Keynes
e a nova feição
do
liberalismo econômico
As mais importantes
modificações
introduzidas no liberalismo
tradicional, contemporaneamente,
devem-se a John Maynard
Keynes (1883/1946).
Professor de Economia,
sem ter ainda granjeado
a notoriedade que chegou
a alcançar,
publica em 1919, aos
36 anos de idade, uma
obra importante em
que se opõe
frontalmente à política
de reparações
impostas aos países
derrotados na Primeira
Guerra Mundial: As
conseqüências
econômicas da
paz. Afirma ali
que os problemas econômicos
da Europa eram mais
significativos que
as disputas políticas
de fronteiras. Desde
essa época e
até 1926, quando
edita O fim do "laissez-faire" -
livro que sistematiza
algumas teses sustentadas
em conferências
dos anos anteriores
-, amadurece em seu
espírito a necessidade
de refazer a economia
clássica, tarefa
a que dedica o melhor
de seus esforços
e que coroa com a obra Teoria
geral da ocupação,
do juro e do dinheiro (1936).
Dessa forma é na
qualidade de teórico
que logra substituir
a doutrina econômica
clássica e que
se torna peça
essencial do liberalismo
político. Ao
invés da hipótese
do equilíbrio
espontâneo, como
resultante final da
livre atividade dos
produtores individuais
- que a experiência
histórica incumbira-se
de refutar - Keynes
concebe os mecanismos
da intervenção
do Estado, basicamente
através de processos
indiretos, isto é,
sem o imperativo da
sua transformação
em empresário,
mantidas as características
essenciais da economia
de mercado.
A par da elaboração
teórica, Keynes
interveio ativamente
na vida pública
de seu país,
como publicista, conselheiro
governamental e, finalmente,
governador do Banco
da Inglaterra. Influi
de maneira decisiva
na concepção
e prática no New
Deal de Roosevelt
e, dois anos antes
de falecer, torna-se
o artífice da
política econômica
internacional deste
pós-guerra,
com sua participação
na Conferência
de Breton Woods, em
junho de 1944, onde
se criou o organismo
que atualmente se conhece
com a denominação
de Banco Mundial (BIRD).
Tomou partido em face
de cada uma das medidas
econômicas relevantes,
tanto na Inglaterra
como nos Estados Unidos.
Envolveu-se em múltiplas
polêmicas. Por
isto mesmo, os estudiosos
de sua obra afirmam
que a teoria keinesiana é inseparável
da evolução
da economia das grandes
nações
industriais durante
a vida de seu autor.
Assim, por exemplo,
ao combater violentamente
a política de
redução
salarial do Partido
Conservador, na segunda
metade da década
de vinte, Keynes via-se
instado a referir e
abordar os aspectos
essenciais do que mais
tarde veio a constituir
sua doutrina.
Tentar apontar as notas
dominantes do keynesianismo
representa sem dúvida
um grande risco, notadamente
pelo fato de que corresponde
a uma contribuição
significativa no sentido
de constituir a economia
como autêntica
ciência operativa
e, por isto mesmo,
requerendo o recurso
a modelos matemáticos
sempre mais sofisticados.
A par disto, introduz
alguns conceitos extremamente
complexos e que vieram
a tornar-se nucleares
na moderna ciência
econômica. Por
essa razão dar-se-á ênfase
aos aspectos que interessam
mais de perto à análise
ora empreendida, evitando-se,
tanto quanto possível,
o emprego de noções
especializadas e recorrendo-se às
judiciosas indicações
de Raul Prebisch (1901/1986)
em sua conhecida obra Introduction a
Keynes, sucessivamente
reeditada (México,
Fondo de Cultura Econômica).
Como se sabe, Prebisch
acabou tendo o seu
nome associado ao cepalismo –pelo
fato de haver dirigido
a CEPAL, órgão
das Nações
Unidas para a América
Latina, que se notabilizou
por haver estimulado
a estatização
da economia nesses
países. Contudo,
sua exposição
do keynesianismo, que
tomamos por base, consiste
num texto estritamente
acadêmico. Para
um conhecimento mais
aprofundado desse autor,
pode-se consultar a
biografia elaborada
por Robert Skidelsky,
em três volumes.
Segundo Keynes, o Estado
Liberal é responsável
pela manutenção
de determinada taxa
de ocupação
de mão-de-obra,
reformulando nesse
particular a doutrina
clássica acerca
do desemprego. Para
que tal se dê,
incumbe-lhe estimular
os investimentos. Neste
sentido, deve cuidar
sucessivamente da redução
da taxa de juros, a
fim de que as economias
(poupanças)
assumam de preferência
a forma de inversões.
Uma adequada taxa de
juros seria sempre
inferior à menor
remuneração
em investimentos produtivos.
Tendo a experiência
evidenciado que a simples
manipulação
desse mecanismo (taxa
de juros) revelou-se
insuficiente para manter
o nível das
inversões, conceberam-se
as formas de transferir
recursos ociosos para
as mãos do Estado,
a exemplo da taxação
progressiva das rendas.
