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Galeria Grandes Personalidades
09/2008
Hans
Kelsen -- precursor
dos
estudos
sobre a democracia
Hans Kelsen (1881/1973) é considerado
como um dos maiores
filósofos do
direito do século
XX. Os debates acerca
da doutrina por ele
criada ofuscaram o
fato de que seria também
estudioso pioneiro
da democracia.
Nasceu em Praga, na época parte
do Império Austro Húngaro. Formou seu espírito sob a influência
da temática das primeiras décadas do século XX, que consistia
na busca das formas de reconstrução do saber filosófico,
em face das críticas a que fora submetido, ao longo da segunda metade
do século XIX, em decorrência dos avanços da ciência
que, segundo a corrente positivista, iria ocupar todos os espaços. Kelsen
imaginou que o direito preservaria a sua autonomia e especificidade estruturando-se
na forma de uma “ciência pura”. Concebeu, assim, o que passou à história
com o nome de teoria pura do direito, segundo a qual, o ordenamento
jurídico reduzir-se-ia a um conjunto hierarquizado de normas, organizado
na forma de pirâmide.
A teoria pura do direito ocupou um lugar central
nos debates da filosofia do direito, no período considerado1.
A par disto, no curso da elaboração da Constituição
da Áustria (1920), suscitou a idéia do controle da constitucionalidade
das leis, de que resultou o surgimento dos Tribunais Constitucionais, destinados
a dar conta da incumbência.
Perseguido pelos nazistas, emigrou para os Estados Unidos,
integrando-se à Universidade de Berkley. Viveu nesta cidade da Califórnia
até os seus últimos dias.
Quanto à democracia, na década de vinte elaborou
ensaios com o propósito de estabelecer quais seriam as suas características.
Nos anos trinta e no pós-guerra volta ao assunto, desta vez para defendê-la.
Coube ao estudioso italiano Giacomo Gavazzi
ordenar esse conjunto de ensaios na publicação La democrazia.
Bologna. Società Editrice il Mulino. Prime edizione, 1955. Justamente
esse texto seria tomado por base na edição brasileira (Hans Kelsen- A
democracia. São Paulo, Martins Fontes, 1993), preservada a introdução
do organizador da coletânea.
Giacomo Gavazzi resume deste modo em que consistiria
a essência da democracia, para Kelson: “A democracia é simplesmente
uma das técnicas possíveis de produção das normas
de ordenação. Mas é uma técnica que tem características
peculiares. Eliminadas as incrustações ideológicas, como
as de soberania popular e representação, reconhecida a impossibilidade
de esquivar-se ao princípio da divisão do trabalho, a democracia
moderna é o sistema de produção das normas da ordenação
que confia a um corpo (parlamento) eleito, com a base mais ampla possível
(sufrágio universal) e com método eleitoral proporcional (mesmo
sem pretensões de representação) e que funciona, via de
regra, segundo o princípio da maioria simples.” (edição
citada, pág. 13)
Pode-se considerar que “a produção
das normas de ordenação” corresponde à definição
consagrada de que se trata do processo destinado a elaborar as regras que se
tornarão obrigatórias para todos.2
No que respeita à crítica aos conceitos
de soberania popular e representação, vejamos de que se trata.
No texto básico, originário da meditação
kelsiana sobre o tema – Essência e valor da democracia (1929) – insiste
numa definição que Bobbio voltaria a reivindicar contra os críticos
da democracia3: a
imprescindível distinção entre o plano conceitual e a realidade.
Escreve Kelsen: “A democracia, no plano
da idéia, é uma forma de Estado e de sociedade em que a vontade
geral, ou seja, sem tantas metáforas, a ordem social, é realizada
por quem está submetido a esta ordem, isto é, o povo. Democracia
significa identidade entre governantes e governados, entre sujeito e objeto do
poder, governo do povo sobre o povo. Mas o que é esse povo? Uma pluralidade
de indivíduos, sem dúvida. E parece que a democracia pressupõe,
fundamentalmente, que essa pluralidade de indivíduos constitui uma unidade,
tanto mais que, aqui, o povo como unidade é --ou, teoricamente, deveria
ser--, não tanto o objeto mas principalmente o sujeito do poder. Mas saber
de onde resulta essa unidade, que aparece com o nome de povo, continuará sendo
problemático enquanto se considerem apenas os fatos sensíveis.
Divididos por posições nacionais, religiosas e econômicas,
o povo aparece, aos olhos do sociólogo, mais como uma multiplicidade de
grupos distintos do que como uma massa coerente do mesmo estado de aglomeração.
Nesse aspecto, só se pode falar de unidade em sentido normativo.” (págs
35/36 da edição brasileira citada).
