Dante
Alighieri e o redirecionamento
do
debate na Idade Média

Caberia
a Dante Alighieri,
considerado como um
dos maiores escritores
medievais, imortalizado
por sua obra A
Divina Comédia,
situar de modo claro
e preciso o quanto
a Idade Média
distanciou-se da temática
esboçada pelos
gregos em matéria
de política.
Tratando-se, contudo,
de considerar o que
de fato ocorrera naquele
período histórico,
nesse plano, cabe referir
os traços gerais
que diferenciam as
suas peculiares instituições
políticas.
As teorias políticas
da Idade Média
versam basicamente
sobre as relações
entre os poderes temporal
e espiritual, em conseqüência
da feição
religiosa assumida
pela cultura ocidental
neste primeiro momento
de afirmação.
O assunto foi magnificamente
caracterizado na obra
clássica de
Gaetano Mosca (1858/1941) – História
das doutrinas políticas (1898),
cujas teses principais
são adiante
transcritas.
Em 962, a idéia
romana da União
dos povos civilizados
e cristãos sob
uma única autoridade
afirmou-se novamente
na prática com
o imperador Oto I de
Saxe. Paralelamente,
as últimas invasões
bárbaras foram
enfrentadas vitoriosamente,
os bandos de sarracenos
foram expulsos, os
normandos estabeleceram-se
de modo permanente
no norte da França,
os húngaros,
os poloneses, os boêmios
e os escandinavos receberam
o batismo pelo ano
1000, incorporaram-se
assim à grande
família dos
povos que haviam recebido
o germe da civilização
romana ao abraçar
o cristianismo. Manifesta-se
uma certa ordem decorrente
da estabilização
das famílias
mais poderosas e introduzem-se
no feudalismo os primeiros
sintomas que anunciavam
a futura constituição
das comunas.
À mesma época, os monges da Abadia de Cluny na Borgonha e da
de Hirschau na floresta Negra e de outros lugares, adotaram uma norma mais
severa. Eles libertaram-se das influências leigas e, por meio de propaganda,
disseminaram o conceito da superioridade da autoridade eclesiástica
sobre a leiga.
Dadas as condições
políticas e
intelectuais da sociedade
européia, era
de se prever que, tendo
ocorrido uma certa
união do poder
leigo, a luta entre
os dois poderes não
tardaria a romper,
se ocorressem, por
seu turno, a união
e a independência
da Igreja. Esta independência
foi alcançada
e a disciplina da Igreja
tornou-se mais rígida
graças à obra
de Gregório
VIII (século
XII), o qual, favorecido
pelas circunstâncias,
conseguiu que a eleição
do Pontífice
fosse daí em
diante responsabilidade
do clero. Assim, livrou-a
da influência
da nobreza romana.
E conseguiu também
proibir o casamento
dos padres pois, enquanto
esta prática
fosse permitida, tornava-se
mais fácil aos
nobres leigos ocupar
os bispados e utilizar
os poderes da religião
com a finalidade de
aumentar a sua própria
dominação.
Quando rompeu abertamente
a luta entre o imperador
e o Papa, o primeiro
foi geralmente ajudado
pelos feudatários
e pelos bispos, que
em sua maioria eram
oriundos da nobreza.
Ao lado do Papa, ficavam
geralmente o baixo
clero e sobretudo os
monges, e também
a plebe que, quase
instintivamente, seguia
o partido contrário
ao dos poderosos.
O século XII
já apresenta
um progresso em relação
ao século precedente
do ponto de vista cultural.
A luta entre as idéias
que sustentavam a superioridade
da autoridade eclesiástica
sobre a autoridade
leiga e aquelas que
defendiam a independência
recíproca dos
dois poderes, considerados
ambos como emanações
diretas da vontade
divina, deveria continuar
não somente
no âmbito dos
fatos, mas também
no das doutrinas. Não é demais
lembrar que a importância
adquirida pelas comunas,
sobretudo, no norte
e no centro da Itália,
foi bastante útil
ao Papado na luta por
ele travada contra
a dinastia imperial
de Hohenstauffen durante
o século XII
e o seguinte.
No duelo intelectual
entre as duas potências,
cada um dos lados procurou
tirar partido da renovação
dos estudos jurídicos.
