Dicionário das Obras Básicas da
Cultura Ocidental

Antonio Paim

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Ensaios, de Montaigne

Rodolfo Mondolfo (1877/1976) ensinou-nos que o humanismo renascentista emerge para contrapor-se a uma tendência que se tornara dominante no seio do pensamento religioso e na atuação da Igreja Católica, ainda que não exclusiva, responsável pelo aviltamento da pessoa humana em expressões tais como a Inquisição. A par da exaltação do homem – acerca do qual se afirma que pode equiparar-se à divindade pela intensidade do conhecimento, sendo atributo exclusivo de Deus sua infinita extensão --, a Igreja vinha sendo duramente criticada por se ter deixado absorver pela mundanidade. Num ambiente destes, qual será o destino do código moral da Cristandade? A perplexidade gerada pelo curso histórico, no século XVI,  explica o sentido da meditação de Montaigne, e, ao mesmo tempo, a perenidade de que vieram a revestir-se os Ensaios, na medida em que as questões ali suscitadas são de todos os tempos.

Michel de Montaigne (1533/1592) pertencia a uma família que tinha a posse de um território (senhoria medieval) nas proximidades de Bordeaux, na França, denominado de Montaigne, nome pelo qual passou a ser conhecida. Recebeu educação primorosa, adquirindo ampla familiaridade com os clássicos. A condição de nobre obrigava-o ao desempenho de funções administrativas e políticas, para o que não parece achar-se vocacionado. Perto dos quarenta anos, em 1570, retira-se para a sua propriedade e começa a redigir os Ensaios. Quatro anos após é instado a abandonar o refúgio para envolver-se numa empreitada militar e, depois, assumir encargos na administração. Consegue entretanto voltar á sua meditação em 1578, publicando os dois primeiros livros da obra em 1580. De 1581 a 1585 exerce as funções de prefeito de Bordeaux. Volta aos Ensaios entre 1585 e 1588. Ainda uma vez retorna à política mas consegue, antes de morrer, dar-lhes feição final. Faleceu aos 59 anos de idade.

Os intérpretes de Montaigne costumam toma-lo como filósofo e, por essa razão, cuidam de filia-lo a alguma das correntes greco-romanas antigas com as quais revela dispor de maior familiaridade. E, por esse caminho, aproximam-no seja aos céticos gregos, que negam a possibilidade de qualquer tipo de conhecimento, seja aos estóicos, que recomendavam recorrer à superioridade do espírito – e só a ele tomar como referência – diante das situações da vida.

Talvez seja mais fácil entendê-lo se o considerarmos como um moralista, inserido num ambiente de dúvida e perplexidade. Ele mesmo diz (Livro II; capítulo XII) que “estávamos na época em que a reforma de Lutero começa a expandir-se e abalar em muitos países as antigas crenças”. Montaigne temia que o incitamento a que se desprezasse “as opiniões ante as quais respeitosamente se inclina, porquanto implicam em sua salvação”, degenerasse “em execrável ateísmo, e isso porque o vulgo, não sendo capaz de julgar as coisas em si, se atêm às aparências.” Sua pregação para superar tal perigo está longe de ser de cunho eminentemente teórico, preferindo claramente a busca da recuperação dos valores tradicionais.

Em Montaigne, sendo a razão impotente para alcançar a essência da divindade, só resta ao homem, com humildade e desprovido de orgulho, ater-se aos ensinamentos de Cristo, abandonar o ódio em seu coração e deixar-se possuir pela beleza do amor. Sua pregação moral irá tomar por base a hipótese de ser “evidente que somente nos conformamos com os deveres que se coadunam com as nossas paixões”, sendo portanto imperativa a instrução, notadamente com exemplos, que nos levem a mudar de atitude. De certa forma reduzindo o cristianismo a essa dimensão moral, é levado a depreciar a razão, a mostrar que o homem não tem motivos para supor-se superior aos animais. “Se acreditássemos n´Ele – e não chego a dizer se tivéssemos fé --, se tão somente acreditássemos n´Ele, e com vergonha o digo, se o tivéssemos em nós como um amigo, por exemplo, nós o amaríamos acima de tudo pela sua infinita bondade, e pela beleza que n´Ele resplandece.”

Para atribuir indispensável conteúdo à sua pregação moral, Montaigne irá valer-se tanto de Aristóteles como dos estóicos, sobretudo Sêneca. De Aristóteles irá retirar a tese de que as virtudes, em sua aplicação, revelam possuir um ponto ideal de equilíbrio, a que chamou de justo meio. Aborda inclusive os mesmos temas a exemplo da coragem e da covardia. Essa, aliás, devia ser uma questão muito presente em sua vida por  haver exercido funções militares e participado de combates. Justamente os exemplos de que se vale, neste caso, seria retirados de incidentes ocorridos durante guerras.
 
Entretanto, quando se trata do sofrimento e da morte, irá valer-se dos ensinamentos estóicos. Vejamos a esse propósito o que escreveu no ensaio que aparece denominado como Capítulo XIV do Livro I: “Estamos bem ou mal neste mundo segundo o que pensamos: contente está quem se acredita contente. Nossa crença é que faz seja ou não seja real a felicidade. ... As coisas não são nem dolorosas nem difíceis em si. Para julgar de sua elevação e grandeza é necessário uma alma com essas qualidades, sem o que lhe atribuiríamos nossos próprios defeitos. Um remo é reto, e no entanto quando mergulhamos na água parece curvo. Não basta ver a coisa, importa como vê-la.” E mais: “Por certo a filosofia armou o homem contra o sofrimento resultante de qualquer acidente e proveu-o de paciência. E se o mal sobreexcede suas forças, fornece-lhe o meio de escapar e se tornar insensível. Mas são meios, esses, que só estão ao alcance de uma alma forte, segura de si, capaz de raciocínio e decisão.” (Livro II; Capítulo XII)

Os Ensaios de Montaigne são de leitura agradável, achando-se entremeados de exemplos, retirados da história, que sempre nos proporcionarão algum ensinamento.

 

 

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