Galeria Grandes Personalidades

10/2008
John Dewey e Sydney Hook: o papel
da educação na sociedade moderna

John Dewey (1859/1952) e Sydney Hook (1902/1989) constituem uma prolongada linhagem --desdobrando-se no tempo ao longo de um século -- de movimento filosófico que teve uma grande influência nos Estados Unidos e em diversos outros países. Passou à história com o nome de pragmatismo, denominação que não guarda maior relação com o entendimento atribuído a esse termo (espírito voltado para a ação prática). A corrente filosófica em causa assumiu a herança empirista inglesa (valorização da experiência sensível) e a desenvolveu, voltando-se sobretudo para o plano cultural, onde contribuiu para esclarecer o significado da moral e da religião. As duas personalidades tornaram-se educadores de renome.

Coube a John Dewey fixar com clareza o papel que à educação incumbia desempenhar na medida em que se consolidava e difundia o sistema democrático representativo. E, a Sydney Hook conceituar a educação moderna com a devida abrangência.

Na doutrina política consagrada, ao representante incumbia conhecer os interesses que lhe competia representar e, ao mesmo tempo, ter demonstrado ser capaz de defendê-los. Seu grau de instrução nada acrescentava. É o que diz expressamente Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) no texto clássico Manual do Cidadão em um governo representativo (1834): “(...) em cada Estado deve haver um certo número de homens capazes de compreender e sustentar no Congresso os respectivos interesses. Estes homens distintos devem ter dado provas das suas capacidades nas ordens inferiores de onde não subiram sucessivamente senão pelo voto de seus concidadãos (...).

Ainda mesmo no caso de possuir conhecimentos mui extensos em outros ramos da ciência administrativa, não é sobre esses conhecimentos que os eleitores estabeleceram a sua confiança (...)”

Ponto de vista novo na matéria seria formulado por  John Dewey.

Ao concluir o doutoramento, Dewey ingressou no corpo docente da Universidade de Michigan, transferindo-se, em 1894, aos 35 anos de idade, para a Universidade de Chicago. Por fim, em 1904, já tendo então granjeado amplo reconhecimento nos meios acadêmicos,  radicou-se na Universidade de Columbia,  onde viria a conquistar enorme e merecida projeção.

  O tema que destacamos, do conjunto de sua vasta obra,  democracia e educação, começa a preocupa-lo nas primeiras décadas do século vinte, quando se coroa o processo de universalização do sufrágio no reduzido número de países merecedores do nome de democracias. Teria oportunidade de abordá-lo em diversas oportunidades, mas o desenvolveu sistematicamente nos livros Democracy and Education (1916), Liberalism and Social Action (1935) e Freedom and Culture (1939).1

Dewey definiu a sociedade como sendo constituída por  grupos cuja integração provém de determinados interesses comuns e, além destes, certa porção de interação e reciprocidade cooperativa com outros grupos. Essa concepção está demonstrada exaustivamente à luz do exame dos mais diversos segmentos da sociedade.

A partir daquela premissa geral Dewey avança outra tese: “Toda educação ministrada por um grupo tende a socializar seus membros, mas a qualidade e o valor da socialização dependem dos hábitos e aspirações do grupo”. Essa hipótese é analisada na circunstância de um país governado despoticamente para concluir que “as influências que a alguns educam para senhores, educariam a outros para escravos”.

No que respeita ao governo representativo, escreve o seguinte: “O amor da democracia pela educação é um fato cediço. A explicação superficial é que um governo que se funda no sufrágio popular não pode ser eficiente se aqueles que o elegem e lhe obedecem não forem convenientemente educados. Uma vez que a sociedade democrática repudia o princípio da autoridade externa, deve dar-lhe como substitutos a aceitação e o interesse voluntários, e unicamente a educação pode criá-los. Mas há uma explicação mais profunda. Uma democracia é mais que uma forma de governo: é, primacialmente, uma forma de vida associada, de experiência conjunta e mutuamente comunicada.”2

Em Democracia e Educação, Dewey não apenas procede ao embasamento teórico do processo educacional, como refere o conteúdo que lhe deve atribuir a sociedade democrática. Seu ideal de educação a serviço da cidadania foi incorporado ao sistema educacional norte-americano e suscitou grande debate, notadamente no que se refere à educação de cunho científico – que alguns entenderam a corrente pragmática enfatizaria unilateralmente – e a formação humanística. Esse tema viria a ser plenamente elucidado por um de seus discípulos, Sidney Hook, no livro Education for Modern Man (1963), traduzido ao português. Ao consagrar-se, tal ideário seria sistematizado na Proposta Paidéia (ed. brasileira pela Editora Universidade de Brasília, 1984).

