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Maquiavel: precursor da doutrina que

    fundamenta o Estado Moderno

 

 

 

Niccolo Machiavelli (1469/1527), aportuguesado como Maquiavel, inicia uma nova fase da meditação sobre a política, ao proclamar a sua autonomia, basicamente, para por fim à sua subordinação à Igreja, que, como vimos, chegou a ser a questão candente no ciclo histórico anterior. Ao mesmo tempo, contudo, a autonomia reivindicada está a serviço da centralização. Assim, antes de apresentar ao obra que lhe deu renome --O Príncipe- - cumpre chamar a atenção para a novidade representada pelo Estado Moderno.

A constituição do Estado Moderno, centralizador do poder e monopolizador da violência nos marcos de determinado território, resultou certamente da conjugação de todo um elenco de circunstâncias, apresentando, além disto, cada Estado nacional de per si, certas e determinadas singularidades. Contudo, essa formidável organização não teria sido possível sem a elaboração teórica que a acompanhou, da lavra de um pequeno grupo de pensadores. Sugerindo uma síntese magistral, Jean-Jacques Chevallier (As grandes obras da política de Maquiavel a nossos dias) diz que se colocaram ao serviço do absolutismo. Vale dizer: na maneira como foi de início concebido, o Estado Moderno repousava na monarquia absoluta. São eles: Maquiavel (1459-1527); Bodin (1530-1596); Hobbes (1588-1679) e Bossuet (1627-1704).

O nível de centralização alcançado pelo Estado Moderno está indubitavelmente correlacionado às dimensões do território em que se propõe estabelecê-la. Se a pretensão objetivasse alcançar toda a Europa Ocidental ou mesmo apenas os limites do Sacro Império, muito provavelmente não seria bem-sucedida. É certo também que as armas de fogo deram ao Príncipe patrocinador do empreendimento a possibilidade real de vencer a resistência dos castelos, autênticos símbolos da força do sistema descentralizado em vigor.

Em que pese a significação desses e de outros aspectos materiais – ou mesmo fortuitos e históricos – o maior obstáculo a vencer residia na longa tradição de exercício descentralizado da autoridade pública. Na Antigüidade Ocidental, as famílias preservaram grandes parcelas do poder, cabendo-lhes mesmo administrar a Justiça quando a instância pública condenasse qualquer de seus membros. A par disto, a dominação romana sobre as áreas conquistadas compreendia o respeito às formas adotadas pelos governos locais. No período que precede a consolidação da feudalidade européia, inexistia virtualmente qualquer poder e deve-se justamente a tal circunstância a constituição do feudalismo como um serviço. O sistema vitorioso e que iria garantir o apogeu dos séculos XII e XIII repousava na multiplicidade de focos de poder, entrelaçados segundo regras consuetudinárias que acabariam por formalizar-se plenamente.

Seria impossível combater tão longa e arraigada tradição através do simples recurso à força. A empresa seria melhor sucedida na medida em que contasse com argumentos convincentes para respaldá-la. Tenha-se presente que na altura em que o fenômeno ocorre – com maior força no século XVII –, a elite européia estava longe de ser constituída por guerreiros incultos descendentes dos povos germânicos, a exemplo de Carlos Magno. Havia passado pelo longo processo civilizatório a que correspondia o cristianismo, com todos os seus subprodutos, como a sofisticação estética ou as disputationes escolásticas. De modo que os argumentos fornecidos por aqueles pensadores eqüivalem também a uma contribuição essencial ao aparecimento do Estado Moderno.

Em seguida à abordagem de Maquiavel, efetivada adiante, consideraremos de forma autônoma a obra e o papel desempenhado por Bodin e Hobbes. Quanto a Bossuet, não se preservou maior interesse pelos tratados de sua autoria.

Seu texto básico intitulou-o de A política extraída da Sagrada Escritura (1679) e destinava-se à formação do herdeiro do trono francês. A seu tempo, corresponde à consideração de um aspecto importante do absolutismo, isto é, as relações da nova doutrina com as teses escolásticas de sabor teológico. O pensador inglês Robert Filmer, autor do Patriarcha (1680), não fora bem-sucedido nesse mister porquanto se limitara a postular que nenhum homem nasce livre, nem mesmo os príncipes, salvo aquele ou aqueles que, em virtude de direito divino, são herdeiros legítimos de Adão. Sua doutrina foi combatida por Locke no Primeiro Tratado. Com o passar do tempo tal aspecto perdeu toda relevância. A questão da origem divina do poder do Monarca tangência de todo a temática consolidada na Filosofia Política da Época Moderna.

