01/2008
John
Locke (1632/1704)
e o surgimento
do sistema
representativo
a)O
contexto histórico
De
um modo geral, a doutrina
do governo representativo é atribuída
a John Locke, pensador
inglês que viveu
no século XVII.
A afirmativa é certamente
correta. Contudo, pode
levar à suposição
de que teria deduzido
a nova forma de organização
política da
sociedade de algumas
idéias gerais.
No século seguinte
(XVIII), o pensador
francês Jean-Jacques
Rousseau imaginou que,
ao nascer, o homem
era uma espécie
de santo. A sociedade é que
o corrompera. A partir
de tal suposição,
concebeu um novo sistema
político. Ao
contrário disto,
Locke sistematizou
a dramática
experiência vivida
por seu país,
ao longo do século,
com vistas a encontrar
uma saída para
o impasse que se havia
instaurado. O texto
em que a explicita
serviu para unificar
o ponto de vista da
elite do tempo. O conteúdo
dessa proposição
veio a ser levado à prática
pela Revolução
Gloriosa de 1688. Considerando
que a missão
que lhe atribuía se
havia esgotado, Locke
sequer o incluiu entre
as suas obras, quando
se ocupou de ordená-las,
nos anos que lhe restaram
de vida. A posteridade é que
teve de fazê-lo.
Trata-se do Segundo
Tratado do Governo
Civil.
Desde o século
anterior, a Inglaterra
estava mobilizada em
torno da questão
religiosa, devido ao
rompimento com o Papa
e à adoção
do protestantismo.
No século XVII,
a esse tema polarizador
acresce um outro: a
tentativa, da nova
Casa Reinante (Stuart),
de exercer o poder
ao arrepio do Parlamento.
Resumidamente, depois
da morte de Elisabete
I, em 1603, a reintrodução
do catolicismo, através
da Casa Real, veio
a constituir uma possibilidade
efetiva. Desde que
Henrique VIII rompeu
com o Papa, em 1534,
e criara a Igreja Anglicana,
ocorrera a conversão
para o protestantismo
da imensa maioria da
população.
A grande novidade consistia
precisamente no surgimento
de novas confissões.
Seus partidários (dissenters)
tornaram-se conhecidos
como puritanos,
por entender que o
anglicanismo preservara
estrutura parecida
com a Igreja de Roma. Num
ambiente destes, representava
uma temeridade, de
parte da Casa Real,
dispor-se a enfrentar
a ira popular tentando
reaproximar-se do Papa.
Foi precisamente o
que fez Carlos I, cujo
reinado inicia-se em
1625. Começa
por divulgar cartas
do pai, destinadas
a comprovar que, embora
convivendo com os protestantes,
não renegara
sua condição
de católico.
Casa-se com uma católica,
irmã do rei
da França (Luís
XIII). A partir de
1629 deixa de convocar
o Parlamento e instaura
governo pessoal. Em
1640 inicia-se no país
a guerra civil, da
qual o monarca sai
derrotado. Calos I é decapitado
em 1649, extingue-se
a monarquia e o poder
passa a ser exercido
pelo Parlamento. O
novo regime foi batizado
de Commonwealth.
De posse do poder, o Parlamento não encontrou a maneira de exercê-lo.
As questões pendentes eram diversificadas e agudas: as disputas religiosas;
a presença de efetivo militar numeroso, que não podia ser desmobilizado
em face da ameaça de invasão pelo partidários de Carlos
Stuart, o filho mais velho de Carlos I, existentes no exterior, contando certamente
com apoios internos; o clamor pela redução de impostos, etc.
Os integrantes do Parlamento entenderam que a dificuldade de governar
devia-se à heterogeneidade de sua composição religiosa
formando-se uma legislatura integrada apenas por dissenters o que
não alterou sua atuação. E deste modo passaram-se os primeiros
cinco anos do novo sistema.
