Filosofia do Direito,
de Hegel
No esquema da Enciclopédia,
que Hegel imaginava seria a apresentação
do seu sistema filosófico,
o espírito desdobra-se
em espírito subjetivo
(Antropologia, Fenomenologia
do Espírito e Psicologia);
espírito objetivo (Direito,
Moralidade e Moralidade Social)
e espírito absoluto (Arte,
Religião Revelada e Filosofia).
Os Princípios da Filosofia
do Direito (1821) consideram
apenas o momento do espírito
objetivo, tendo naturalmente
presente a circunstância
de que é parte de uma
totalidade.
O ponto de partida de Hegel é o
esquema abstrato onde o logos
que precede a Filosofia da Natureza
desdobra-se no plano puramente
lógico, passando da categoria
do ser à essência
e ao conceito. Na natureza do
espírito encontra-se como
que adormecido e seu despertar
verdadeiro ocorre na consciência
(Fenomenologia do Espírito)
a que se segue um momento em
que é teórico,
prático e finalmente livre.
O espírito subjetivo é ainda
o espírito individual,
sendo o seu momento mais alto
não o conhecimento mas
a vontade, à qual incumbe
realizar o trânsito entre
o espírito subjetivo e
o espírito objetivo.
O ponto de partida da Filosofia
do Direito – que pretende
ser meditação sobre
a sociedade e o Estado – é pois
essa vontade livre que se orienta
pelo seu próprio desejo
e trata de sobreviver. Talvez
se possa pensar aqui no que foi
chamado de estado de natureza.
Essa liberdade cifra-se na posse
mas não tem por si maior
garantia. O espírito busca,
por isto mesmo, um contrato que
lhe assegure a propriedade. Locke
havia indicado que, embora plenamente
livre no estado de natureza,
o homem não tinha qualquer
garantia quanto ao respeito à sua
posse, razão pela qual
teria abdicado daquela liberdade
plena a fim de dispor de uma
lei que o protegesse e à propriedade.
Hegel chama a isto de direito
abstrato. Presumivelmente por
esta razão define ao direito
como “a existência
da vontade livre”, isto é,
o que assegura a sobrevivência
dessa vontade.
Partindo da propriedade e desta
ao contrato, instaura-se o direito
de punir a quem desrespeite a
regra estabelecida, fixando-se
por esse meio um primeiro nível
de legalização
da violência. Assim procedendo,
o direito não elimina
o crime mas apenas permite que
seja punido. Não se trata
de instaurar a harmonia entre
os homens mas de sancionar uma
situação de fato.
A violência se contrapõe à liberdade.
Tal verificação
leva à descoberta da
moralidade como algo de subjetivo,
como dever ser.
Hegel segue Kant quando define
o direito sem referência à sua
característica essencial – opor-se
ao fato e se constituir concretamente
de um direito positivo, resultante
das leis escritas ou dos costumes
que têm força de
lei – mas buscando enfatizar
aquilo a que corresponderia sua
natureza primordial. Para Kant
o direito compreende as condições
necessárias ao acordo
das vontades segundo uma lei
de liberdade. Esta seria a matéria
da filosofia do direito, que
pressupõe o conhecimento
do direito propriamente dito.
Neste ponto Hegel acompanha a
tradição iniciada
no século XVIII, se fizermos
abstração do chamado
direito natural, que, embora
não se atenha igualmente
ao direito positivo, forma nitidamente
uma outra tradição.
No que se refere entretanto à moralidade,
Hegel rompe com os cânones
consagrados. Agora a característica
essencial e distintiva da moralidade – que
reside em seu caráter
subjetivo – transforma-se
em seu pecado capital.
Na seqüência da Filosofia
do Direito, em que se dá a
passagem da moralidade subjetiva
para a moralidade objetiva, Hegel
distingue Moralish de Sittlichkeit.
Kant emprega esta última
palavra na acepção
usual de costume (a metafísica
dos costumes é Metaphysik der Sitten).
Hegel atribuiu-lhe sentido inteiramente
distinto. Enquanto a Moralish (moralidade),
como vimos, é a vontade
subjetiva (individual ou privada),
a Sittlichkeit (que
diversos autores traduziram por eticidade) é a
realização do bem
em realidades históricas
ou institucionais, equivalentes à família, à sociedade
civil e ao Estado. Na definição
de Hegel, “é o conceito
de liberdade que se tornou mundo
existente e natureza da autoconsciência”.
A moralidade objetiva (eticidade)
corresponde à existência
concreta de comunidades humanas
que não se alçaram à reflexão
filosófica para fixar
as regras de seu funcionamento.
Aqui as coisas são como
são e não como
deveriam ser. Tornando-as seu
objeto, o filósofo (Hegel,
no caso) pode fazer estimativas
de validade universal, isto é,
dizer como as coisas são
e não apenas como deveriam
ser.
No primeiro nível de realização
do bem aparece a família,
que se atualiza no casamento,
conduzindo à formação
de um patrimônio e ao nascimento
dos filhos. Justamente por intermédio
destes tem lugar seu desenvolvimento
e superação. Os
filhos não permanecem
crianças; crescem e acabam
por construir nova família.
Assim, não há a
família, mas diversas
famílias, restando aquela
como uma simples forma.
As famílias são
instadas a organizar-se com vistas à luta
pela subsistência, dando
origem à sociedade civil.