Os textos que Dewey dedicou ao liberalismo na década de 30 são igualmente de maior relevância e guardam grande atualidade, embora não pudesse ter uma adequada compreensão do keynesianismo.

Contudo, em meio ao quadro totalmente adverso de ascensão das correntes totalitárias na Europa, soube proclamar a capacidade do liberalismo de enfrentar a avalanche. Fazendo profissão de fé no que denominou então de renascente liberalismo teria oportunidade de escrever: “A civilização, em qualquer caso, enfrenta o problema de unir as mudanças em curso em um plano coerente de organização social. O espírito liberal tem sua idéia própria do modelo que se requer: uma organização social que torne possível a liberdade efetiva e a oportunidade do crescimento individual da mente e do espírito de todos os indivíduos”.

Sidney Hook  foi um dos mais destacados discípulos de John Dewey e da corrente filosófica norte-americana fundada por este último (pragmatismo). Ensinou filosofia na Universidade de Nova York a partir de 1934. Socialista e apreciador de Marx, considerava a experiência soviética a grande tragédia do século, na medida em que atentava contra o sistema democrático-representativo, justamente a grande conquista da humanidade. Tornou-se o principal defensor da tradição de proceder-se à leitura das obras clássicas, como condição de permanência na universidade, sendo justamente o autor de um entendimento das humanidades que encerrou uma polêmica clássica na obra que caracterizaremos a seguir. Quando se pretendeu nos Estados Unidos que a seleção de leituras, nos institutos universitários chamados de Liberal Arts, adotasse critérios políticos, apresentou um argumento digno de registro em relação a Santo Agostinho. Reclamava-se a inclusão de um autor negro, por essa simples condição. Hook lembrou que Santo Agostinho era do Norte da África e as descrições de sua pessoa, que chegaram até nós, indicam que tinham a pele escura. Porém, a sua presença no Canon Ocidental em momento algum levou em conta tal circunstância, mas apenas o significado de sua obra para a nossa cultura.

O livro Educação para o homem moderno esteve relacionado à grande polêmica verificada nos Estados Unidos, na década de trinta do século XX – e que prosseguiu no pós-guerra – a propósito do conteúdo da educação. Encontrava-se subjacente uma questão não resolvida a propósito da disputa entre ciência moderna e cultivo das humanidades, que era tradição da Universidade medieval. Como se sabe, essa disputa tornou-se extremamente radical, no século XVIII e começos do seguinte. Em alguns países, a exemplo da França e de  Portugal,  terminou pela criação de nova instituição universitária ou pelo simples fechamento da Universidade existente. Ao longo do século XIX ocorreu certa acomodação. Aos poucos o próprio aristotelismo – que chegou a ser proibido, dado que era o fundamento do ensino superior emdieval – foi reavaliado com serenidade. Na Alemanha estruturou-se um modelo de Universidade destinada a promover a pesquisa científica, sem embargo da presença da cultura humanista. Quase por toda parte o estudo das obras clássicas foi transferido ao nível colegial.

Sem embargo, faltava um debate aprofundado onde o tema fosse considerado com a amplitude requerida. Esta oportunidade surgiu quando renomados educadores, na Universidade de Boston, resolveram contrapor-se ao ensino das humanidades segundo o modelo consagrado nos Estados Unidos, sob a influência de John Dewey, onde a ciência tinha a primazia. Hook concebeu o livro como um ataque àquela iniciativa, apresentada abertamente como aristotélico-tomista, e esta seria a característica da primeira edição, aparecida em 1945. Depois refundiu-o, resumindo aquele debate e apresentando o seu principal resultado, para a segunda edição, de 1963, tornada definitiva e sucessivamente reeditada.3

Nos EE.UU. consagrou-se o entendimento de que haveria, como contrapostas, uma cultura científica e uma cultura humanista. Procurando superar esse tipo de postulação, Hook irá demonstrar que o cultivo das humanidades não pode ser entendido como culto abstrato do passado. Ao contrário disto, trata-se de equipar-se para o presente. Se é assim, não se pode dar as costas para autores e questões contemporâneas, como se tornou praxe em algumas universidades americanas. Sobretudo, não se pode ignorar a ciência moderna nem perseverar no conflito com a filosofia aristotélico-tomista, formulada antes do aparecimento da ciência.