Convencido de que a o Commonwealth em mãos do Parlamento não
dera certo, Oliver Cromwell (1599/1658), que se tornara o comandante militar
do movimento, decide intervir. Dissolve o Parlamento e reúne o que chamou
de Nominated Assembly, constituída por gente de sua confiança.
Este arremedo de Parlamento proclama-o Lord Protetor a 16 de dezembro de 1653.
Estava, de fato, instaurada uma ditadura.
O processo se coroa
deste modo: ao falecer,
não tendo logrado
instaurar uma nova
Casa Real entregando
o poder ao filho, restaura-se
a monarquia (1660).
Assume o filho do rei
decapitado, com o título
de Carlos II (reinou
até 1685), sendo
substituído
por Jaime II, abertamente
católico e que
inicia demarches para
restabelecer a convivência
com o papa. Objetivamente,
todo o sacrifício
vivido ao longo do
século revela-se
de todo inútil.
Os puritanos emigram
em massa para a América.
Assim, como não
era admissível
conviver com essa situação,
ao invés de
concluir pela impossibilidade
do governo do Parlamento,
seus partidários
trataram de averiguar
o que teria causado,
concluindo que, previamente,
deveriam ter sido estabelecidas
as duas questões
seguintes: 1ª)
Fixar as atribuições
do Parlamento que,
segundo demonstrara
a prática, deveria
ser diferente da instituição
que responde pelo governo.
Portanto, vivência
concreta é que
fez aparecer a necessidade
de dois poderes distintos,
um que fará a
lei e outro que a execute1;
e, 2ª) Como deve
ser a composição
do Parlamento, isto é,
quem deve dispor do
direito de fazer-se
representar2.
O Segundo Tratado destinou-se
justamente a sistematizar
essa experiência,
com um objetivo muito
claro: unificar o ponto
de vista da elite de
modo que a conspiração
iniciada não
acabasse também
por redundar em fracasso.
A conspiração
consistia em entregar
o poder a uma das filhas
protestantes de Jaime
II, casada com Guilherme
de Orange, rei da Holanda,
que gozava de grande
prestígio na
Europa, por haver garantido
militarmente a independência
de seu país
e assegurado
ampla liberdade, tornando-o
refúgio dos
intelectuais protestantes.
A conspiração
era liderada por Anthony
Ashley Cooper, Lord
Shafsterbury (1621/1683),
chefe dos whigs --como
então se chamavam
os que mais tarde constituiriam
o Partido Liberal.
Locke se ligara a Shafsterbury
como médico,
o acompanhara ao exílio
e, com a sua morte,
assume a liderança
do movimento.
b) Dados biográficos
de John Locke
Tendo concluído
o curso de Medicina
aos 34 anos Locke torna-se
médico de Lord
Shafsterbury, que foi
o grande articulador
do movimento de que
resultou o sistema
representativo de governo.
Logo tornar-se-ia seu
assessor e íntimo
colaborador. Nessa
condição,
participou, em 1669,
da elaboração
de uma Constituição
para a Carolina, colônia
inglesa na América
do Norte que recebera
grande contingente
de puritanos emigrados
após a restauração
da monarquia.
Carlos II conseguiu
conviver com os protestantes.
Devido a isto, Shafsterbury
foi Lord Chanceler
nos começos
da década de
setenta. Destituído
em 1675 esteve preso
e exilado, voltando
a fazer parte do governo
em 1678. As divergências
estavam associadas
ao empenho da liderança
protestante no sentido
de evitar que a Coroa
fosse transmitida ao
irmão, abertamente
católico. Decidido
a fazê-lo, já que
não tinha filhos,
Carlos II, em 1681,
exila Shafsterbury
para a Holanda. Em
seguida, Locke o acompanharia.
Com a morte de Shafsterbury,
em 1683 assume a coordenação
do que viria a ser
a Revolução
Gloriosa de 1688. Para
semelhante desfecho
muito contribuiu a
sistematização,
que realizou, dos princípios
que deveriam nortear
o governo representativo.
