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Dicionário das Obras
Básicas da
Cultura Ocidental
Antonio Paim
Índice: a - b - c - d - e - f - g - h - i - j - k - l - m - n - o - p - q - r - s - t - u - v - x - w - z
(O) Fim da ideologia,
de Daniel Bell
O livro O fim da ideologia,
de Daniel Bell, publicado nos
Estados Unidos em 1960,(1) alcançou
a maior repercussão, tornando-se
uma espécie de best
seller. Foi considerado,
com propriedade, como o balanço
da trajetória seguida
pela esquerda norte-americana,
formada nos anos trinta e cujo
apogeu dar-se-ia no início
do pós-guerra e na década
de cinqüenta. Consiste no
franco reconhecimento das virtudes
do liberalismo e da condenação
aberta do regime soviético,
sem renegar as simpatias pelo
socialismo, mas atribuindo-lhe
uma orientação
francamente social-democrata,
isto é, renunciando à sociedade
sem classes e apostando na melhoria
subseqüente das condições
de vida da massa trabalhadora
sob o capitalismo.
Daniel Bell pertenceu ao grupo
dirigente da Partisan Review (recorde-se
que partisan foi o nome
adotado, na Europa, pelos resistentes
ao fascismo e ao nazismo, em
ascensão nos anos trinta).
Essa publicação
chegou a ser “o árbitro
da cultura americana”, “a
voz e alma da elite intelectual
de Nova York, estendendo-se sua
influência bem além
de Manhattan”, contando
com a colaboração
de nomes importantes como Mary
McCarthy e Saul Bellow (artigo
do crítico literário
Pear Bell, transcrito por Diálogo,
volume 16, n. 2, 1983).
O fim da ideologia descreve o destino desse conceito, desde que inventado
por alguns autores em disputa com Napoleão na França pós-revolucionária
até ser apropriado pelos marxistas e se transformar, para usar a expressão
de Raymond Aron, no “ópio dos intelectuais”. Esse percurso
está descrito por Daniel Bell da seguinte forma:
“A análise da ideologia é relevante para o estudo da intelligentsia.
Pode-se dizer que a ideologia está para o intelectual como a religião
está para o sacerdote, o que já nos dá uma idéia
da amplitude de significação da palavra, e indica uma das razões
que explicam a variedade das suas funções. O termo ideologia foi
cunhado pelo filósofo francês Destutt de Tracy, no fim do século
dezoito. Juntamente com outros filósofos da Era do Iluminismo.
... Tracy pensava que era possível “purificar” as
idéias reduzindo-as a
percepções sensoriais – uma
variante francesa do empirismo
inglês, implicando uma
mal disfarçada atitude
anti-religiosa – e chamou
de “ideologia” essa
nova ciência das idéias.
As conotações negativas
do tema surgiram com Napoleão
que, tendo consolidado seu poder,
proibiu o ensino da ciência
moral e política no Institut
National, denunciando os “ideólogos” como
especuladores irresponsáveis,
que subvertiam a moralidade e
o patriotismo. Como republicano,
Napoleão tinha demonstrado
simpatia para com as idéias
dos filósofos; Imperador,
passara a reconhecer a importância
da ortodoxia religiosa para a
manutenção do Estado”.
Quanto ao sentido que Marx deu
a esse conceito afirma: “Com
Marx, a palavra “ideologia” sofreu
transmutações curiosas.
Para o Marx de A Ideologia
Alemã, o termo estava
associado ao idealismo filosófico,
ou à concepção
de que as idéias são
autônomas e que, de modo
independente, têm o poder
de revelar a verdade e a consciência.
Como materialista, contudo, Marx
não podia aceitar essa
explicação, já que “a
existência determina a
consciência” (e não
o contrário); qualquer
tentativa de pintar um quadro
da realidade partindo apenas
das idéias só poderia
levar a uma “falsa consciência”.
Assim, por exemplo, acompanhando
Feuerbach – de quem Marx
extraiu quase toda sua análise
da ideologia e da alienação – considerava
a religião como uma falsa
consciência: os deuses
são uma criação
da mente humana, e apenas parecem
existir independentemente, e
determinar o destino do homem;
a religião é, portanto,
uma ideologia”.
E, mais adiante: “Uma segunda
conclusão, mais radical, é a
de que se as idéias mascaram
interesses materiais, então
o “teste da verdade” de
uma doutrina consiste em verificar
a que interesse de classes ela
serve. Em suma, a verdade é sempre
uma “verdade de classe”.
Não há, portanto,
uma filosofia objetiva, mas somente
a “filosofia burguesa”,
e a “filosofia proletária”;
como não há uma
sociologia objetiva, mas sim
a “sociologia burguesa” e
a “sociologia proletária”.
O marxismo, contudo, não é simplesmente
uma doutrina relativista: admite
uma ordenação “objetiva” do
universo social, revelada através
da “história”.
Para Marx, a história é um
desdobramento progressivo da
razão (como Hegel também
a via), em que a sociedade ascende
a “etapas superiores”,
por meio da conquista da natureza
pelo homem e a destruição
de todas as mitologias e superstições. A “verdade” de
uma doutrina, portanto, deve
ser determinada pela exatidão
do seu ajustamento ao desenvolvimento
da história; na prática
isto quer dizer que a “verdade” é determinada
pela contribuição
feita ao progresso da revolução”.