Geralmente, os canonistas
sustentavam a autoridade
do Papa e os romanistas,
a do imperador. Aos
primeiros, devemos
o Decreto do Graciano,
que é uma compilação
de textos em parte
apócrifos, como
o juramento de fidelidade
feito pelo imperador
Oto I ao Papa e o documento
relativo à doação
de metade de seu império
que o imperador Constantino
teria feito ao Papa
Silvestre.
Por outro lado, os
juristas da Universidade
de Bolonha, que se
dedicavam ao estudo
do direito romano,
defendiam a autoridade
imperial. Eles consideravam
o imperador como o
sucessor legítimo
dos antigos Césares
e, por conseguinte,
detentor da soberania
integral. Tal foi o
princípio por
eles defendidos na
Dieta de Roncaglia,
a que foram convidados
por Frederico Barbaroxa.
Lá, baseados
nos Pandectes, emitiram
opinião favorável à supremacia
do imperador.
No final do século
XII, o Papa Inocêncio
III expressou claramente
nas cartas dirigidas
ao duque de Carinthie
e aos bispos franceses
a teoria da supremacia
pontifical sobre todos
os poderes temporais.
Disse ao duque de Carinthie
que se em conseqüência
de uma antiga tolerância,
os nobres alemães
elegessem o imperador,
esta eleição
não deveria,
nem por isso, deixar
de ser analisada e
confirmada pelo Papa.
Na mesma carta, Inocêncio
III lembrava a coroação
de Carlos Magno através
da qual o Pontífice
havia transmitido a
dignidade imperial
dos gregos aos alemães.
Na Inglaterra, também
a luta entre as duas
autoridades foi muito
grande durante o século
XII. Os dois protagonistas
mais eminentes foram
o rei (Henrique II)
de um lado e, de outro,
o chefe da Igreja,
função
desempenhada pelo arcebispo
de Canterbury.. O conflito
foi, inicialmente,
doutrinário,
até que o rei
mandou assassinar o
arcebispo ou consentiu
que ele fosse assassinado.
Do lado da Igreja,
encontramos o monge
João de Salisbury,
que chegou a defender
a legitimidade do tiranicídio,
exceto quando o tirano
fosse um padre e desde
que não fosse
utilizado o envenenamento.
No século XIII,
introduziram-se no
Ocidente europeu novos
elementos culturais,
em decorrência
das relações
que se deram no Oriente
durante as Cruzadas
com os bizantinos e
os árabes.
Outro centro de cultura árabe
situava-se na parte
meridional da Espanha:
de lá as idéias
podiam penetrar mais
facilmente o resto
da Europa.
Um árabe de
Córdova, que
se chamava Ibn Roschd
e que os europeus chamavam
de Averroes, havia
por volta do fim do
século XII comentado
as obras de Aristóteles
de um ponto de vista
que se pode dizer panteísta.
A maneira de pensar
do filósofo árabe
não tardou a
se infiltrar na Europa.
As traduções
em latim das obras
de Aristóteles,
feitas diretamente
do texto grego ou sobre
a mencionada tradução árabe,
começaram a
se disseminar e adquiriram
um grande prestígio.
Aristóteles
tinha merecidamente
a reputação
de ser o representante
mais autêntico
da cultura antiga e
portanto de ser "o
mestre dos que sabem".
No início, a
Igreja não foi
favorável ao
aristotelismo, principalmente
porque ele se apresentava
em gera! sob a forma
do averroísmo,
e, em Paris, a Sorbonne
o condenou no princípio
do século XIII.
Mais tarde, considerou-se oportuno
demonstrar que a ciência
personificada por Aristóteles
podia ser conciliada
com a fé. O
encargo de fazer esta
demonstração
foi assumido por um
dos maiores escritores
da Idade Média,
São Tomás
de Aquino (1225-1274).
Na parte especificamente
política de
sua obra, São
Tomás teve que
superar o grande obstáculo
em que se constituía
a frase de São
Paulo: omnis potestas
a Deo (todo o
poder vem de Deus),
pois este texto freqüentemente
usado pelos partidários
do poder leigo, quando
interpretado textualmente,
justifica a obediência
a qualquer espécie
de governo. São
Tomás explica
na Suma que
Deus quis que houvesse
um governo, mas que
sua forma fosse deixada à livre
escolha dos homens.
