Cícero
e a preservação
do legado grego
Com a Revolução
Francesa, as instituições
políticas romanas
alcançaram grande
notoriedade no Ocidente.
Assim, introduziu-se
a figura do Cônsul, detentor
do poder que antecedeu,
em Roma, à substituição
da República
pelo Império.
Graças a essa
influência, a
segunda Câmara,
presente no modelo
inglês do governo
representativo --na
altura em fase de disseminação--
passa a denominar-se Senado.
Ainda assim, da própria
Roma Antiga a meditação
política preservada,
segundo se indicará,
serviu sobretudo como
contribuição
ao conhecimento do
pensamento político
grego.
Contudo, parece imprescindível
preceder a apresentação,
do texto em questão,
da autoria de Cícero,
de uma breve caracterização
daquelas instituições.
Originariamente, as instituições
políticas de Roma guardavam certas semelhanças com as que se
organizaram nas cidades-Estado gregas. Assim, além do mandatário
do Estado, existia um conselho constituído pelos chefes das grandes
famílias, conselho esse que, em Roma, seria denominado de Senado.
A chefia do Estado, exercida hereditariamente, também por influência
grega, veio a ser alterada, transferindo-se a órgãos eletivos
e múltiplos (o Consulado e outras Instâncias denominadas magistraturas),
O Cônsul e os magistrados eram em geral recrutados entre os membros das
principais famílias e gozavam de muito prestígio.
Admite-se que, paralelamente a essa
estrutura de feição aristocrática, organizou-se uma outra
de base democrática. Assim, assembléias de diversos grupos sociais
(comícios) elegiam tribunos, espécie
de representantes (originariamente com atribuições de protetor)
junto às instituições oriundas do patriarcado.
Como na Grécia, a condição
de cidadão não alcançava a todos, subdividida a população
em patrícios (cidadãos de pleno direito) e os demais,
denominados de plebeus. Considera-se que, em Roma, o acesso veio a
ser mais fácil, assegurados os direitos de cidadãos aos que se
dispunham a formar colônias nas regiões conquistadas, independente
de pertencerem ou não aos patrícios. Mesmo em relação
aos povos vencidos, muitas das prerrogativas dos cidadãos seriam facultadas
a diversas pessoas.
Nas fases iniciais das
guerras de conquista, a tropa era recrutada entre os cidadãos. Com o
prolongamento das lutas e o aumento dos efetivos, as camadas mais baixas foram
incorporadas a esse serviço. A chefia da legião, de feição
transitória, foi se tornando cada vez mais prolongada.
Com a dispersão
dos cidadãos pelo Império, as assembléias acabaram caindo
em desuso. Na medida em que se consolida o Império, o tribuno torna-se
um título honorífico, sendo de nomeação do Senado
ou diretamente do imperador.
No que respeita
a essa evolução das instituições políticas
romanas, escreve Gaetano Mosca (1858/1941), no seu livro clássico História
das doutrinas políticas (1898): “Muitos historiadores modernos
discutiram a questão de saber se Augusto pretendeu criar uma nova forma
de governo, ao substituir a República pelo Império, ou se havia
querido conservar a forma republicana retocando-a ali onde se fizesse necessário.
Parece-nos que empregar tais
termos equivale a colocar as questões de modo falso: pois as pessoas
que não são muito versadas no estudo das instituições
romanas poderiam supor então que a antiga república romana teria
sido uma forma de governo análoga às repúblicas modernas,
e que o Império de Augusto se assemelharia aos Impérios modernos.
A verdade é que Augusto deu-se conta de que a antiga constituição
do Estado-Cidade não mais podia funcionar depois que Roma havia subjugado
todo o Mediterrâneo e os cidadãos romanos se contavam por milhões.
Assim, acrescentará aos antigos órgãos de governo outros
novos e mais eficazes; mas se contenta em adaptar o mais possível os órgãos
antigos às novas necessidades”.