Voltaria à Inglaterra
no mesmo navio que
trouxe da Holanda,
para assumir o poder,
a Guilherme de Orange
evento que consuma
a Revolução.
Mas não quis
exercer nenhuma função
proeminente no governo.
Locke dedica os últimos
quinze anos de sua
vida (faleceu em 1704)
a dar forma definitiva às
suas idéias
acerca da filosofia,
da tolerância
religiosa, da educação,
da teologia, etc. Encontra-se
neste caso o Ensaio
sobre o entendimento
humano, publicado
em 1690 mas que se
admite haja elaborado
ainda na década
de sessenta. Têm
grande importância,
também, as Cartas
sobre a tolerância
e os estudos sobre
educação
(Alguns pensamentos
referentes à educação,
1693).
c) Teses centrais do Segundo
Tratado3
Locke aceita a idéia
então popularizada
de que a sociedade,
em que nos encontramos,
teria sido precedida
pelo que se denominou
de "estado
de natureza" --no
qual inexistiria o
governo--, mas dá-lhe
desenvolvimento original.
"O fim capital e principal em vista do qual os homens se associam nas
repúblicas, e se submetem aos governos, é a conservação
de sua propriedade" (parágrafo 124). No estado de natureza, carecia
o homem de certas condições para lograr semelhante objetivo,
notadamente as seguintes: lª) "uma lei estável, fixada, conhecida,
que um consentimento geral aceite e reconheça como critério do
bem e do mal e como medida comum para estatuir sobre todos os deferendos";
2ª) "um juiz conhecido de todos e imparcial, que seja competente
para estatuir sobre todos os deferendos segundo a lei estabelecida"; e,
3ª) "em apoio da decisão, falta sempre a potência para
a impor quando ela é justa e colocá-la em execução
da forma devida”. Em vista disto, o homem renuncia aos poderes de que
dispunha – o de fazer tudo que julgasse conveniente para sua própria
conservação, nos limites autorizados pela lei natural, e o de
punir infrações cometidas contra a mesma lei natural – passando
a atribuí-los à sociedade, mais precisamente, ao poder legislativo,
que é o poder por excelência da sociedade.
Para que a sociedade
civil corresponda à expectativa
dos que renunciam ao
estado de natureza,
deve preencher as condições
de que carecia este último.
Assim, escreve: “Quem
quer que detenha o
poder legislativo,
ou supremo, de uma
sociedade política,
deve governar em virtude
de leis estabelecidas
e permanentes, promulgadas
e conhecidas do povo,
e não em decorrência
de decretos improvisados;
deve governar por intermédio
de juízes íntegros
e imparciais, que resolvam
os deferendos em conformidade
com as leis; não
deve utilizar a força
da comunidade, no interior,
senão para assegurar
a aplicação
daquelas leis e, no
exterior, somente para
prevenir ou reparar
ataques do estrangeiro
e manter a comunidade
ao abrigo das incursões
e da invasão.
Tudo isto não
deve ter em vista nenhum
outro fim além
da paz, a segurança
e o bem público
do povo”. (Two
treatises of government.
Introdução
e notas de Peter Laslett,
Londres, Cambridge
University Press/Mentor
Book, 1965, p. 399; § 131).
Segundo Locke essa
conclusão impõe-se
a partir da simples
evidência de
que “não
se poderia atribuir à criatura
racional a intenção
de mudar de estado
para achar-se em pior
situação”.
Duas são as
premissas que sustentam
os princípios
antes enunciados.