Em seguida, distingue
o tirano a titulo,
isto é, aquele
que usurpa o poder
e o tirano ab exercitio ou
o soberano cuja origem é legítima,
mas que passa a abusar
de seu poder. São
Tomás considera
que o tirano a título
pode legitimar a sua
soberania, se governar
com retidão,
ou seja, visão
do interesse de seus
súditos. Admite
também que,
em casos extremos quando
a tirania se tornar
insuportável
e obrigar os súditos
a cometer pecados,
justifica-se a rebelião.
Discute-se a questão,
se São Tomás
justificava o tiranicídio
em certos casos. Esta
discussão deve-se
a uma passagem do Comentário em
que menciona um trecho
de Cícero, que
diz que o povo tem
o hábito de
louvar e recompensar
aquele que mata o tirano.
Mas esta passagem do Comentário é apenas
uma citação
e não expressa
seu pensamento.
São Tomás,
seguindo Aristóteles,
considera que todas
as formas de governo
podem ser legítimas,
se os chefes agirem
segundo os interesses
da coletividade. Mas,
aproximando-se neste
ponto de Cícero,
acha preferível
o governo misto, no
qual os elementos democráticos
estejam também
representados: O portet,
diz ele, ut omnes
partem aliquam habeant
in principatu (para
que todos, de alguma
forma, participem do
governo).
Finalmente, São
Tomás aborda
a árdua questão
das relações
entre a Igreja e o
Estado, afirmando que à primeira
cabe a chefia das almas
e ao segundo, a dos
corpos. Segue-se que
cada uma destas duas
instituições
teria seu domínio
próprio e não
deveria invadir o da
outra. Mas, em caso
de conflito, o Papa
pode sempre julgar
se o soberano pecou
porque o pontífice utriusque
potestatis apicem tenet (O
pontífice constitui
a última instância
de ambos os poderes).
Nos últimos
anos do século
XIII e nos primórdios
do século XIV,
a luta entre a Igreja
e o Estado continuou
com violência.
Desta feita, o Papado
contou também
entre os seus adversários
com o rei da França,
Felipe, o Belo. Este,
secundado pelo seu
ministro Nogaret, que
era neto de um dos
heréticos albigenses
contra os quais o Papa
havia empreendido uma
campanha exterminadora,
quis que os bens do
clero também
fossem tributados.
O papa Bonifácio
VIII insurgiu-se contra
esta pretensão,
publicando três
bulas: uma em 1296
(Clericis laicos),
outra em 1301 (Ausculta
fili), e uma terceira
em 1302 (Unam sanctam).
Nessas bulas o Papa
não somente
argumentava que sobre
os bens da Igreja não
devia incidir nenhuma
tributação,
como afirmava a superioridade
da autoridade eclesiástica
sobre as demais de
natureza leiga. Omnem
creaturam humanam,
proclamava ele, subesse
romano Pontifici declaramus.
(Declaramos que toda
criatura humana deve
submeter-se ao Pontífice
romano). O princípio
defendido por Bonifácio
VIII era o mesmo que
haviam defendido Gregório
VII e Inocêncio
III, mas os tempos
haviam mudado. A fé,
ainda que grande, não
era mais a de outrora
e a autoridade papal
começava a ser
discutida. A excomunhão
não produzia
mais os mesmos efeitos
que em épocas
anteriores como quando
obrigou o imperador
Henrique IV a sofrer
a humilhação
de Canossa. Não
devemos também
nos espantar, se Felipe,
o Belo, responde às
bulas pontificais com
cartas insolentes e
enviou Nogaret à Itália
onde, juntamente com Sciarra
Colonna, usou
de violência
contra o Pontífice.
À essa época, apareceu o Diálogo entre o Clero e o
Cavaleiro no qual o primeiro defende a isenção dos bens
da Igreja e o outro sustenta que esses bens haviam sido dados à Igreja
para que ela socorresse os pobres e já que o clero deles se havia apropriado
e acumulado tanta riqueza não devia se subtrair aos deveres cívicos.
Ignora-se quem foi o autor deste diálogo.