Em síntese,
o liberalismo abandona
o laissez-faire e
concebe modalidades
de intervenção
econômica estatal,
preferentemente segundo
mecanismos indiretos.
O último capítulo
da Teoria Geral contém
um enunciado sintético
das proposições
keinesianas, batizadas
por Prebisch,
na obra citada, de
filosofia social. Dessa
magnífica síntese,
cumpre destacar o seguinte:
1) Os dois defeitos
fundamentais da economia
capitalista consistem
em não haver
alcançado a
plena ocupação
e em coexistir com
uma arbitrária
distribuição
da renda e das riquezas.
O último aspecto é em
parte justificado por
motivos humanos e psicológicos.
Pode-se inclusive admitir
que o incentivo do
lucro há de
desviar energias que
de outra forma seriam
canalizadas para a
crueldade, a ambição
de poder e outros defeitos
da criatura humana.
Contudo, semelhante
incentivo provavelmente
não precisaria
ser tão forte,
mesmo que não
se cogite do projeto
de modificar a natureza
humana;
2) o adequado equacionamento
da questão dos
juros deve contribuir
para a minimização
de pelo menos um dos
defeitos antes apontados
e, eventualmente, criar
condições
para que a sociedade
possa, a longo prazo,
enfrentar o segundo
tema. Trata-se de que,
ao contrário
do que supunha a economia
clássica, não
são requeridas
altas taxas de juros
a fim de provocar a
necessária poupança.
A ação
sobre a taxa deveria
desenvolver-se até que
o custo do capital
deva atingir, no máximo,
níveis que estimulem
a propensão
a poupar em contraposição à propensão
a consumir;
3) a consecução
de semelhante objetivo
requer que o Estado
assuma certas atribuições
que tradicionalmente
pertenciam à iniciativa
privada, tratando de
influir sobre o comportamento
do sistema através
da tributação,
da taxa de juros e
de outras medidas.
Isto não significa,
entretanto, que se
deva chegar ate a socialização
dos meios de produção;
4) trata-se de conseguir
a manutenção
de todas as vantagens
do individualismo (eficiência,
proveniente da descentralização
das decisões,
e liberdade pessoal),
eliminando seus efeitos.
Na época supunha-se
que Estado totalitário
(soviético)
resolvera o problema
do desemprego às
custas da eficiência
e da liberdade. Em
decorrência dessa
suposição
(que a experiência
comprovou ser parte
da “grande mentira”),
o keynesianismo afirmava
que o Estado liberal
devia livrar-se do
mal sem perdê-las
(às vantagens);
e,
5) se bem as guerras
provenham de diversas
causas, não
se deve subestimar
o papel que nelas desempenha
a luta pelos mercados,
impulsionada pelo desemprego.
Sua eliminação,
eventualmente, poderia
contribuir para a manutenção
da paz.
Ao concluir seu livro,
em 1936, Keynes manifesta
extrema confiança
no poder das idéias
e acredita que governam
o mundo. No que respeita
a sua doutrina, a avaliação é inteiramente
correta. A aplicação
das políticas
anti-recessivas por
ele formuladas, adotadas
nos países desenvolvidos
no último pós-guerra,
asseguraram cerca de
trinta anos sem crises
cíclicas. Nos
150 anos precedentes,
os economistas consideram
que o capitalismo experimentou
cerca de vinte crises
cíclicas, uma
para cada sete/oito
anos, e pelo menos
trinta recessões
parciais, processo
esse que culminaria
com a catástrofe
de 1929. Nos primeiros
decênios posteriores à Segunda
Guerra, as recessões
foram tênues
e não muito
prolongadas.
Em outubro de 1973,
o recém formado
cartel dos detentores
das maiores jazidas
de petróleo,
a Organização
dos Produtores de Petróleo,
conhecida como OPEP,
anunciou a duplicação
dos preços do
combustível
que, na verdade foram
multiplicados por cinco.
Em março de
1979, a OPEP os quintuplica
de novo. Seguiu-se
a drástica redução
das taxas de crescimento,
desta vez associadas
ao fenômeno que
passou à história
com o nome de estagniflação,
estagnação
econômica associada
a altas taxas de inflação.
O desemprego torna-se
fenômeno generalizado.
Começa então
uma acirrada discussão
para identificar as
causas do fenômeno
que, logo se viu, não
poderiam ser atribuídos
inteiramente à alta
do petróleo.
Vigorou durante um
certo período
a crença de
que decorreria dos
níveis de produtividade
do Ocidente, bem mais
reduzidos que os alcançados
pelo Japão.Outras
hipóteses foram
aventadas. O certo é que
estávamos longe
de uma opinião
consensual.
Chegando ao poder em
1979, sob a liderança
de Margareth Thatcher,
o Partido Conservador
resolveu enfrentar
a burocracia sindical
e fechar indústrias
deficitárias.
