Contos
de Cantuária, de
Chaucer
Os Contos de Cantuária correspondem
ao mais famoso livro de Geoffrey
Chaucer (apox. 1342/1400). Os
personagens são os integrantes
de um grupo constituído
para efetivar uma peregrinação à tumba
de São Tomás de
Becker, prelado inglês
do século XII, assassinado
a mando do rei (Henrique II),
local que passou a ser considerado
milagroso. Com o propósito
de passar o tempo, reunidos numa
taberna em Londres, convencionam
que cada um contará duas
histórias na ida e duas
na volta, de que resultariam
mais de cem. Chaucer não
conseguiu realizar esse plano
inicial. A obra contém,
ao todo, 24 contos.
Escrito entre 1387 e 1400, ano
da morte do autor, o livro é considerado
como marco do início da
transição da literatura
estritamente medieval para a
modalidade que viria a caracterizar
a obra literária do Renascimento.
Até então a moda
era cantar os feitos dos cavaleiros,
rememorar as lendas relacionadas às
vitórias de Carlos Magno
contra os infiéis e, no
caso da Inglaterra, voltar sempre
ao Rei Artur e aos Cavaleiros
da Távola Redonda. O que
destoava dessa tradição
era sobretudo a crítica
aos vícios da sociedade,
o que não deixava entretanto
de refletir uma outra realidade
(ou a própria realidade)
em contraponto às fantasias
cavaleirescas. No caso de Chaucer,
entretanto, a perenidade de sua
obra reside nos tipos humanos
que descreve, tornando-os presença
marcante na literatura ocidental.
Os integrantes da peregrinação
formam uma verdadeira galeria
do conjunto da sociedade, com
exceção da classe
mais alta que, obviamente, não
participaria de uma peregrinação
da espécie descrita. Mais
do que temor de represálias,
sendo como era um alto funcionário
da Corte, a omissão seria
mais uma prova de realismo.
Estão presentes, como
ele mesmo diz no Prólogo,
um cavaleiro e representantes
do clero (freiras e padres),
um estudante de Oxford, um magistrado,
membros das corporações
de ofício – dos
quais diz “cada um deles
parecia um bom burguês,
digno de tomar assento no estrado
da sala de sua corporação
ou de tornarem-se, com sua perspicácia,
membros da Câmara da cidade” –e
integrantes da elite acadêmica
(um médico e um provedor
de uma escola de direito em Londres).
Desse conjunto, os tipos humanos
mais destacados pelos estudiosos
são a Mulher da cidade
de Bath e o Vendedor de Indulgências.
Na descrição dos
personagens, que efetiva no Prólogo,
antes de passar-lhes a palavra,
Chaucer evita qualquer intenção
moralizadora. Assim, tanto a
Mulher de Bath como o Vendedor
de Indulgências são
duas pessoas absolutamente cínicas
e nem por isto Chaucer se permite
denegri-las. Está concentrado
em proporcionar-nos um retrato
acabado das suas criaturas. A
mulher de Bath aparece-nos vivamente
como uma pessoa enérgica,
capaz de obter o que deseja.
Bem apessoada, com “seu
rosto atrevido, bonito e avermelhado”.
Pela descrição
de seus trajes vê-se que é dotada
de bom gosto. Na questão
central de sua vida limita-se
a informar “que tivera
cinco maridos à porta
da igreja – além
de alguns casos em sua juventude
(mas disso não é preciso
falar agora).” Destaca
ter feito peregrinações
a Jerusalém e outros lugares
sagrados e indica que “nenhuma
peregrina ousava passar-lhe à gente
na fila dos devotos que levavam
ofertas à relíquia
na igreja, pois, se o fizesse,
ela certamente ficara furiosa,
perdendo por completo as estribeiras”.
Alice – assim se chamava
a mulher da cidade de Bath – tinha
uma maneira muito peculiar de
interpretar, em seu favor, os
mandamentos da Igreja relativos à virgindade
e à castidade. A sua discussão
com os apóstolos é deveras
magistral como modelo de sofisma.
Afinal, se os órgãos
sexuais são tão
perfeitos há de ser para
serem usados – eis a filosofia
de vida que adota. Tal empenho
em usa-los não significa
entretanto que valorize o matrimônio.
Tendo se casado, sucessivamente,
com três pessoas idosas,
conta que tudo fez para infernizar-lhes
a vida. Nesse tipo de relação,
ensina, alguém tem que
mandar. E à mulher compete
tudo fazer para subjugar o marido.
Alice declara francamente que “Deus
quis que as mentiras, as lágrimas
e as intrigas fizessem parte
da natureza da mulher, em todas
as idades. Por isso, há uma
coisa de que muito me orgulho:
no fim de contas, eu sempre levava
a melhor em tudo, de um jeito
ou de outro, por esperteza ou á força,
e sempre com resmungos
e queixumes”.
O Vendedor de Indulgências,
embora parceiro de Alice em matéria
de cinismo, ao contrário
desta é uma criatura efeminada
e nada tem de enérgico.
Ao descreve-lo, Chaucer indica
que “falava com a voz fina;
e não tinha (nem nunca
teria) barba no rosto, que era
liso como se o tivesse escanhoado
naquele instante. Desconfio que
era um castrado ou um veado.
Mas em sua atividade, de Berwick
a Ware, não havia vendedor
de indulgências que se
igualasse a ele.” Trazia
consigo “uma sacola de
viagem recheada de perdões
papais ainda quentes do forno”.
Carregava também um conjunto
de relíquias extraordinárias,
a começar “de uma
fronha de travesseiro que garantia
ser o véu de Nossa Senhora”;
um pedaço da vela do barco
em que viajara São Pedro, “uma
caixinha de vidro contendo ossinhos
de porco” que jurava provenientes
dos restos mortais dos Santos
e coisas desse tipo.
Ao apresentar-se, o próprio
Vendedor de Indulgências
diz claramente: “Não
prego outra coisa senão
a repulsa à cobiça.
...Assim sendo, prego contra
os mesmos pecados que pratico,
a saber, a ambição
e avareza. No entanto, se sou
culpado desses vícios,
consigo fazer que muitos os repudiem
e se arrependam sinceramente.
Se bem que não seja esse
o meu propósito. Na verdade, os
próprios sermões
que prego devem-se à cobiça.
Mas creio que disso já falei
o suficiente.”
No Prólogo, Chaucer destaca que “com falsos elogios e engodos
fazia o pároco e seus fieis de bobos. Entretanto, para fazer-lhe justiça, é preciso
não esquecer que, na igreja, era um clérigo dos mais dignos:
lia muito bem o versículo do dia e a narrativa litúrgica, e,
melhor que tudo, sabia cantar o ofertório. Afinal, não ignorava
que, encerrada essa parte da missa, chegava a hora de pregar e de afiar a língua
para arrecadar tanto dinheiro quanto lhe fosse possível. Não é atoa
que cantava com tal vigor e alegria”. E assim ficamos de posse de um
retrato imorredouro de uma figura então muito valorizada. Descrição
literária que, na época, correspondia a uma grande novidade.
Os Contos de Cantuária servem
também para evidenciar
como o conhecimento da cultura
antiga, fenômeno do século
anterior, desde logo marcaria
a produção literária
e não apenas a filosofia
e o pensamento científico.
O conto do Cavaleiro corresponde
ao transplante da novela de cavalaria
para a Grécia Antiga.
O quarto marido da Mulher de
Bath é descrito como
um cultor das tragédias
gregas e dos grandes autores
romanos. Está presente,
ainda, referências ao Almagesto de
Ptolomeu. (Ver também CHAUCER).
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