Raymond
                                                            Aron e a preservação 
                                                          dos
                                                            valores da doutrina
                                                            liberal 
                                                         
                                                        
                                                            Raymond
                                                          Aron (1905/1983) é autor
                                                          de obra verdadeiramente
                                                          monumental, iniciada
                                                          ainda na década
                                                          de trinta, por volta
                                                          dos trinta anos de
                                                          idade. Durante a Segunda
                                                          Guerra teve de interrompê-la
                                                          desde que integrou
                                                          a resistência
                                                          francesa à ocupação
                                                          alemã, retomando-a  no
                                                          período subseqüente
                                                          e até o seu
                                                          falecimento (1983).
                                                          Além da obra
                                                          teórica, na
                                                          imprensa e no movimento
                                                          político em
                                                          geral travou uma luta
                                                          sem quartel contra
                                                          a ameaça soviética
                                                          que pairava sobre a
                                                          Europa, enfrentando
                                                          por vezes de modo isolado
                                                          a ascendência
                                                          esmagadora que o marxismo
                                                          alcançou na
                                                          França. Nas Memórias,
                                                          aparecidas pouco antes
                                                          do falecimento, registra
                                                          e comenta o essencial
                                                          desse embate.
                                                          
      Terminada a guerra, Aron passa a trabalhar como jornalista
  profissional no importante periódico Figaro. Escreveu regularmente
  nesse jornal durante trinta anos (de 1947 a 1977).
  
       Nesse período, apoiou firmemente as reformas
  de De Gaulle e engajou-se na causa da Europa. No fortalecimento da unidade,
  dos países que não haviam caído sob o jugo comunista,
  enxergava a  única hipótese de enfrentamento da ameaça
  soviética. Da tribuna do jornal conservador prestou inestimável
  serviço à causa da democracia.
  
       Em 1955, inscreve-se em concurso para ocupar uma cátedra
  (sociologia) na Sorbonne, sendo aprovado. Ali teve oportunidade de criar uma
  corrente autônoma, atenta aos valores, ao arrepio da tradição
  da “sociologia francesa”. A partir de 1969, transfere-se para o
  Collège de France.
  
       Aron começa por elaborar uma substancial obra
  filosófica, versando a teoria da história. Conseguiu dar forma
  acabada ao que foi denominado de “teoria neokantiana da história”,
  nestes livros: Essai sur une theorie de l´histoire dans l´Allemagne
  conemporaine; la philosophie critique de l´histoire (1938; sucessivamente
  reeditado); Introduction a la Philosophie de l´Histoire. Essai
  sur les limites de l´objectivité  historique (tese de doutoramento,
  1938; editada como livro em 1981) e Dimensions de la conscience historique (1960).
  
       Outra esfera do saber em que deixou-nos uma notável
  contribuição reside nas relações internacionais.
  O texto fundamental em que apresenta sua teoria   apareceu em 1962 (Paix
  et guerre entre les nations, traduzida ao português), complementando-a
  pela análise da doutrina de  Clausewitz ( Penser la guerre,
  2 vols., 1976).
  
       Em seus cursos da Sorbonne deu forma a uma sociologia,
  inspirando-se sobretudo em Max Weber, que daria origem  a uma corrente
  sociológica apta a contrapor-se à chamada “sociologia francesa”,
  caudatária do marxismo. Entre aqueles que reviu para publicação,
  destacam-se Dix-huit leçons sur la societé industrielle (1962); La
  lutte de classes (1964); Democratie et totalitarisme (1966) e Les
  etapes de la pensée sociologique (1967). Nesta mesma linha publicou
  ainda diversos livros, entre estes La sociologie allemande contemporaine (sucessivamente
  reeditado); Trois essais sur l´age industrielle (1966) e De
  la condition historique de la sociologie (1970). Estão traduzidos
  no Brasil  as Etapas do pensamento sociológico (1970)
  e uma coletânea muito difundida que foi intitulada Ensaios de sociologia.
  
