Karl
Popper: conceituação
e
defesa
da sociedade aberta

Karl
Popper (1902/1994)
contribuiu direta e
indiretamente para
o enriquecimento da
doutrina liberal no
século XX. Neste último
caso, embora o liberalismo
não pretenda
apostar numa determinada
filosofia, na medida
em que preconiza o
pluralismo nessa matéria,
tudo quanto possa obstá-lo
lhe diz respeito. O
marxismo é o
exemplo mais flagrante.
A par disto, embora
o positivismo tomado
na acepção
inglesa não
busque o confronto
com o sistema democrático
representativo, as
versões continentais
européias, que
mais diretamente influíram
no Brasil, acabaram
numa franca aliança
com o marxismo, tornando-se
portanto potencial
ameaça à democracia
e à liberdade.
A filosofia da ciência
de Karl Popper representou
um golpe de morte contra
a proliferação
do caldo de cultura
em que se nutrem positivismo
e marxismo para reduzir
a ciência a
um conhecimento dogmático
a seu serviço.
Karl Popper era austríaco de nascimento e emigrou
de sua pátria, em 1935, a fim de escapar ao nazismo, primeiro para a
Inglaterra e depois para a Nova Zelândia. A partir de 1949 radica-se
na Inglaterra, onde cria, na London School of Economics, um grupo de estudiosos
da filosofia das ciências que viria a se tornar um dos mais importantes
do Ocidente.
Popper contribuiu grandemente para superar a visão
oitocentista que se tinha da ciência, segundo a qual repousava na observação,
sendo o método indutivo sua base primordial. Inverteu essa relação
ao reconstituir minuciosamente o trabalho do cientista, no livro que denominou
de Lógica da Investigação Científica (1935). A
ciência parte de hipóteses, formuladas por quem está habilitado
a fazê-lo, estando sujeitas à refutação. Ao mesmo
tempo, submeteu a indução a uma crítica demolidora. Assim,
em suas mãos a ciência deixa de ser algo dogmático e concluso
para exercitar-se em limites perfeitamente estabelecidos, além de experimentar
avanços e recuos. Sua obra como filósofo das ciências é integrada
por significativo conjunto de textos, entre os quais destacam-se, além
do livro citado, Conjecturas e Refutações: o desenvolvimento
do conhecimento científico (1962) e Conhecimento Objetivo (1972).
Nos últimos anos de vida publica o que chamou de Post Scriptum à sua
meditação sobre as ciências. Essa parcela de sua obra,
pelo que tem de mais representativo, está traduzida para o português.
Deste modo, as contribuições de Popper relativas à filosofia
da ciência tiveram um papel altamente positivo no tocante à preservação
do pluralismo cultural e, portanto, na sobrevivência de ambiente favorável às
idéias centrais da doutrina liberal quanto aos institutos básicos
da democracia representativa. A par disto, impossibilitou grandemente que seja
o marxismo seja o positivismo tivessem a possibilidade de continuar arvorando
a falsa alegação de que suas teses seriam de natureza científica.
Do ponto de vista da preservação
do sistema democrático representativo, seu livro A sociedade aberta
e seus inimigos –cuja tradução veio a ser publicada
no Brasil pela Editora Itatiaia-- desempenhou papel fundamental. Apareceu num
momento (1945) em que o caráter totalitário do regime soviético
ficara obscurecido em decorrência da aliança da União Soviética
com o Ocidente, contra o nazismo. Logo adiante, na medida em que os russos
logram impor o seu odioso sistema a sucessivos países no Leste europeu,
a pertinência do alerta de Popper iria tornar-se evidente, assegurando
o sucesso da obra e a sua sucessiva reedição.
Para muitos segmentos da sociedade, a União
Soviética estava associada ao socialismo, criação ocidental
francamente caudatária da tradição cristã. Os fundadores
do socialismo, no século XIX, vincularam-no à idéia cristã da
fraternidade universal. Ao mesmo tempo, entretanto, tinha-se consciência
de que o bolchevismo inseria uma componente despótica inquestionável,
amesquinhadora da pessoa humana, entrando em franca contradição
com o cristianismo. Os socialistas alemães, ao longo da década
de 20, advertiram quanto à verdadeira característica do regime
soviético, movendo uma crítica demolidora, notadamente às
idéias de “socialismo científico” e “ditadura
do proletariado”. Contudo, nos anos 30, ao formar inicialmente contra
o nazismo, os russos e seus seguidores no Ocidente turbaram de alguma forma
aquela consciência. Embora a aliança entre os dois totalitarismos
haja sido recomposta com a assinatura do Pacto Germano-soviético, em
1937, a invasão da União Soviética pela Alemanha, em 1941,
e o ingresso desta na Aliança Ocidental criou a ilusão de que
o regime soviético poderia caminhar no sentido da democracia. O seu
empenho de domínio da Europa, nos anos subseqüentes ao término
da guerra, acabaria evidenciando o irrealismo daquela expectativa. Neste particular é que
o livro de Popper tornou-se um verdadeiro marco, ao identificar e criticar
os fundamentos doutrinários dos inimigos do sistema democrático
representativo vigente nos principais países do Ocidente, que batizou
com a feliz expressão de sociedade aberta.