Daniel Bell destaca que a teoria
da “determinação
social das idéias” apresenta
não poucas dificuldades,
a começar do papel da
ciência. Na União
Soviética, sob Stalin,
chegou-se a acreditar na possibilidade
de uma “biologia proletária”,
até que as mistificações
de Lisenko caíram por
terra. O marxismo tampouco conseguiu
estabelecer correspondências
unívocas entre correntes
de pensamento e objetivos de
classe. O próprio conceito
de classe revelou-se extremamente
equívoco.
De todos os modos, a ideologia
marxista retira sua força
de componentes emocionais, na
medida em que pode provocar paixões
arrebatadoras. Funcionou, em
nosso tempo, como sucedâneo
da religião. Diz textualmente: “O
que dá força à ideologia é sua
paixão. A investigação
filosófica abstrata sempre
procurou eliminar a paixão,
e os aspectos pessoais, racionalizando
todas as idéias. Para
o ideólogo, a verdade é filha
da ação, e a experiência
adquire sentido como seu “momento
de transformação”.
Ele se manifesta não na
contemplação, porém “nos
atos”. Pode-se dizer, com
efeito, que a função
latente mais importante da ideologia é mobilizar
a emoção. Além
da religião (da guerra
e do nacionalismo) houve outras
formas de canalização
da energia emocional. A religião,
por exemplo, simbolizava, desviava
e difundia a energia emocional
mundana para a litania, a liturgia,
os sacramentos, os templos, as
artes. A ideologia funde essa
energia e a focaliza na atividade
política”.
Bell chega à conclusão
de que as ideologias estão
exaustas e, em favor de sua tese,
apresenta estes argumentos:
“Os acontecimentos por trás desta importante transformação
social são muitos, e complexos. De um lado, calamidades com os Processos
de Moscou, o pacto nazi-soviético, os campos de concentração,
a supressão do movimento dos trabalhadores húngaros; de outro,
mudanças sociais como as modificações do capitalismo,
o surgimento do Estado assistencial. No campo da filosofia, pode-se traçar
o declínio das crenças simplistas, racionalistas, e a emergência
de novas imagens estóico-teológicas do homem, propostas por Freud,
Tilich, Jaspers, etc. Isso não equivale a dizer que ideologias como
o comunismo não tenham peso político na França e na Itália,
ou um momentum de impulso derivado de outras fontes. Mas há um
fato simples que vem à tona: para a intelligentista radical,
as velhas ideologias perderam sua “verdade” – em conseqüência
seu poder de persuasão.
Poucos espíritos sérios
ainda acreditam que é possível
preparar “planos” e,
por meio da “engenharia
social”, construir uma
nova utopia de harmonia social.
Ao mesmo tempo, as antigas contracrenças
perderam também sua força
intelectual. Poucos liberais “clássicos” insistem,
hoje, em que o Estado se mantenha à margem
da economia, e poucos conservadores
sérios – pelo menos
na Inglaterra e no continente
da Europa – vêem
no Welfare State um “caminho
para a servidão”.
Há, hoje, portanto, no
mundo ocidental, um certo consenso
entre os intelectuais a respeito
dos problemas políticos:
a aceitação do
Estado assistencial, a preferência
pela descentralização
do poder, e pelo sistema de economia
mista e de pluralismo político.
Neste sentido também pode-se
dizer que a era da ideologia
terminou”.
Bell não confunde o fim
da ideologia com o fim da utopia.
Os homens precisam de algo que
lhes permita visualizar as suas
potencialidades. Mas a experiência
das décadas precedentes
sugeria-lhe que “o ingresso
na Cidade Celestial não
pode continuar sendo feito pela
escala da fé; precisa
agora de um caminho empírico”.
Cumpre-lhe especificar objetivos,
determinar os seus custos e indicar
expressamente quem os pagará.
O mais importante é que
dificilmente a esquerda possa
continuar nutrindo-se de fórmulas
fáceis.
Conclui: “O sentido verdadeiro
da maturidade intelectual, e
do fim da ideologia, serão
testados nas atitudes com relação
a Cuba e aos novos Estados africanos.
Entre os membros da “nova
esquerda”, há uma
tendência alarmante para
fazer tabula rasa do
passado para aceitar a palavra “revolução” como
uma justificativa de todos os
excessos, para justificar a supressão
dos direitos civis e da oposição – em
suma, para apagar a lição
dos últimos quarenta anos
com uma alacridade emocional
espantosa. O fato de que muitos
desses novos movimentos sociais
têm justificativa para
sua exigências de liberdade,
para o direito de controlar seu
próprio destino político
e econômico, não
quer dizer que façam jus
a um cheque em branco em tudo
o que pretendam fazer em nome
da sua emancipação.
Como o fato de que esses movimentos
assumem o poder em nome da liberdade
não garante que não
se voltem para o imperialismo,
e para a grandeza, pretendendo
ocupar o centro do palco histórico,
como os Estados que vieram deslocar”.
(1) A
tradução brasileira
apareceu em 1980, na Coleção
Pensamento Político,
da UnB, volume 11.
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