       Estudos políticos, publicado em 1971,  reúne
  um conjunto de ensaios agrupados em três partes. A primeira, denominada
  de “Idéias”, contém textos teóricos que resumem
  o seu entendimento da diferença entre ciência natural (neutra
  a valores) e ciência social, que se constitui em presença de valores.
  Para explicitar em que consiste precisamente sua posição, confronta-a
  a Maquiavel, Marx, Pareto e Max Weber. Seu entendimento da política
  corresponde ao aprofundamento da visão de Weber, ponto de referência
  privilegiado de sua filosofia da história. As duas partes seguintes
  correspondem a uma espécie de aplicação da teoria à ação
  política no interior do Estado (2ª parte) e às relações
  entre os Estados (3ª parte).
  
       Max Weber estabelecera que na análise dos temas
  relacionados à  cultura (ciências sociais), o pesquisador escolhe
  arbitrariamente os fatos e somente a partir daí pode aspirar à obtenção
  de conclusões de validade universal. Deter-se na discussão acerca
  da escolha inicial somente levaria a confronto de avaliações,
  explicitando as preferências de cada um, matéria na qual não
  pode haver postura científica (idêntica para todos). Aron aceita
  a premissa mas quer dar o passo seguinte no tocante à responsabilidade
  do intelectual quanto às conseqüências de seu posicionamento.
  
     É preciso ter presente que nos cerca de quarenta anos transcorridos
  desde o início do pós-guerra (1945) até o seu falecimento
  (1983), Aron presenciou o avanço da ameaça soviética diante
  do aplauso da grande maioria da intelectualidade francesa. Aquele aplauso se
  dava em nome da  “cientificidade do marxismo”. A primeira questão
  consistia, pois, em examinar se de fato, essa pretensa cientificidade sairia
  incólume de análise rigorosa. 
  
       No ensaio introdutório à coletânea
  (“Ciência e consciência da sociedade”) escreve o seguinte: “Na
  medida em que um partido apresenta sua ideologia como verdade científica
  (o marxismo, por exemplo), a sociologia deve submeter tal ideologia à crítica,
  e o sociólogo deve aceitar com indiferença a acusação
  de que “está fazendo política”. As proposições
  principais do marxismo (relações de forças e de produção,
  mais valia, exploração e lucro, pauperização, regime
  econômico e classes sociais, alienação econômica
  e outras formas de alienação etc.) dizem respeito a fatos, relações,
  tendências evolutivas. São verdadeiras ou falsas, prováveis
  ou improváveis, provadas ou não; se o sociólogo nem sempre
  consegue demonstrá-las ou refutá-las rigorosamente, isso é porque
  elas estão expostas em termos tão equívocos que terminam
  por se esvaziarem de qualquer sentido, por não terem o mínimo
  de precisão indispensável. O exame e a crítica das proposições
  de fato incluídas em todas as ideologias não podem deixar de
  ser objeto de atenção da sociologia, por isso a sociologia não
  pode evitar uma tomada de posição em favor dos programas e das
  interpretações dos partidos, ou contra eles”.
  
       Ao dizer que o intelectual não pode ignorar
  as conseqüências de seu posicionamento, Aron não pretende
  advogar a impossibilidade da ciência social. Entre outras coisas escreve
  num dos ensaios:  “A despeito do engajamento, que simboliza a escolha
  das questões ou dos centros de interesse, o historiador e o sociólogo
  desejam chegar a uma verdade rigorosamente objetiva, parcial mas universalmente
  válida”. A impossibilidade reside no que se poderia denominar
  de “política científica”, isto é, de uma política
  que se pretendesse universal, capaz de resolver o inelutável conflito
  social em favor de uma das partes. A análise da política sempre
  pode chegar a conclusões válidas. O problema de sua aplicação,
  no regime democrático, é que este envolve a negociação
  e a barganha, escapando a qualquer tipo de pretensão científica.
  