O grande mérito de Hook consiste em haver definido a educação moderna como educação liberal e em tê-la caracterizado, a bem dizer, de modo exaustivo. Diz textualmente: “A função de uma educação liberal no mundo moderno é insuflar alguma ordem nos espíritos que herdaram tradições conflitantes. Devemos fundir os problemas e materiais do mundo moderno num molde reconhecível pelo qual os indivíduos possam orientar-se para uma vida plena e responsável”.

Assim, desde Hook, a educação moderna passou a ser definida como educação liberal, porquanto essa denominação destaca o essencial. Nos ciclos históricos anteriores, incumbia à escola difundir o ponto de vista de quem a patrocinasse. O exemplo viria da Grécia: quando Aristóteles criou o próprio sistema filosófico, abandona a escola platônica (Ateneu) e organiza outra instituição (Liceu). Na Idade Média, a Escolástica definia os autores oficiais, aos quais deviam circunscrever-se os preceptores. Para não deixar dúvidas a respeito, a Ordem dos Jesuítas, que dominava o ensino superior na Península Ibérica, na França e outros países europeus, definiu a disciplina a ser seguida no documento intitulado Ratio Studiorum, cuja Regra Sexta estabelece o seguinte: “Mesmo naquelas coisas em que não há risco para a fé e para a piedade, ninguém introduza novas questões, nem opinião alguma que não esteja em algum autor idôneo, sem consultar o Prefeito”.

Na Época Moderna é que se procedeu ao reconhecimento da diversidade de pontos de vistas. Ao dar-lhes a conhecer, não é função da escola estimular o espírito polêmico mas não só assegurar a liberdade de escolha (a que se reduz no fundo o conceito de liberdade acadêmica) como permitir que tome por base o adequado conhecimento do tema em causa, isto é, dos vários ângulos e visões em que é considerado.

Não se furta em referir de modo concreto o desdobramento desta proposta. Antes de mais nada, afirma que a pessoa liberalmente educada deve estar familiarizada com o conhecimento científico da natureza física. Em se tratando da formação geral, não é indispensável o conhecimento do que se contém nos manuais mas apenas e sobretudo os grandes textos científicos em seus respectivos momentos históricos. A par disto, “a todo estudante deve ser solicitado que se torne inteligentemente consciente de como funciona a sociedade em que vive, das grandes forças modeladoras da civilização contemporânea e dos problemas cruciais de nossa época, ainda aguardando solução”. Os estudos sociais seriam, pois, fundamentais no currículo da moderna educação. Subseqüentemente, a escola deve facultar a imprescindível familiaridade com os valores de nossa civilização. Não basta, também, ter acesso aos conhecimentos indicados, sendo imprescindível compreender os procedimentos adotados na sua obtenção, o que pode ser alcançado pelo estudo da lógica ou do método científico. A literatura é igualmente parte integrante da formação geral, do mesmo modo que o conhecimento da língua pátria, de alguma língua estrangeira, da música e das artes. Embora reconheça o lugar da religião na vida humana, não considera adequado o seu ensino diretamente nos sistemas de ensino, já que se trata de uma função das igrejas. Conclui: “Os que não são educadores profissionais podem pensar que semelhante programa é chocantemente “pedante” e irrealista. Mas logo que se faça o devido desconto para as diferenças de capacidade das crianças, nas diversas idades, na preparação dos materiais de ensino, temas dominantes e técnicas específicas de instrução –, o ar de paradoxo e irrealismo desaparecem logo”.

                   Desde então, as tarefas do sistema educacional passaram a ser definidas como segue: 1º) preparar para o exercício da cidadania; 2º) formar para o trabalho; e, 3º) proporcionar cultura geral. As Constituições brasileiras consagram esses princípios, embora estejamos longe de tê-los alcançado.


1 Traduzidas ao português por iniciativa de Anísio Teixeira: Democracia e Educação (4ª ed., 1979) e Liberalismo, Liberdade e Cultura (1970), ambas pela Cia. Editora Nacional, de São Paulo, Brasil.
2 Democracia e educação, cap. 7, “A concepção democrática da educação”.
3 Esta versão veio a merecer tradução brasileira: Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1965.