(A)
Fábula das abelhas,
de Mandeville
A primeira versão de A
fábula das abelhas,
de Bernard Mandeville, apareceu
em 1714. Sucessivamente refundido
e ampliado, o livro passou a
ser editado em dois volumes a
partir de 1732. Contém
uma crítica decisiva à obra
de Anthony Ashley Cooper, Lord
Shafsterbury e contribuiu enormemente
no sentido de que se desse preferência
ao debate teórico, ao
invés de ater-se à pregação
moral, na ilusão de que,
por este modo, seria possível
reformar a sociedade.
O cerne da crítica de
Mandeville a Shafsterbury reside
no seguinte: as virtudes da piedade
e da abnegação,
que exalta, não têm
nenhum papel a desempenhar na
vida social, onde o principal
consiste na conquista do progresso.
Parece a Mandeville que as virtudes
requeridas por semelhante objetivo
são o trabalho e a tenacidade.
Por desconhecer esse quadro real,
afirma, Shafsterbury realizou
uma construção
inteiramente artificial, que
busca desmontar peça por
peça.
A crítica de Mandeville
a Shafsterbury encontra-se no
texto “Pesquisa acerca
da natureza da sociedade”,
acrescido à edição
de A fábula das abelhas publicada
em 1723 e que, desde então,
nas reedições subseqüentes,
faz parte do primeiro volume.
(A Search into the Nature of
Society in The Fable of the
Bees or Private Vices, Public
Benefits, by Bernard Mandeville;
The First Volume, Oxford Claredon
Press, p. 322/369; 1ª edição
facsimilada, 1924, e, subseqüentes,
1957 e 1966).
Começa por mostrar que
constitui um grave equívoco
supor que o homem tende naturalmente
para a virtude, podendo governar-se
pela razão “com
mais facilidade e presteza do
que o bom cavaleiro conduz pelas
rédeas um cavalo bem amestrado”.
Essa hipótese baseia-se
na falsa suposição
de que os padrões morais
achar-se-iam firmemente estabelecidos
na própria natureza humana.
Ao contrário do que supõe
Shafsterbury, a moralidade não é dada
aos homens de forma acabada,
permanecendo imutável.
Ao contrário, varia extremamente
segundo os povos e, no curso
da história destes, segundo
as épocas.
A doutrina do senso moral inato,
prossegue Mandeville, serve tão
somente para ocultar do
homem a sua natureza real. Ao
induzir as pessoas a acreditar
que podem ser virtuosas sem decidida
abnegação, na verdade
fomenta a hipocrisia. Se as idéias
de Shafsterbury viessem a ser
aceitas universalmente, estariam
arruinados a riqueza e o poder
do Estado. As virtudes sociais
recomendadas por Shafsterbury
não preparam o homem para
lutar por seu país ou
para trabalhar na recuperação
de suas perdas. A tranqüilidade
e a moderação presentes à obra
daquele autor não são
de maior utilidade, salvo “para
educar parasitas”, desde
que nunca preparariam o homem “para
o trabalho e a assiduidade, nem
o instigariam a grandes realizações
ou empreendimentos perigosos”.
A seu ver, Shafsterbury simplesmente
recusou-se a reconhecer aquelas
qualidades individuais que são
absolutamente necessárias
para motivar o homem na realização
dos trabalhos e no enfrentamento
dos riscos capazes de tornar
uma nação rica
e próspera.
Segundo Mandeville, não
foi o senso moral desinteressado
ou o amor da humanidade que fez
surgir a sociedade e compeliu
o homem ao trabalho, mas um de
seus vícios: a vaidade.
A tendência natural à preguiça,
encontrada no homem, somente
foi superada pela forte paixão
desencadeada pela vaidade. Segundo
seu entendimento, a própria
sociabilidade tão exaltada
por Shafsterbury não passa
de manifestação
de vaidade. Argumenta: é certo
que o homem gosta de companhia
mas tal se dá do mesmo
modo como aprecia inúmeras
outras coisas para o deleite
pessoal. Ao buscar associar-se
a outros homens, quer em primeiro
lugar confirmar a alta opinião
que tem de si mesmo; e, além
disto, se pode propiciar prazer
aos outros, espera ser em troca
lisonjeado.
O estado de natureza idealizado
por Shafsterbury, em que os homens
estariam de posse de virtudes
e qualidades admiráveis,
corresponde a uma idade de outro
na qual não existiria
o comércio, a arte, a
dignidade ou o emprego. O que
a história registra é a
presença de grandes aglomerados
sociais que nada têm de
comum com aquela idealização.
A seu ver, o estado de natureza
somente poderia manter-se pacífico
numa primeira ou segunda geração,
quando a superioridade natural
dos pais impusesse a ordem. Esta
paz desapareceria com a morte
daqueles ancestrais, o que desencadearia
a luta entre seus descendentes.