       Detém-se na análise da adesão
  ao sistema soviético dos intelectuais que, não sendo comunistas,
  dispunham-se a exaltar seus supostos  êxitos  econômicos,
  atribuindo-lhe superioridade em relação ao sistema capitalista.
  Pretendiam ser  “progressistas”, isto é, expressar a   aceitação
  daquilo  que corresponderia à inevitável evolução
  da humanidade. Para identificá-los plenamente, transcreve trechos do
  período da guerra fria de figuras eminentes do mundo católico,
  colaboradores da consagrada revista Esprit, como Jean-Marie Domenach,
  Albert Béguin, ou tidos como independentes, a exemplo de Maurice Duverger,
  passando naturalmente por Jean Paul Sartre. Ainda que não tivesse ocorrido
  o fim desse sistema, que revelaria toda a mistificação a que
  correspondia (Kolakowski batizou-o de a grande mentira),  na década
  de setenta já se tornara difícil negar a incapacidade do comunismo
  de proporcionar bem estar material, para não falar da evidência
  do caráter totalitário do regime.
  
   Nas Memórias pergunta porque espíritos de qualidade
  perdem o bom senso, mesmo quando não aderem seja ao marxismo seja ao
  marxismo-leninismo.   O ópio dos intelectuais (traduzido
  e editado no Brasil) teve o mérito de demonstrar que eram vítimas
  de mitologia banal e pueril. Os mitos apontados são os da esquerda,
  do proletariado e da revolução.
  
       No que se refere ao mito da esquerda, escreve Aron: “Não
  neguei que se pudesse distinguir, na Assembléia, uma direita e uma esquerda.
  O que negava era a existência de uma esquerda eterna, através
  das diversas conjunturas históricas. Animada pelos mesmos valores, unida
  nas mesmas aspirações”. Cita situações em
  que, na própria história da França,  se torna patente
  a ausência de homogeneidade entre agrupamentos arrolados como tais. Pode
  ser comprovado simplesmente constatando a freqüência com que se
  apela à “unidade da esquerda”.
  
      E prossegue: “Do mesmo modo, a propósito da
  revolução e do proletariado, esforcei-me por reduzir a poesia
  ideológica à  prosa da realidade. A classe operária constitui “autêntica
  inter-subjetividade”  ? Pode tornar-se a classe dirigente? É libertada
  quando um partido exerce o poder absoluto em seu nome, mas   despojando-a
  dos instrumentos da relativa e parcial liberação, conquistados
  na democracia capitalista? Porque a revolução enquanto tal constitui
  um bem? O “mito da revolução” serve de refúgio
  ao pensamento utópico, torna-se intercessor misterioso, imprevisível,
  entre o real e o ideal. A violência atrai, fascina. O trabalhismo e a “sociedade
  escandinava sem classes”  jamais encontraram, junto à esquerda
  européia, sobretudo francesa, o prestígio alcançado pela
  Revolução russa, a despeito da guerra civil, dos horrores da
  coletivização e dos grandes expurgos. É necessário
  dizer a despeito ou por causa?”. 
  
      Talvez se possa afirmar que, no combate à influência
  marxista,  sejam mais importantes suas contribuições ao
  desenvolvimento da sociologia, a partir da premissa fundamental de Weber quanto à imprevisibilidade
  das consequências da valoração, no estudo da ação
  humana, impeditiva da transformação da história numa ciência
  exata. Nesse particular, sua obra é fundamental na recuperação
  do espírito da historiografia clássica.
  
     Enquanto Weber tratou de evidenciar o significado da criação
  humana no plano cultural –negada pelo marxismo, a exemplo da religião
  e da moral --, Aron atacou o âmago do marxismo, ou seja, a exaltação
  da luta de classes como motor da história, conduzente à ditadura
  do proletariado. Explica Aron: “Chocava-me o contraste (e a similitude)
  entre as teorias da classe dirigente e a das classes sociais. O fascismo italiano
  utilizou amplamente a concepção Mosca-Pareto da classe dirigente,
  enquanto os marxistas somente conheciam a das classes sociais; confundiam a
  classe socialmente dominante com a classe dirigente. Ora, o Partido Bolchevique,
  detentor do poder, representa não a classe operária mas uma classe
  dirigente, elevada ao primeiro plano após a eliminação
  da antiga classe dirigente”. 
  
