Dicionário das Obras Básicas da
Cultura Ocidental

Antonio Paim

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CALVINO

Jean Calvino (1503-1564) nasceu em Noyon, cidade situada no Norte da França, na região que na fase anterior à formação do Estado francês fazia parte do chamado Reino dos Francos. Destinado por seus pais à carreira eclesiástica, foi mandado a Paris, em 1523, uma criança com apenas 14 anos. Depois de estudar humanidades no Collége de la Marche passa em seguida ao Collége de Montaigu, considerado como um dos bastiões do ensino religioso, dirigido por Noel Beda, que fora preceptor de Erasmo. Nesse colégio havia estudado Inácio de Loyola (1491-1446), que iria, em 1537, fundar a Ordem dos Jesuítas, justamente uma das formas pelas quais a Igreja Católica reagiria à Reforma Protestante. Concluído o curso de teologia, para atender ao desejo de seu pai, Calvino dedica-se ao Direito. Em 1532 publica em latim o comentário ao De clementia, de Seneca, onde não há evidências de suas inclinações reformistas embora se considere que sua conversão ao protestantismo seja desse período. O primeiro indício público da nova orientação viria com a desistência de ordenar-se sacerdote, ocorrida em 1534. Tinha então 25 anos e os efeitos da revolta de Lutero já haviam frutificado plenamente na Alemanha.

Desde essa época, Calvino está vinculado à liderança do protestantismo francês e ocupa-se de lançar a primeira versão daquele que seria o seu livro básico, aparecida em 1836: Instituição da Religião Cristã. A obra estaria destinada a ser refundida e sucessivamente ampliada, até a feição final que é de 1559.(2)

O livro foi desde logo reconhecido como expressão acabada da teologia reformada. A exemplo de Lutero, o autor se reporta diretamente à Bíblia – de que já existia uma tradução francesa, de 1534, da autoria de Olivétan, para a qual o próprio Calvino escrevera um prefácio. Contém uma exposição dos Dez Mandamentos, do Credo dos Apóstolos, da ceia do Senhor e dos Sacramentos. A esse conjunto adicionou um capítulo polêmico sobre os falsos sacramentos e outros sobre “A liberdade cristã, o Poder Eclesiástico e a Administração Civil”.

Nessa época Calvino redige um outro tratado teológico, contra os anabatistas, que somente seria publicado em 1542. Os anabatistas constituem a seira que fomentara a revolta camponesa na Alemanha, contra a qual se insurge Lutero, e que foi derrotada em 1525. O fato é indicativo de que o movimento francês em que se insere Calvino correspondia a um eco da ação de Lutero na Alemanha. Contudo, há entre os dois grandes reformadores divergências fundamentais, que iriam dar origem a igreja autônoma.

Cioso do seu princípio de que os fiéis deviam instruir-se diretamente na Bíblia e seguir sua letra, Lutero aceitou de modo literal as expressões bíblicas, na Ceia do Senhor constante do Novo Testamento, de que o corpo e o sangue de Cristo estão presentes no pão e no vinho. Há, em torno do assunto, polêmicas paralelas, de Lutero com os católicos e entre os protestantes. No caso destes últimos, as divergências entre calvinistas e luteranos aflorariam abertamente no Colóquio de Montbeliard, convocado pelo Duque de Wurtemberg em 1586.

Uma das teses desse Colóquio (a Quinta) pergunta se “o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de Nosso Senhor Jesus cristo estão real e substancialmente presentes na Santa Ceia e se distribuem também com o pão e o vinho, e se este corpo e este sangue são absorvidos pela boca, tanto pelos que vêm à Ceia indignamente como pelos dignos, de tal sorte que os fiéis recebem consolação e vida na Ceia e os infiéis a tomam para seu julgamento e condenação”. Os luteranos respondem afirmativamente e, os calvinistas, negativamente. Para estes não se trata de negar a presença do corpo e do sangue do senhor na Santa Ceia mas de que o sacramento seja eficaz através do corpo e sim pela alma, “não pela boca mas pelo instrumento da fé”. Deste modo, os infiéis não tiram dele qualquer proveito.