Deste modo, como
bem entreviu Gaetano Mosca (1858/1941), o Império corresponde a estrutura
centralizada, eliminando progressivamente a disseminação de seu
poder por outras instâncias. Os poderes do Senado vêm-se sucessivamente
reduzidos. Sob o Império, passam diretamente ao Imperador os assuntos
financeiros e a política externa. Grande parte das províncias
passam a ser administradas sob a direção do
imperador e só parte delas continua subordinada aos senadores.
O ponto
fraco das instituições imperiais consistia na incerteza em matéria
de sucessão. Os cinco primeiros imperadores pertenciam à mesma
família. Com as guerras civis que se seguiram à morte do último
daqueles dignatários (Nero, em 68), ascende ao poder um general (Vespasiano)
que não pertencia às velhas famílias, não obstante
o que
consegue transmiti-lo
a seus descendentes.
Por fim, prevalece
o princípio
que consagra ao governante
o poder de designar
o seu sucessor.
“Assim,
escreve Mosca, pouco
a pouco, a burocracia
imperial suplanta as
antigas magistraturas
que acabam por tornar-se
apenas honoríficas
A única lembrança
do antigo regime político
que sobreviveu seria
a Lex Regia de
Imperio pela
qual, teoricamente,
o Senado, na qualidade
de representante do
povo romano, conferia
ao Imperador os seus
poderes. Na realidade,
exercia-se em geral
a favor dos pretorianos,
pois eram as legiões
que criavam e derrubavam
os imperadores. De
todos os modos, a sobrevivência
dessa lei permitia,
até o fim do
III século depois
de Jesus Cristo, distinguir
a constituição
do Império Romano
daquela dos antigos
Impérios orientais,
onde o soberano governava
por delegação
do Deus nacional ou
em decorrência
dos privilégios
hereditários
de sua família”.
Do
que precede, vê-se
que a República
Romana não resistiu à expansão do Império.
Até mais ou menos a década
de cinqüenta, antes de Cristo, Roma estabelece seu domínio no Mediterrâneo
e em praticamente todo o território da atual Europa Ocidental, com exceção
das Ilhas Britânicas. Os problemas resultantes da manutenção
de colônias romanas em território tão vasto, além
da dimensão assumida pelo Exército, extravasavam a operacionalidade
do Senado e da cúpula governamental que funcionava como Executivo. Assim,
entre os anos 20 e 14 antes de Cristo transita-se de um triunvirato para o
governo pessoal do primeiro Imperador, Otávio Augusto. Como se indicará logo
a seguir, Cícero vivencia essa fase final de transição,
antecedida por um período de grande agitação na própria
Itália (guerras civis sucessivas a partir da primeira década
do último século).
Embora não pertencesse às
famílias tradicionais,
Cícero (106-46
a.C.) fez uma grande
carreira política
na Roma Antiga, tendo
começado como
administrador da Sicília.
Vindo a integrar o
Senado, foi escolhido
Cônsul num período
extremamente conturbado
da história
de Roma. Vivia-se,
no último século
antes de nossa era,
a transição
para um governo mais
centralizado onde a
elite militar teria
influência dominante,
governo este que revogou
o antigo nome de República
substituindo-o pelo
de Império,
ainda que as diversas
instituições
anteriores hajam sido
conservadas.
No poder, Cícero
enfrenta clima de insurreição
e defronta-se com um
sem número de
inimigos. Durante o
seu consulado é que
se dá a formação
de um governo militar
em forma de triunvirato,
a que se segue a instauração
da ditadura de César,
que, por sua vez, precederia
a estruturação
formal do novo regime
imperial.
Afastado do poder,
Cícero é obrigado
a recolher-se à vida
privada. É nessa
fase que produz obra
considerada monumental.
De certa forma, sistematiza
a informação
que, em sua época,
se dispunha do pensamento
grego. Deu a conhecer
também o essencial
das doutrinas políticas
de Platão e
Aristóteles.