Passemos então a considerar a contribuição de Maquiavel.

Em 1498, aos 29 anos de idade, Niccolo Machiavelli passa a ocupar uma importante função no governo de Florença, na qual permanece até 1512. Nesse ano, cai o governo republicano da cidade e os Medici voltam ao poder. Em 1513, acusado de participar de uma conspiração contra os novos governantes, é preso e torturado. Reconhecida a sua inocência é libertado. Retira-se da vida pública mas acaba prestando certa colaboração aos Medici. É nessa época que escreve O Príncipe. Quando o dá por concluído, em 1515, tem 46 anos. Até a morte, em 1527, aos 58 anos, desenvolverá grande atividade intelectual. Pouco antes de falecer, assiste à restauração da República Florentina, que irá hostilizá-lo pelos vínculos que chegara a estabelecer com os Medici.

No período da vida de Maquiavel, a Itália atravessa grandes dificuldades, tendo sido invadida pelos franceses, espanhóis, suíços e alemães. Fragmentada em diversos Estados diminutos, dependendo de tropas mercenárias conduzidas pelos chamados condottieri, o país não tinha condições de enfrentar os exércitos invasores, não só mais numerosos como melhor equipados e treinados.

Estudando os clássicos e a própria história da derrota de Roma pelas hordas bárbaras, Maquiavel infere que só a constituição de um Estado potente, dispondo de um exército nacional, poderia derrotar os novos "bárbaros". Conclui Gaetano Mosca, na História das doutrinas políticas: "Mas era necessário encontrar o homem capaz de realizar este ousado projeto. Espera tê-lo achado em Júlio de Medici, irmão do Papa Leão X, pois que a Casa dos Medici, dispondo de Florença e do Papado, era a mais possante da Itália. Deseja escrever uma espécie de catecismo, uma coleção de máximas que pudessem permitir a realização de suas grandes aspirações. Este tratado era O Príncipe, que foi de início dedicado a Lourenço de Medici, sobrinho do Papa Leão X e, à vista da morte deste, a Júlio de Medici".  Com a volta dos Medici ao poder, este é exercido por Lourenço II. Após a morte deste, em 1919, pelo Cardeal Júlio de Medici, que obtém a colaboração de Maquiavel. Júlio de Medici seria o Papa Clemente VII

O Príncipe é um livro de pequenas dimensões, dividido em 26 capítulos. Seu autor estuda os meios pelos quais se constituem, se conservam e se estendem os Estados e termina exortando à sua aplicação e à criação de um potente exército nacional para libertar a Itália da dominação estrangeira.

O livro poderia ser dividido em duas partes. Na primeira, apresenta exemplos de homens que, em diversas circunstâncias, conseguiram chegar ao poder e preservá-lo. Na segunda, tomando por base a natureza humana, anuncia regras e conselhos sobre a arte de governar, ilustrando-a com exemplos.

Maquiavel parte de uma nova classificação: repúblicas e principados.

Os capítulos que contêm o essencial do chamado maquiavelismo são os XV, XVI, XVII e XVIII. Nestes estabelece as virtudes e os vícios de que a natureza humana é capaz para se perguntar quais as categorias que convêm ao Príncipe. Conclui que deve agir sem referência aos preceitos morais sempre procurando demonstrar que sua conduta é virtuosa. Se não agir deste modo não poderá lutar contra os que agirão contra ele sem quaisquer reservas.

O Príncipe deve não apenas ser amado mas igualmente temido. Se tiver que escolher, é preferível que seja temido.

Seguem-se conselhos relativos à formação do governo. O sucesso do Príncipe depende sobretudo da própria conduta e de suas qualidades pessoais.

No capítulo final, Maquiavel exorta o Príncipe à libertação da Itália.

O Príncipe suscitou enorme diversidade de interpretações, inclusive a que aventa a hipótese de que tratar-se-ia de uma sátira.

Isaiah Berlin (1909-1997) tem a oportunidade de efetuar uma enumeração exaustiva de tais controvérsias, conforme se referirá adiante.

O essencial parece consistir no fato de que Maquiavel marca o início da consideração da política de modo autônomo da moral. A questão achava-se naturalmente em seus primórdios e o seu tratado parece haver chocado a muita gente. Contudo, o florentino não deve ser tomado à conta de padrão da falta de escrúpulos, mesmo porque, na vida pessoal teve uma conduta exemplar, além de que era movido pela intenção de promover a libertação de seu país.

