do dia e a narrativa litúrgica, e, melhor que tudo, sabia cantar o ofertório. Afinal, não ignorava que, encerrada essa parte da missa, chegava a hora de pregar e de afiar a língua para arrecadar tanto dinheiro quanto lhe fosse possível. Não é atoa que cantava com tal vigor e alegria”. E assim ficamos de posse de um retrato imorredouro de uma figura então muito valorizada. Descrição literária que, na época, correspondia a uma grande novidade.

Os Contos de Cantuária servem também para evidenciar como o conhecimento da cultura antiga, fenômeno do século anterior, desde logo marcaria a produção literária e não apenas a filosofia e o pensamento científico. O conto do Cavaleiro corresponde ao transplante da novela de cavalaria para a Grécia Antiga. O quarto marido da Mulher de Bath é descrito como um cultor das tragédias gregas e dos grandes autores romanos. Está presente, ainda, referências ao Almagesto de Ptolomeu. (Ver também CHAUCER).

 

 

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