Dotado de grande cultura,
foi reconhecido ainda
como o melhor orador
de seu tempo, merecendo
também figurar
entre os poetas de
nomeada. Manteve relações
estreitas com os sábios
gregos seus contemporâneos.
Após a morte
de César (nascido
em 100 e assassinado
em 44 a.C.), Cícero
tentou voltar à política.
Nessa empresa, envolveu-se
nas lutas armadas que
então tiveram
lugar, e terminou por
ser igualmente assassinado
(43 a.C.), aos 63 anos
de idade.
Resumindo o significado
de Cícero para
a cultura ocidental,
Ferrater Mora, em seu
famoso Dicionário
de Filosofia,
teria oportunidade
de afirmar: "A
filosofia de Cícero
não é,
certamente, original,
mas a influência
que exerceu torna-a
uma peça indispensável
na história.
Com efeito, não
somente divulgou para
o mundo romano o mais
importante da tradição
intelectual grega como
igualmente muitas de
suas obras foram lidas
com freqüência
pelos filósofos
posteriores, tanto
pagãos como
cristãos. A
isto deve agregar-se
a influência
exercida na formação
do vocabulário
filosófico latino – de
que o próprio
Cícero tinha
consciência ao
indicar que suas obras
filosóficas
ofereciam ao leitor
principalmente palavras".
Da República é considerada como a obra fundamental de
Cícero. Escrito no ano 51 a.C., Da República está elaborada
na forma adotada pelos diálogos platônicos. Reunidas, algumas
personalidades entretêm uma conversação livre. Pretendendo
guardar plena autenticidade, os assuntos afloram espontaneamente, entremeando-se
discussões eruditas sobre diversos assuntos com a invocação
de eventos históricos. Preservaram-se seis livros. A exposição
da doutrina política está toda contida no Livro Primeiro.
No relato de Cícero,
Cipião Emiliano,
neto de Cipião
o Africano, destruidor
de Cartago e chefe
do Partido Aristocrático,
em suas férias, é visitado
por amigos e parentes.
Depois de muitos circunlóquios,
Cipião é instado
a dar sua opinião
quanto à melhor
forma de governo (a
partir de § XX).
Cícero fala
naturalmente pela boca
de Cipião ao
dizer que as doutrinas
gregas não o
satisfazem plenamente,
preferindo que sejam
completadas pela própria
experiência do
homem público.
O seu tema é a
República, que
define como sendo uma
organização
social com fundamento
jurídico, voltada
para o bem comum.
Reproduz as conhecidas
doutrinas gregas acerca
das formas de governo,
inclusive a hipótese
de que teriam intrinsecamente
uma componente degenerativa.
O personagem inclina-se
francamente por uma
forma de governo que
reúna as vantagens
dos três grandes
sistemas conhecidos
(monarquia, aristocracia
e democracia), onde
o príncipe zele
pelos seus cidadãos
como um pai, encontre-se
uma aristocracia que
sobressaia pela sabedoria
e garanta-se a liberdade
que se apóie
na igualdade jurídica
dos cidadãos.
Aparece também
as dificuldades resultantes
das desigualdades sociais.
Cícero simpatiza
com as teorias de Políbio.
Como este procura também
ressaltar a excelência
das instituições
romanas. Contudo, o
texto não poderia
deixar de refletir
as incertezas dos tempos
em que o elaborou.
Assim, não há de
ser apenas para imitar
o diálogo platônico,
quase sempre inconcluso,
que Da República reveste-se
de certo ar de inacabado.
Em
conclusão, no
que respeita ao estudo
da política, os
escritores romanos pouco
acrescentaram ao que
se encontra na obra de
Aristóteles. Sua
importância advém
do fato de que lhes coube
transmitir à cultura
ocidental a inovação
introduzida na Grécia
na consideração
do tema, que consiste
em tê-la tornado
objeto de meditação
destinada a responder à pergunta
acerca da melhor forma
de governo.