Tendo ganho as eleições,
em 1945, os trabalhistas
haviam estatizado os
setores econômicos
mais importantes do
país. Pressionados
para reduzir o déficit
público, na
altura responsabilizado,
em parte, pela persistência
da inflação,
o governo conservador
promoveu a mais ampla
desestatização.
Como resultado, a inflação
foi vencida, do mesmo
modo que o desemprego.
Vale a pena transcrever
o confronto que o presidente
da Federação
das Indústrias
Alemãs, Hans
Olaf Henkel, estabeleceu
entre a Inglaterra
e a Alemanha, nos fins
da década de
noventa.
Começa com esta
pergunta: como é possível
que, desde 1981, os
estrangeiros tenham
investido ali dez vezes
mais do que no mercado
alemão, que é duas
vezes maior? Enquanto
os ingleses, nos últimos
quatro anos, criaram
600 mil empregos, a
taxa de desemprego
na Alemanha até aumentou.
Como os ingleses conseguiram
reverter o desemprego?
Na Inglaterra, embora
os custos da mão-de-obra
sejam metade dos alemães,
não há diferenças
substanciais entre
o poder aquisitivo
do trabalhador inglês
e do alemão.
O confronto segue este
caminho (o discurso
foi publicado na Revista
da FIESP da
primeira semana de
outubro de 1997).
Os efeitos da desestatização,
promovida pelo Partido
Conservador Inglês,
serviram para desvendar
a verdadeira causa
da estaginflação e
do desemprego: carga
tributária excessiva,
em razão do
agigantamento do Estado.
A efetivação
das novas políticas
permitiram a realização
de estudos empíricos
destinados a quantificar
o efeito da redução
de impostos, incidentes
sobre as empresas,
na absorção
de mão-de-obra
pelo mercado de trabalho.
Tendo falecido
em 1946, Keynes não presenciou a estatização da economia
na Europa Ocidental. De modo completamente indevido, esse desfecho acabou sendo
associado ao seu nome quando se tratou, ainda em fins dos anos setenta
e na década de oitenta, como foi referido, de enfrentar o problema da
estagnação econômica, associada à inflação.
Responsabilizar o keinesianismo pelos efeitos perversos da estatização
da economia, na Europa do pós-guerra, significa aceitar a interpretação
constante de uma obra publicada na Inglaterra, em 1936, do dirigente trabalhista
Bowe, intitulada Mr. Keynes and the Labour Movement: “A Teoria
Geral acha-se perfeitamente em harmonia com a política do trabalhismo
e, o que é mais importante, exprime na forma de teoria econômica
o que sempre esteve implícito na atitude do movimento trabalhista”.
Na época, através da famosas Cláusula IV, o Programa do
Labour identificava socialismo com a posse, pelo Estado, dos meios de produção.
Antes de assumir a liderança do trabalhismo, Tony Blair impôs
a revogação dessa Cláusula. Deste modo, aquela interpretação
do keinesianismo é de todo improcedente, na medida em que é claro
quanto à natureza indireta dos procedimentos anti-recessivos que introduziu.
Como foi referido, a Teoria Geral afirma que o intervencionismo
não deveria chegar à socialização dos meios de
produção.
A
experiência conservadora, na Inglaterra, serviu para evidenciar que o
problema capital residia na mencionada circunstância, impondo-se proceder à privatização
das empresas e, em conseqüência, reduzir a despesa pública
e manter sob controle o déficit público. Num primeiro momento,
os socialistas tentaram obstar a universalização dessa política,
o que levou ao aparecimento, no seio dessa corrente, da chamada social-democracia,
isto é, a vertente que renuncia à sociedade sem classes
e à estatização da economia, movimento que Tony Blair
tem procurado popularizar com o nome de “terceira via”. De modo
que, o conjunto das novas políticas tornaram-se praticamente consensuais.
No campo socialista, apenas o PS Francês resiste em dar esse passo.
A superação
do keynesianismo tem implicado na busca de uma doutrina geral que o substitua,
objetivo que ainda não foi alcançado. Tendo em vista a condução
da política econômica dos últimos quarenta anos, é lícito
supor que muitas de suas teses, mantidas com sucesso durante este período,
continuarão sendo aplicadas, a exemplo da utilização da
taxa de juro como mecanismo destinado a controlar a inflação. É certo
que desapareceram as crises cíclicas. Entretanto, em seu lugar
têm surgido períodos recessivos. A experiência recente do
FED (Banco Central norte-americano) sugere que se têm aprimorado
os procedimentos para reduzir os prazos de sua duração e mesmo
a freqüência. Ainda assim, não se dispõe de uma teoria apta
a assegurar desenvolvimento sustentado. Se chegar a ser estabelecida, certamente
não significará que John Maynard Keynes deixará de ser
reconhecido como um dos grandes clássicos da doutrina liberal, no que
respeita à economia, do mesmo modo que, ao enfatizar a necessidade de
medidas intervencionistas a fim de enfrentar novas situações,
nem por isto veio a ser abalada a condição de clássico
que, de igual modo, ocupa Adam Smith nessa corrente.