Outra obra importante
que aborda esta questão é o De
Monarchia de Dante
Aleghieri, composto
muito provavelmente
em 1308, época
em que Henrique VII
de Luxemburgo invadiu
a Itália. Nessa
obra, o pensamento
do grande poeta acha-se
muito influenciado
pela mentalidade medieval,
sendo de um espírito
bem menos moderno do
que o Defensor
pacis de Marcílio
de Pádua, escrito
apenas dezesseis anos
após ao De
Monarchia.
Dante Alighieri nasceu em Florença, no ano de 1265, e faleceu,
em Ravena, em 1321. Ainda que o seu nome esteja indissoluvelmente ligado ao
imortal poema Divina Comédia, foi um político proeminente
e escreveu obra de caráter teórico.
Em sua terra natal,
Dante foi incumbido
de diversas missões
diplomáticas.
Além disto,
pertencia à mais
alta hierarquia governamental,
sendo um dos sete magistrados
que regiam os destinos
da cidade. A política
em Florença,
como de resto na Itália
de seu tempo, nutria-se
de divisões
acentuadas. Formalmente,
os dois principais
grupos denominavam-se gibelinos (moderados)
e guelfos (partidários
radicais do Papa),
sendo que Dante pertencia à primeira,
o que explica a posição
doutrinária
adiante referida. Tendo
a balança se
inclinado em favor
dos guelfos, foi exilado
em Ravena.
Ravena havia sido o
centro do Império
Romano do Ocidente
e também sede
das possessões
bizantinas entre os
séculos VI e
VIII, situando-se às
margens do Adriático,
no Norte da Itália.
Durante o exílio
escreveu um tratado
de filosofia a que
intitulou de O
Banquete, ensaios
de natureza científica
e uma obra política
em que toma partido
na grande disputa que
então tinha
lugar.
Como se indicou, Dante
denominou o seu tratado
político de Monarquia.
Inclina-se pela independência
dos dois poderes. Contudo,
a Divina Comédia é que
lhe granjeou a fama
conquistada. O seu
túmulo em Ravena,
ainda que a cidade
distinga-se pela magnitude
de seus monumentos
históricos,
encontra guarida na
preferência da
visitação
turística.
As teses que defende
em sua obra são
resumidas a seguir.
Afirma que para a humanidade
poder desenvolver suas
possibilidades intelectuais,
isto é, seu
potencial de progresso, é necessário
que a paz reine em
toda a parte. Admite-se
que haja concluído
aquela obra no ano
de 1308, quando se
dá a invasão
da Itália por
Henrique VII de Luxemburgo.
A manutenção
da paz entre os estados,
prossegue, somente
será alcançada
quando o mundo venha
a ser governado por
um só homem,
devendo este soberano
ser o imperador romano,
ao qual todos deverão
obedecer. Diz textualmente
que o império
universal corresponde à vontade
de Deus. Justamente
para torná-lo
realidade, Deus fez
com que os romanos
conquistassem o mundo.
Como prova da vontade
divina apresenta a
circunstância
de que Jesus Cristo
haja nascido no alvorecer
do Império.
Os milagres que os
romanos atribuíam
aos deuses do paganismo,
na verdade, provinham
do Deus dos cristãos
que, ajudava aos romanos,
desde que lhes havia
dado a missão
de unificar o mundo.
Tenha-se presente que
existia o Sacro Império
Romano Germânico.
Entretanto, somente
a partir de Frederico
III da Áustria
(reinou de 1440 a 1439),
a instituição
se consolida e passa
a ter uma estrutura
mais ou menos estável.
O fato de que tal haja
ocorrido muito depois
da morte de Dante não
impede de reconhecer
que a aspiração
por ele apresentada
deveria corresponder
a esperança
generalizada no seio
da elite, notadamente
em face da crise que
vinha de se abater
sobre a Igreja com
a mudança forçada
do Papa para a Avinhão,
em 1309, de que resultaria
o grave cisma com a
existência de
duplicidade no Papado
entre 1378 e 1417.
Outro
argumento que serviu para popularizar a obra de Dante, consiste no seguinte:
aos que justificam a subordinação do poder temporal à Igreja,
invocando as teorias astronômicas e comparando o Papa ao Sol e o Imperador à Lua,
lembra que, se a Lua é iluminada pelo Sol, não deve a este o
movimento.