Na tradição liberal
iniciada por Locke e Kant, a
sociedade civil dá nascedouro
ao Estado de Direito, fixa-lhe
regras de funcionamento, subordina-o
e, de certa forma, integra-o à própria
sociedade. Em Hegel, a sociedade
civil corresponde ao “sistema
das necessidades”, à esfera
do aparelho produtivo, ao império
dos interesses e, portanto, ao
predomínio da luta e da
disputa. Não seria o campo
próprio para o florescimento
da moralidade.
A realização plena
da moralidade dá-se com
o Estado. Na Filosofia do
Direito, Hegel trata da
constituição e
do papel dos funcionários
que, no seu esquema, são
os portadores da racionalidade.
A questão do endeusamento
do Estado por Hegel suscitou
longas disputas, alguns considerando-o
partidário do autoritarismo
prussiano, outros afirmando a
sua condição de
liberal. O exame desse aspecto
nos distanciaria demasiado de
nossos objetivos. Embora seja
possível reconstituir
o pensamento político
de Hegel e discuti-lo especificamente,
não se pode ignorar que,
no seu sistema, procura colocar-se
naquele plano que Kant denominou
de numenal, isto é,
puramente racional. Quanto às
relações desse
plano com o processo histórico,
o próprio Hegel, precisamente
na Filosofia do Direito,
deixou-nos esta advertência
explícita:
“Conhecer o que é, eis a tarefa da filosofia, pois o que é equivale à razão.
No que se refere ao indivíduo, cada um é filho de seu tempo;
a filosofia, do mesmo modo, resume seu tempo no pensamento. Seria estúpido
imaginar que um filósofo qualquer ultrapasse o mundo contemporâneo
do mesmo modo que um indivíduo salte por cima do seu tempo... Se uma
teoria de fato ultrapassa esses limites, se constrói um mundo tal qual
deva ser, este mundo existe somente em sua opinião, elemento inconsistente
que pode assumir não importa que forma”.
Do que se indicou precedentemente,
vê-se que a denominada ética
hegeliana é algo de muito
ambíguo e impreciso. Enquanto
o esforço do pensamento
moderno cifra-se em delimitar
com rigor a esfera de sua abrangência,
para distingui-la plenamente
tanto da religião como
do direito, o esforço
de Hegel dá-se na direção
oposta, superpondo esses conceitos
e esmaecendo as suas fronteiras.
Além do mais, não
corresponde a exame específico
do tema.
Hegel não considerou o
problema teórico da moral
social, como o fizeram os ingleses.
Assim, sua “ética” reduz-se
a dois postulados: 1º) por
seu caráter subjetivo
a moral individual requer ser
superada; e 2º) o Estado é o
ser moral por excelência.
A superação do
caráter subjetivo da moral
dá-se pelo direito. A
questão do trânsito
de uma esfera à outra é naturalmente
complexa, pela dificuldade de
sua reconstituição,
em decorrência sobretudo
do fato de que, em grande parte
da história do Ocidente,
a moral confunde-se com a religião.
Na Época Moderna, ali
onde a moral conquistou sua autonomia,
pode-se dizer que o trânsito
para o direito dá-se por
consenso. Mas isto não
significa que todas as questões
morais venham algum dia experimentar
semelhante processo. Quem tem
um mínimo de familiaridade
com aquilo que os grandes tratadistas
arrolaram para exaltar a virtude,
dá-se conta da impropriedade
de semelhante expectativa. Não
haverá sociedade da qual
sejam banidas a inveja, a mesquinhez,
a falta de grandeza e nenhum
direito poderá enquadrar
e punir os invejosos e mesquinhos.
A esse propósito vale
lembrar aqui a arguta observação
de Benedetto Croce quanto ao
erro em que incide Hegel ao colocar
no mesmo plano a evolução
do espírito em suas determinações
concretas, a que chama de dialética
dos graus, e o pensamento
dessa evolução
(dialética dos contrários;
conceito universal; concreto,
idéia). Em Hegel tudo
se passa como se da superação
(teórica) da religião
pela filosofia resultasse o desaparecimento
da primeira ou que o surgimento
do Estado Constitucional eliminasse
a moralidade, tanto social quanto
individual. Escreve Croce:
“O espírito individual passa da arte à filosofia e torna
a passar da filosofia à arte, do mesmo modo porque passa de uma forma
de arte a outra, ou de um problema de filosofia a outro: isto é, não
por contradições intrínsecas a cada uma dessas formas
na sua distinção, mas pela própria contradição
intrínseca ao real, que é devir; e o espírito universal
não passa do a a b e de b a a por
outra necessidade que não seja a de sua eterna natureza, que é de
ser ao mesmo tempo arte e filosofia, teoria e prática ou o que mais
se queira. Tanto isso é verdade que, se esta passagem ideal fosse determinada
pela contradição que se desenvolveria intrínseca a um
determinado grau, não tornaria a ser possível voltar àquele
grau, reconhecido como contraditório: tornar a ele seria uma degenerescência
ou um atraso”. (O que é vivo e o que é morto na filosofia
de Hegel (1906), trad. portuguesa, Coimbra, Imprensa da Universidade,
1933, p. 81).
E quanto ao segundo postulado,
isto é, a noção
de que o Estado possa se constituir
no ser moral por excelência, é daquelas
que os juristas denominam de contraditio
in adjecto. A moral não
pode louvar-se da força.
O Estado, como entreviu Max Weber, é a
esfera da violência legalizada.
(Ver também HEGEL).
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