No ensaio intitulado "O problema de Maquiavel", Isaiah Berlin reuniu a enorme diversidade de interpretações suscitadas por O Príncipe, em que pese a circunstância de tratar-se de um livro pequeno, estilo direto e nada obscuro. Apreciando-as, Berlin refuta desde logo a hipótese de que Maquiavel rejeitava toda espécie de moralidade. A seu ver, sua incompatibilidade era com a ética cristã que negava para pôr em seu lugar os valores da antigüidade clássica. Escreve: "Os valores de Maquiavel podem ser errados, perigosos, odiosos, mas ele não está brincando. Não é cínico. É sempre o mesmo fim: um Estado concebido numa analogia com a Atenas de Péricles ou Esparta, mas acima de tudo, a República Romana. Uma finalidade como esta, pela qual os homens anseiam, naturalmente (pelo menos Maquiavel pensa que a história e a observação oferecem evidências concludentes para isto) "desculpa" quaisquer meios. Quando julgar meios, olhe sempre para os fins: se o Estado sucumbir tudo estará perdido. Daí o famoso parágrafo quarenta e um do terceiro livro dos Comentários, onde diz: “Quando a própria segurança do país depende de uma decisão a tomar, não se deve permitir o predomínio de nenhuma consideração de justiça ou injustiça, humanidade ou crueldade, glória ou infâmia. Deixando de lado qualquer outra consideração, só temos de perguntar qual o rumo que salvará a vida e a liberdade do país".

Escreve ainda Isaiah Berlin: "Podemos discordar deste ponto de vista. Podemos argumentar que a grandeza, a glória e a riqueza de um Estado são ideais ocos ou detestáveis quando os cidadãos são oprimidos e tratados como meros meios para atingir a grandeza do todo. Como os pensadores cristãos, ou como Constant e os liberais ou como Sismondi e os teóricos do Estado beneficente, podemos preferir um Estado cujos cidadãos são prósperos mesmo que o tesouro seja pobre, cujo governo não seja nem centralizado, nem onipotente, nem mesmo soberano, mas cujos cidadãos gozem de um alto grau de liberdade individual. Isto pode ser contrastado favoravelmente com a grande concentração autoritária de poder edificada por Alexandre, ou Frederico o Grande, ou Napoleão, ou os grandes autocratas do século XX".

Vê-se pois que a importância de Maquiavel reside no fato de que se coloca a serviço de uma instituição social nova e que estava destinada a realizar uma grande trajetória: o Estado Moderno, em sua feição absolutista inicial. E, ao mesmo tempo, o mérito de vislumbrar uma investigação autônoma da política, sem ir buscar os princípios na ética ou em qualquer outra esfera.

Quanto à disputa de interpretações, sem pretender aqui resumir o levantamento exaustivo realizado por Isaiah Berlin, algumas referências precisam ser feitas. Alberico Gentile e Garrett Mattingly acham que "escreveu uma sátira, pois é absolutamente impossível que pensasse literalmente o que disse": Para Spinoza, Rousseau, Ugo Foscolo e Signor Ricci - sendo este último o prefaciador da edição incluída na Oxford Classics – a intenção do autor é criticar e admoestar os costumes descritos. Já o prof. A.H. Gilbert refuta essa hipótese e enquadra O Príncipe no gênero comum da Renascença, a literatura exaltadora dos príncipes.

Giuseppe Prezzolini e Hiran Haydn rotulam-no simplesmente como escritor anticristão, o que Berlin considera mais próximo da verdade, naturalmente sem os exageros daí inferidos. Essa linha interpretativa seria aliás muito fértil. Afirmou-se que Maquiavel estava francamente inspirado pelo diabo para levar homens bons à perdição, "o grande subvertedor, o mestre da maldade, le docteur de la scéleratesse, o inspirador da noite de São Bartolomeu, o modelo de Iago. Este é o "o sanguinário Maquiavel" das famosas 400 referências da literatura elisabetana. Seu nome acrescenta um novo ingrediente à personagem mais antiga de Satanás. Para os jesuítas, Maquiavel é "o sócio do diabo em crimes", "um escritor ignominioso e incrédulo" e O Príncipe é, nas palavras de Bertrand Russel, "um compêndio para gangsteres (comparem isto com a opinião de Mussolini, talvez tacitamente compartilhada por outros chefes de Estado, que chama o livro de 'um vade mécum para estadistas')".

Enfim, todos os grandes nomes da cultura ocidental tiveram uma palavra a dizer (Hegel, Herder, Croce, Cassirer etc.). Os marxistas também não se furtaram a fazê-lo, endeusando-o, para seguir ao próprio Marx.