No fundo o que está em causa é o recurso a artifícios mágicos. Como indicou Max Weber, a Reforma levou os crentes a promover o comportamento racional, em que pese haja transmitido uma acepção da divindade privilegiadora do seu arbítrio e da sua onipotência.

A segunda grande divergência de Calvino com Lutero diz respeito às relações com o Poder Temporal. Em Lutero, é clara a subordinação da Igreja ao governante, o primado da lei nas relações da sociedade. A vivência de Calvino o conduziu a uma outra postulação.

Calvino conseguiu organizar um grupo de reformadores em Strasburgo mas acabaria radicando-se em Genebra, nessa época uma pequena cidade-estado governada por um bispo católico. Em 1536, Guilherme Farel (1489-1565), um predicador independente, ligado aos reformadores franceses, consegue que a população abandone o catolicismo, obtendo o apoio de Calvino para a reorganização da vida religiosa. A luta política leva-os entretanto, à derrota, regressando Calvino a Strasburgo, para, finalmente, em 1541, ser chamado de volta a Genebra. Até sua morte, empenhar-se-á decididamente não apenas na organização de uma igreja reformada mas igualmente em conseguir uma profunda reforma dos costumes em Genebra. Seu magistério religioso confunde-se com o exercício do poder temporal, razão pela qual esse período histórico da cidade-Estado é conhecido como achando-se submetida à ditadura de Calvino. A experiência subseqüente dos presbiterianos – assim chamados porque Calvino não quis que a igreja por ele criada tivesse o seu nome – iriam levá-los à revisão dessa parte da doutrina.

Em que pese a grande popularidade alcançada na França, o calvinismo não conseguiu ali derrotar ao catolicismo, embora tivesse logrado erigir, num curto prazo, nada menos que dois mil templos. Radicou-se ainda na Suíça de língua francesa, nos países que atualmente constituem a Holanda e, posteriormente, na Escócia. Nesse último país, ainda que haja alcançado o status de religião oficial, viu-se na contingência de conviver com outras formas de protestantismo. Desse modo, o calvinismo evoluiu para libertar-se da intolerância de que se revestiu o magistério de Calvino em Genebra. A execução do dissidente Michel Servet, ocorrida em Genebra em 1553, por instigação de Calvino, ficaria como um símbolo dessa intolerância.

Calvino fundou em Genebra, com Theodore Beza, uma academia que se tornou o centro intelectual do Calvinismo durante um largo período. Desenvolveu ali uma grande atividade intelectual.

A doutrina da predestinação seria aquela parcela de sua pregação que mais vivamente impressionou a posteridade. Influenciado por Santo Agostinho, como Lutero, leva entretanto a análise do tema às últimas conseqüências, ao postular que a escolha para a salvação depende do arbítrio da divindade, e que Deus não atribui indiferentemente a sua Graça a todo mundo, “mas dá a uns o que nega aos outros”. Embora haja afirmado que seria um sacrilégio terrível e uma grande ofensa a Deus averiguar mais profundamente essa questão, os crentes e convertidos quiseram buscar indícios de salvação, o que teve grandes conseqüências para a história do Ocidente, consoante a análise de Max Weber. (Ver também LUTERO).

 


(2) As obras de Calvino estão publicadas em francês, dispondo-se, além disso, de edições autônomas da Instituição da Religião Cristã, dos sermões, do catecismo, etc. Sua vida e seu pensamento mereceram muitos estudos. A coleção “Maitres spirituels”, das Edições du Seuil, dedica-lhe um volume contendo cuidadosa seleção de seus textos, apresentados por uma introdução muito erudita de Albert-Marie Schmidt (Jean Calvin et la tradition calviniene, Paris, 1957). A Instituição da Religião Cristã foi traduzida ao espanhol e ao português.

 

 

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