Ensaios, de Montaigne
Rodolfo
Mondolfo (1877/1976) ensinou-nos
que o humanismo renascentista
emerge para contrapor-se a uma
tendência que se tornara
dominante no seio do pensamento
religioso e na atuação
da Igreja Católica, ainda
que não exclusiva, responsável
pelo aviltamento da pessoa humana
em expressões tais como
a Inquisição. A
par da exaltação
do homem – acerca do qual
se afirma que pode equiparar-se à divindade
pela intensidade do conhecimento,
sendo atributo exclusivo de Deus
sua infinita extensão
--, a Igreja vinha sendo duramente
criticada por se ter deixado
absorver pela mundanidade. Num
ambiente destes, qual será o
destino do código moral
da Cristandade? A perplexidade
gerada pelo curso histórico,
no século XVI, explica
o sentido da meditação
de Montaigne, e, ao mesmo tempo,
a perenidade de que vieram a
revestir-se os Ensaios,
na medida em que as questões
ali suscitadas são de
todos os tempos.
Michel
de Montaigne (1533/1592) pertencia a uma família que tinha a posse de
um território (senhoria medieval) nas proximidades de Bordeaux, na França,
denominado de Montaigne, nome pelo qual passou a ser conhecida. Recebeu educação
primorosa, adquirindo ampla familiaridade com os clássicos. A condição
de nobre obrigava-o ao desempenho de funções administrativas
e políticas, para o que não parece achar-se vocacionado. Perto
dos quarenta anos, em 1570, retira-se para a sua propriedade e começa
a redigir os Ensaios. Quatro anos após é instado a
abandonar o refúgio para envolver-se numa empreitada militar e, depois,
assumir encargos na administração. Consegue entretanto voltar á sua
meditação em 1578, publicando os dois primeiros livros da obra
em 1580. De 1581 a 1585 exerce as funções de prefeito de Bordeaux.
Volta aos Ensaios entre 1585 e 1588. Ainda uma vez retorna à política
mas consegue, antes de morrer, dar-lhes feição final. Faleceu
aos 59 anos de idade.
Os
intérpretes de Montaigne costumam toma-lo como filósofo e, por
essa razão, cuidam de filia-lo a alguma das correntes greco-romanas
antigas com as quais revela dispor de maior familiaridade. E, por esse caminho,
aproximam-no seja aos céticos gregos, que negam a possibilidade de qualquer
tipo de conhecimento, seja aos estóicos, que recomendavam recorrer à superioridade
do espírito – e só a ele tomar como referência – diante
das situações da vida.
Talvez
seja mais fácil entendê-lo se o considerarmos como um moralista,
inserido num ambiente de dúvida e perplexidade. Ele mesmo diz (Livro
II; capítulo XII) que “estávamos na época em que
a reforma de Lutero começa a expandir-se e abalar em muitos países
as antigas crenças”. Montaigne temia que o incitamento a que se
desprezasse “as opiniões ante as quais respeitosamente se inclina,
porquanto implicam em sua salvação”, degenerasse “em
execrável ateísmo, e isso porque o vulgo, não sendo capaz
de julgar as coisas em si, se atêm às aparências.” Sua
pregação para superar tal perigo está longe de ser de
cunho eminentemente teórico, preferindo claramente a busca da recuperação
dos valores tradicionais.
Em
Montaigne, sendo a razão impotente para alcançar a essência
da divindade, só resta ao homem, com humildade e desprovido de orgulho,
ater-se aos ensinamentos de Cristo, abandonar o ódio em seu coração
e deixar-se possuir pela beleza do amor. Sua pregação moral irá tomar
por base a hipótese de ser “evidente que somente nos conformamos
com os deveres que se coadunam com as nossas paixões”, sendo portanto
imperativa a instrução, notadamente com exemplos, que nos levem
a mudar de atitude. De certa forma reduzindo o cristianismo a essa dimensão
moral, é levado a depreciar a razão, a mostrar que o homem não
tem motivos para supor-se superior aos animais. “Se acreditássemos
n´Ele – e não chego a dizer se tivéssemos fé --,
se tão somente acreditássemos n´Ele, e com vergonha o digo,
se o tivéssemos em nós como um amigo, por exemplo, nós
o amaríamos acima de tudo pela sua infinita bondade, e pela beleza que
n´Ele resplandece.”
Para atribuir indispensável
conteúdo à sua
pregação moral,
Montaigne irá valer-se tanto
de Aristóteles como dos
estóicos, sobretudo Sêneca.
De Aristóteles irá retirar
a tese de que as virtudes, em
sua aplicação,
revelam possuir um ponto ideal
de equilíbrio, a que chamou
de justo meio. Aborda inclusive
os mesmos temas a exemplo da
coragem e da covardia. Essa,
aliás, devia ser uma questão
muito presente em sua vida por haver
exercido funções
militares e participado de combates.
Justamente os exemplos de que
se vale, neste caso, seria retirados
de incidentes ocorridos durante
guerras.
Entretanto, quando se trata do sofrimento e da morte, irá valer-se
dos ensinamentos estóicos. Vejamos a esse propósito o que escreveu
no ensaio que aparece denominado como Capítulo XIV do Livro I: “Estamos
bem ou mal neste mundo segundo o que pensamos: contente está quem se
acredita contente. Nossa crença é que faz seja ou não
seja real a felicidade. ... As coisas não são nem dolorosas nem
difíceis em si. Para julgar de sua elevação e grandeza é necessário
uma alma com essas qualidades, sem o que lhe atribuiríamos nossos próprios
defeitos. Um remo é reto, e no entanto quando mergulhamos na água
parece curvo. Não basta ver a coisa, importa como vê-la.” E
mais: “Por certo a filosofia armou o homem contra o sofrimento resultante
de qualquer acidente e proveu-o de paciência. E se o mal sobreexcede
suas forças, fornece-lhe o meio de escapar e se tornar insensível.
Mas são meios, esses, que só estão ao alcance de uma alma
forte, segura de si, capaz de raciocínio e decisão.” (Livro
II; Capítulo XII)
Os Ensaios de Montaigne
são de leitura agradável,
achando-se entremeados de exemplos,
retirados da história,
que sempre nos proporcionarão
algum ensinamento.
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