Com A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Popper
notabilizou-se igualmente como pensador político. Sua proposta fundamental
consiste em aplicar, à organização social, o mesmo método
que desenvolveu em relação à ciência. Se o crescimento
desta depende da derrota do dogmatismo, também a democracia não
pode sobreviver à existência de verdades irrefutáveis.
A sociedade aberta é uma conquista da civilização, corresponde
ao sistema concebido e praticado pelo homem maduro, que recusa ser tratado
como criança pelo Estado, aceita todas as suas responsabilidades – entre
as quais inclui não apenas direitos mas também deveres –,
reconhece a impossibilidade do paraíso terrestre e desdenha das utopias
socialistas.
No entendimento de Popper, a civilização começa
com sociedades fechadas, organizadas em bases tribais, repousando as relações
sociais na rigidez dos costumes, geralmente fundados em crenças mágicas.
Na Grécia iniciou-se uma outra experiência, a de criar um espaço
para a responsabilidade pessoal. A obra de Platão está destinada
a obstar essa mudança. Popper enxerga na teoria política platônica
a origem do totalitarismo, razão pela qual submete-a a uma crítica
profunda.
Platão desenvolve a teoria de que os seres e as instituições
existentes são cópias imperfeitas de idéias imutáveis,
cumprindo reconstituí-las como ideal a fim de dispor de uma espécie
de arquétipo. No caso do Estado, o ideal deveria refletir aqueles aspectos
presentes aos Estados existentes. O critério para identificá-los
consiste nas estruturas que se tenham revelado mais duradouras, isto é,
que impeçam as mudanças. A origem destas provém da desunião
da classe governante, cumprindo portanto substituí-la pelo sábio
(filósofo). O modelo que estaria mais próximo do Estado ideal
seria Esparta, onde vigorava uma espécie de ditadura dos mais experientes.
Em sua obra fundamental, A República, o
remédio de Platão consiste numa operação de enquadramento
da sociedade de forma que nesta não venha a prosperar qualquer espécie
de individualismo.
Segundo Popper, coube a Hegel proceder à reelaboração
moderna do totalitarismo platônico, tendo se tornado o “elo perdido” que
permite identificar as origens do totalitarismo em nosso tempo. Como Platão,
Hegel irá ocupar-se em sua obra de demonstrar que o Estado é tudo
e, o indivíduo, nada. Sua doutrina mereceu de Popper caracterização
e análise exaustivas.
Tal é, no entendimento de Popper, o verdadeiro suporte
do marxismo. Na sua abordagem das idéias de Marx, torna-se patente o
equívoco da suposição, algo difundida no Ocidente, de
que o bolchevismo corresponderia a uma distorção do “humanismo” de
Marx. Popper demonstra que Marx apóia-se numa consideração
apresentada como sendo resultante da experiência histórica mas
que, de fato, não passa de um determinismo sem qualquer suporte científico.
No livro estão considerados ainda o economicismo, a luta de classes,
a teoria de que o Estado é uma espécie de comitê da classe
dominante, o advento do socialismo, a revolução social e o relativismo
moral.
Logo na Introdução de A sociedade aberta
e seus inimigos, Popper pergunta: “Porque todas essas filosofias
sociais sustentam a revolta contra a civilização? Qual o segredo
de sua popularidade? Porque atraem e seduzem tantos intelectuais?”. A
seu ver, duas seriam as razões básicas. A primeira seria a profunda
insatisfação com um mundo que está longe de corresponder
aos nossos ideais morais e aos nossos sonhos de perfeição. Ainda
que a perfeição seja um atributo da divindade, inacessível à pessoa
humana, aqueles que preferem viver no mundo da utopia valem-se dessa perspectiva
para atacar a sociedade existente, desconhecendo a capacidade de aperfeiçoar-se,
patente em suas instituições, despojando tal ataque de qualquer
intenção construtiva. A segunda razão corresponderia ao
fato de que, acreditando que a história estaria pré-determinada,
sentem-se dispensados do ônus da responsabilidade pessoal.
Finalmente, Karl Popper repõe em seu devido lugar
o papel da história. Nesse particular, cumpre ter presente que sua crítica
ao que denomina de historicismo tem em vista a suposição de que
haveria determinismos históricos. Na tradição anglo-saxônica
o emprego do termo não induz a equívocos, o mesmo entretanto
não ocorrendo na tradição latina. Nos países latinos
há uma longa tradição historicista que consiste no inventário
dos valores que caracterizam a cultura ocidental, justamente o que Miguel Reale
denominou de historicismo axiológico. Popper vale-se justamente
dessa espécie de historicismo ao reivindicar para a sociedade aberta
aqueles princípios que se fundam no valor da pessoa humana, uma das
características distintivas de nossa civilização. Embora
na tradução não coubesse adotar outro termo, cumpre levar
em conta o sentido em que o emprega e de que tradição se louva
para fazê-lo.
A Sociedade Aberta e Seus Inimigos inicia um ponto
de inflexão a partir do qual a doutrina liberal encontrou o caminho
que a levaria, nas décadas seguintes, a impor ao comunismo totalitário
uma derrota que se espera seja definitiva.