Considerado como o conjunto de titulares dos direitos
políticos, o povo corresponde a uma fração dos corpos
que compõem a ordem estatal e não a totalidade desta. Além
disto, é preciso ainda distinguir esses titulares de direitos daqueles
que os exercem. Essa investigação irá colocar-nos diante
de um dos elementos mais importantes da democracia real: os partidos políticos.
Adiante afirmará: “Só a ilusão ou a hipocrisia pode
acreditar que a democracia seja possível sem partidos políticos.” (pág.
40 da ed. cit.)
E, mais adiante: “A hostilidade à formação
dos partidos e, portanto, em última análise, à democracia,
serve --consciente ou inconscientemente-- a forças políticas
que visam ao domínio absoluto dos interesses de um só grupo e que,
na mesma medida em que não estão dispostos a levar em conta os
interesses opostos, procuram dissimular a verdadeira natureza dos interesses
que defendem, sob a qualificação de interesse “coletivo”, “orgânico”, “verdadeiro”, “bem-intencionado”.
A democracia, exatamente por querer que, neste Estado de partidos, a vontade
geral seja apenas a resultante da vontade dos próprios partidos, pode
renunciar à ficção de uma vontade geral “orgânica”,
superior aos partidos”. (pág. 41)
Compreende-se, assim, as razões profundas que
levaram Kelsen a rejeitar a verborragia acerca da soberania popular. Considerada
abstratamente, a vontade geral de Rousseau levou à necessidade de encontrar
aos seus verdadeiros intérpretes, figuras como Robespierre e Lenine.
Estes passaram à história como praticantes da doutrina de que os
fins justificam os meios, sentindo-se autorizados a desencadear o Terror contra
os oponentes, a pretexto de que seriam obstáculo à consecução
do “autêntico” interesse geral, na formulação
de Kelsen. Numa nota, tece considerações interessantes sobre o
tema para mostrar que, no fundo, a idéia da “vontade geral”,
abstratamente considerada, contrapõe-se à idéia do contrato
social que, no final de contas, terá que expressar-se numa Constituição,
cuja legitimidade precisa ser previamente assegurada.
No tocante ao que denomina de “ficção
da representação”, resulta de sua associação à tese
da soberania popular que, segundo lhe parece, teria desempenhado papel fundamental
na luta em prol da afirmação do Parlamento, contra a monarquia
absoluta, mas que não mais dispõe de razão de ser, nas tumultuadas
décadas iniciais do século XX.
Toda comunidade algo desenvolvida não poderá prescindir
de um conjunto de normas, de prescrições que determinam a conduta
dos indivíduos, pertencentes à comunidade em apreço. As
normas consideradas revestem-se de crescente complexidade, na proporção
do desenvolvimento dessa comunidade. Assim, mesmo as monarquias absolutas não
puderam prescindir do que geralmente foi denominado de Conselho de Estado, com
funções meramente consultivas. Kelsen lembra que, em muitas ocasiões,
a autoridade das personalidades pertencentes a tais órgãos exerceram,
sobre o monarca, influência muito maior que a prevista.
Denomina esse processo de lei estrutural dos
corpos sociais.
O Parlamento moderno é uma resultante dessa
lei, já agora não mais existindo como simples órgão
consultivo, achando-se dotado de poder deliberativo.
Esclarece: “A esse respeito supõe-se
que o fenômeno, que se costuma chamar, metaforicamente, “vontade” (da
coletividade em geral) e do Estado (em particular) não seja um dado psíquico
real, já que, em sentido psicológico, existem apenas vontades individuais.
A chamada “vontade” do Estado é apenas a expressão
antropomórfica usada para indicar a ordem ideal da comunidade, ordem esta
constituída por uma série de atos individuais cujo conteúdo
ela representa.” (pág. 51)
Pretende enfatizar que, no período histórico
em que o Parlamento já foi reconhecido como instância competente
para o desempenho daquela função --e em face da ameaça que
emergia, de modo claro, em diversas frentes-- não fazia sentido defender
a sua existência como sendo órgão representativo da vontade
geral. Assim, entende-se, sua advertência coaduna-se perfeitamente com
a doutrina da representação política como sendo de interesses.
O Parlamento torna-se o lugar da negociação entre esses interesses,
na forma que venha a lhes ser atribuídas pelos partidos políticos.
Portanto, o interesse geral não pode ser determinado abstratamente. Aqueles
que se propõem alcançá-lo, como advertiu e referimos antes,
querem simplesmente impor os seus interesses, prescindindo da negociação.