O homem tem mais apetites do
que pode satisfazer com facilidade
e, deste ponto de vista, acha-se
incapacitado para a sociedade.
Um bando deles, colocados em
condições equiparáveis,
logo começaria a disputar.
A paz só será reintroduzida
pelo artifício do governo,
que reimpõe a ordem originalmente
mantida pelos ancestrais. E o
governo é apenas um exemplo
do tipo de artifício requerido
para lutar contra as vontades,
imperfeições e
variedades dos apetites dos homens
Mandeville coloca-se, portanto,
no pólo oposto a Shafsterbury.
Não é natureza
que deve ser exaltada mas as
criações artificiais
do homem para tornar a sociedade
possível.
Mandeville argumenta ainda que,
pela idealização
do senso moral, Shafsterbury
ignora que a moralidade exige
que a virtude seja acompanhada
de uma vitória sobre a
natureza. Além disto,
o senso moral é incapaz
de reconhecer a importância
do amor próprio na natureza
humana e nas relações
entre os homens. Este erro é muito
grave desde que um Estado poderoso
e próspero somente pode
ser construído pelo reconhecimento
da importância de serem
contidos os desejos do homem
egoísta.
Mandeville revela conhecer razoavelmente
as atividades produtivas desenvolvidas
em Londres que, em sua época,
já se constituía
num grande empório comercial.
O que aquela multidão
faz, no sentido de empurrar a
vida para a frente, nada tem
a ver com a pregação
dos reformadores religiosos.
Em relação ao progresso
material, é muito mais
importante “a tola e fútil
invenção da saia
forrada sobre arcos”. Declara
ser contra o catolicismo romano
tanto quanto Lutero e Calvino,
bem como a própria rainha
Elisabeth, mas em matéria
de desenvolvimento social a pregação
de um é tão inócua
quanto a dos outros. “Religião é uma
coisa e comércio é outra”-
exclama e acrescenta: “Aquele
que dá trabalho a milhares
de pessoas inventando as fábricas
mais industriosas, certo ou errado, é o
maior amigo da sociedade”.
Seu estilo é vivo e atraente
na descrição do
mundo real.
Mais tarde, nas edições
posteriores de A fábula
das abelhas, Mandeville
buscaria desenvolver essa crítica
a Shafsterbury, nos seis ensaios
em forma de diálogo que
inseriu no volume segundo. No
prefácio, faz questão
de precisar que um dos personagens
do diálogo representa
o seu ponto de vista enquanto
o outro “encontra grande
deleite na maneira cortês
e na forma de escrever de lord
Shafsterbury”. Na última
parte desse segundo volume volta
a considerar as idéias
apresentadas em “A Search
into the Nature of Society” e
volta a criticar Shafsterbury.
Contudo, o essencial de sua posição
encontra-se naquele ensaio, antes
resumido.
Mandeville inclui-se entre os
primeiro pensadores modernos
que valorizam a divisão
do trabalho, que se vinha fixando
em sucessivas gerações.
Desse longo processo de especialização é que
resultou o desenvolvimento material.
E para este contribuíram
preferentemente, segundo crê,
os homens vinculados ao comércio
e à navegação.
A experiência histórica
comprovava que as virtudes cultuadas
por esses homens eram as únicas
capazes de trazer prosperidade.
Em contrapartida, os pontos de
vista expressos por Shafsterbury
provinham de um grupo social
a que denomina de Beau Monde,
que equivaleria à aristocracia.
No fundo, trata-se simplesmente
da maneira como percebem a si
mesmos ou desejariam que os outros
os percebessem.
A nosso ver, o mérito
de Mandeville consiste no fato
de haver demonstrado, de modo
insofismável, que os valores
morais presentes à sociedade
variam com o tempo e não
podem ser pura e simplesmente
identificados com as virtudes
que os homens piedosos se sentiam
obrigados a cultuar com o propósito
de salvar as próprias
almas. E embora atribua primazia
ao governo, nesse terreno, de
modo idêntico a seus oponentes,
não reduziu a moral social
a uma questão de direito.
A exemplo da moral individual,
deve estruturar-se em torno de
valores que as pessoas aceitem
e procurem seguir livremente.
E apontou também um critério
segundo o qual devem ser incorporados à vida
social, ao exaltar o trabalho
e a tenacidade, colocados a serviço
do progresso material.
É certo, contudo, que não
conseguiu circunscrever os limites
precisos da discussão de
caráter teórico,
para separá-la do propósito
de influir sobre o curso da sociedade.
Contudo, tal viria a ocorrer no
prosseguimento do debate, que teve
lugar. (Ver também MANDEVILLE e Características
do homem, de COOPER,
Anthony Ashley).
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