A primeira reside em
que o trabalho, que é a única
coisa efetivamente
inalienável
que Deus deu ao homem – ao
tempo que o criou com
necessidades materiais
cujo atendimento requeriam
a mobilização
dessa potencialidade
ou capacidade de trabalho –,
agregava-se a elementos
exteriores, tornando-os,
por assim dizer, um
prolongamento daquela
propriedade inalienável
(o trabalho). Mais
que isto, todos os
produtos que ordinariamente
servem à vida
retiram seu valor,
basicamente, do trabalho. “Não
cabe espantar-se – escreve – como
se faria talvez irrefletidamente,
pelo fato de que a
propriedade do trabalho
seja capaz de sobrepor-se à comunidade
da terra porquanto é o
trabalho que dá a
toda coisa seu valor
próprio; basta
considerar a diferença
existente entre uma
parcela plantada com
fumo ou açúcar
e uma parcela da mesma
terra deixada indivisa,
que ninguém
explora, para adquirir
a convicção
de que a melhoria devida
ao trabalho constitui
a maior parte do valor.
Acredito que proporia
uma avaliação
bem modesta se dissesse
que, entre os produtos
da terra que servem à vida
do homem, nove décimos
provêm do trabalho.
E se queremos avaliar
devidamente os bens,
da forma como se nos
apresentam quando deles
nos servimos, e repartir
as despesas que acarretaram
entre a natureza, de
um lado, e o trabalho,
de outro, veremos que é necessário
referir, na maioria
dos casos, noventa
e nove por cento às
expensas exclusivas
do trabalho” (§ 40).
Nesse ponto da análise
Locke estabelecerá uma
segunda premissa de
grande relevância.
A atividade produtiva
dos homens exerce-se,
nas circunstâncias
mais habituais, com
vistas à obtenção
de objetos perecíveis,
de pouca duração.
Em relação
aos excedentes do que
seria capaz de consumir,
restava-lhes a alternativa
de destruí-los – o
que seria estúpido
e desonesto; doá-los
a quem deles carecesse;
trocá-los por
outros bens, aptos
ainda a serem consumidos
mas dotados de maior
capacidade de duração,
ou, finalmente, intercambiá-los
como objetivos passíveis
de durar infinitamente
mas inadequados ao
consumo, como as pedras
de adorno ou certos
metais. Nas últimas
hipóteses, parece
evidente que quem assim
agisse a ninguém
lesaria. Por essa forma,
a invenção
da moeda deu aos homens
a possibilidade de
conservar os acréscimos
de propriedade resultantes
de seu trabalho. “Como
o ouro e a prata, que
são de pouca
utilidade para a vida
humana quando comparados à alimentação, à vestimenta
e aos meios de transporte,
tiram seu valor unicamente
do consentimento das
pessoas, que se regula
em grande parte pelo
critério do
trabalho, é evidente
que os homens aceitariam
que a posse da terra
comporta desproporções
e desigualdades....
Esta repartição
desigual das posses
particulares foi tornada
possível pelos
homens fora dos laços
da sociedade, sem contrato,
apenas atribuindo um
valor ao ouro e à prata
e convencionando tacitamente
utilizar a moeda” (§ 50).
Eis como, na obra do
grande pensador inglês,
a propriedade e a riqueza
tornam-se altamente
dignificantes. Em sua
raiz encontra um elemento
piedoso, devoto, porquanto
a propriedade decorre
imediatamente da observância
de um mandamento divino,
indo assim ao encontro do
ascetismo protestante,
que se entendia então
como capaz, por si
mesmo, de engendrar
a riqueza.
1-A
necessidade de tornar
o Judiciário
um terceiro poder independente
surgirá mais
tarde, embora a sistematização
lockeana destaque,
desde logo, o imperativo
de dispor-se de “juiz
conhecido de todos
e imparcial”.
2-Shafsterbury
firmará o
entendimento de que deve
limitar-se à classe
proprietária, única
capaz de resistir ao
Monarca
3-Ampla
caracterização
desse texto encontra-se
na disciplina Política,
do Curso de Humanidades.
Nesse mesmo documento
acha-se transcrito
o Bill of Rights (1689),
que consubstancia as
conquistas fundamentais
que vieram a ser asseguradas
pela Revolução
Gloriosa, vitoriosa
em fins do ano anterior.