Adverte, então: “A tentativa
de eliminar completamente o Parlamento do organismo do Estado moderno só pode
ter, a longo prazo, um escasso sucesso. No fundo, pergunta-se apenas de que modo
o Parlamento deve ser convocado, como deve ser composto e quais devem ser a natureza
e a extensão de sua competência. Efetivamente, todas as tentativas
dirigidas para a organização corporativa do Estado, ou para a ditadura,
só visam à reforma pura e simples do parlamentarismo, conquanto
seus programas reclamem a sua abolição”. (pág. 52)
A defesa que efetiva do sistema proporcional
não se sustentaria, na medida em que se revelou, crescentemente, naquela época,
incapaz de proporcionar estabilidade política. Mais adiante, Ferdinand
A. Hermens (1907/1998), numa obra, tornada clássica --Democracia ou
Anarquia? Estudo sobre o sistema proporcional, 1941-- responsabilizaria este
sistema eleitoral pela derrocada da República de Weimar. É certo
que, após a estruturação da Comunidade Européia,
deixou de produzir idêntico efeito, nos países menos populosos que
o adotam. No caso daqueles dotados de maiores contingentes populacionais (caso
da Itália) continua gerando aquele resultado. Livraram-se da instabilidade,
pela adoção do sistema majoritário (distrital), duas das
maiores nações (Alemanha e França).
Kelsen passou em revista o conjunto de temas
de seu tempo, em especial, de um lado, a postulação soviética
de que o seu sistema correspondia à verdadeira democracia;e, de outro,
a hipótese de que haveria incompatibilidade entre socialismo e democracia.
No exame do postulado marxista, toma por base
a formulação de Lenine segundo a qual a ditadura do proletariado
(comunismo) seria “uma expressão da democracia, pois esta se torna
democracia para os pobres, democracia para o povo, e não (como no caso
da democracia burguesa) democracia para os ricos”, no livro O Estado
e a revolução (1917).
Comenta Kelsen: “Todo governo
pode --e, como já se demonstrou, todo governo efetivamente o faz-- afirmar
que está agindo no interesse do povo. Mas uma vez que não existe
nenhum critério objetivo para avaliar o que se chama interesse do povo,
a expressão “governo para o povo” é uma fórmula
vazia suscetível de ser usada para justificar ideologicamente qualquer
tipo de governo”. (págs. 147/148) É a famosa questão
do surgimento de algum “iluminado”, capaz de dizer do que se trata
e, em nome dessa descoberta, implantar ditaduras das mais ferozes, como se viu
durante as Revoluções Francesa e Bolchevista.
Segue-se a refutação
da tese de que, tendo sido comprovada a compatibilidade entre sistema econômico
capitalista e o regime político democrático, seria legítima
a inferência de sua incompatibilidade com o socialismo, distinguindo naturalmente
a experiência do socialismo ocidental --que coexistia com as instituições
do sistema representativo-- do totalitarismo soviético (comunismo). Parece-lhe
que os autores da referida inferência têm em vista a associação
do socialismo à idéia da economia planificada. Kelsen não
discute a premissa de que esse processo exigiria a propriedade estatal das empresas.
A sua linha de argumentação
consiste em separar a constituição do governo (pelo método
democrático) do funcionamento da máquina burocrática, que
não se rege por critérios de inspiração democrática
mas exclusivamente da componente técnica, com vistas à eficiência.
Afirma: “Quanto mais técnica for uma administração,
isto é, quanto mais os meios para a realização dos seus
fins forem determinados pela experiência científica, menos política
ela será e menos essencial será, ao caráter democrático
do corpo político como um todo, sua sujeição ao processo
democrático. É essa a razão pela qual a crescente burocratização
do governo, um traço característico do Estado Moderno, não
representa um sério perigo para seu caráter democrático,
na medida em que ficar restrita à administração técnica” .
(pág. 267/;268)
Como se vê, embora perfeitamente datada, na consideração
do tema da democracia, a análise de Hans Kelsen, efetivada em caráter
pioneiro, feriu os pontos básicos do debate que, amadurecido no século
passado, guarda plena atualidade.
1 O
prof. Miguel Reale
(1910/2006) criou
a teoria tridimensional
do direito,
que integra as
doutrinas precedentes,
considerando que
uma visão
adequada somente
poderia decorrer
da consideração
tanto do fato como
da norma e do valor.
O prof. italiano
Mário Lozano é autor
da principal crítica
a Kelsen, na obra Forma
e realità in
Kelsen (Milão,
1981).
2 Samuel
Huntington, no
livro The Third
Wave, 1991
(tradução
brasileira, Editora Ática,
1994) indica que
a democracia foi
definida, sucessivamente,
como fontes
da autoridade; pelos objetivos e,
finalmente, como processo. Parece-lhe
que a mais importante
formulação
desse último
entendimento, que
veio a ser consagrado, seria
devida aJoseph
Schumpeter (Capitalism,
Socialism and Democracy,
1942). Kelsen
poderia ser incluído
entre os que apontaram
nessa direção.
3 Cf.
Norberto Bobbio
(1909/2004) – O
futuro da democracia (1984),
tradução
brasileira da Editora
Paz e Terra (sucessivamente
reeditada, sendo
a 10ª edição
de 2006).
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