      Nessa linha de meditação, Aron irá  precisar
  o conceito de sociedade industrial, em confronto com as precedentes.
  Apontará como nota distintiva o crescimento baseado na elevação
  da produtividade do trabalho. Ao contrário dos analistas que se revelavam
  incapazes de adotar uma atitude crítica, diante da propaganda soviética,
  Aron irá demonstrar que, na construção dessa sociedade,
  não havia indícios efetivos de superioridade soviética
  sobre a ocidental. Exemplifica com os que chegaram a afirmar que o pão
  seria distribuído gratuitamente na União Soviética, impossível
  de acontecer dada a baixa produtividade do trabalho agrícola ali verificada.
  Para quem quisesse ver, era flagrante o atraso da agricultura russa. Em sua
  visita aos Estados Unidos nos anos cinqüenta, Krushov (que então
  se encontrava  à frente do poder, no início do período
  subseqüente á morte de Stalin) revelou o seu espanto com a existência
  do milho híbrido. A Rússia então deblaterava contra a
  teoria genética e logo se viu o resultado: de tradicional exportador
  de grãos antes da Revolução, o país tornou-se grande
  importador.
  
      Os textos sobre a sociedade industrial, antes referidos,
  serviram para demonstrar não só a  inexistência da
  alardeada superioridade soviética, em matéria de organização
  do processo produtivo, como também que a característica distintiva
  do regime situava-se no plano político. E aqui as evidências demonstravam
  que as denúncias do stalinismo não conduziram a alterações
  substanciais, já que o sistema cooptativo em vigor baseava-se também
  na presença de Estado policial implacável que, para usar a feliz
  expressão de Hanah Arendt, transformara o povo russo em massa amorfa,
  privada de qualquer espécie de solidariedade, onde as pessoas não
  confiavam umas nas outras.
  
      No ambiente intelectual francês em que viveu, Aron
  achava que a postura da intelectualidade francesa predispunha à  derrota
  diante da União Soviética. Marcara-o profundamente a capitulação
  de Munique quando o Ocidente consagrou a política de expansão
  de Hitler, admitindo ilusoriamente que se deteria no projeto de “reconstituir” as
  fronteiras alemãs tradicionais no chamado Terceiro Reich, e temia que
  a Europa se encaminhasse na direção do capitulacionismo diante
  do despotismo oriental, simbolizado pelo Império Soviético. Entendia
  também que o destino do Ocidente estava associado à  Aliança
  Atlântica, onde defendia a presença dos Estados Unidos. O essencial
  dessa pregação reuniu-o no livro Em defesa da Europa decadente (1977). É autor
  de uma distinção importante entre o que designou como “liderança
  americana”, a que os Estados Unidos tinham direito, legitimamente e o
  que chamou de “república imperial”, comportamento a que
  o país tinha sido empurrado em certas circunstâncias, por ambições
  imperialistas de correntes políticas ali existentes, como foi o caso
  da intervenção no Vietnã.
  
      Assim, graças a Aron, a sociologia francesa deixou
  de ser uma espécie de “samba de uma nota só”, simples
  repetidora das teses centrais da vulgata marxista, dando lugar a uma alternativa
  atenta ao valor e à presença da cultura. Em nossos dias, essa
  evidência é comprovada, entre outras, pelo vigor e a fecundidade  da
  obra de Raymond Boudon.
  
       Por sua combatividade e persistência, Aron conseguir
  formar expressivo grupo de intelectuais liberais, que deram curso à sua
  obra, após a sua morte, em 1983. Presentemente esse grupo acha-se reunido
  em torno da revista Commentaire e da Fundação Raymond
  Aron. 
                                                        
                                                          
                                                                Memoires.
                                                              50 ans ded refletion
                                                              politique.
                                                              Paris, Julliard,
                                                              1983, p.320