Kautsky revê a previsão de Marx
da evolução do meio rural
Karl Kautsky (1854/1938) nasceu em Praga, então era parte integrante do Império Austro-húngaro e freqüentou a Universidade da capital (Viena). Filiou-se ao Partido Social Democrata Austríaco e tornou-se marxista sob a influência de Edward Bernstein, embora deste acabasse por divergir em muitos aspectos de sua crítica ao marxismo. Como Bernstein, considerava que a obra de Marx não deveria ser transformada em dogma mas opunha-se ao abandono daqueles pontos em que fosse mais nítido o caráter revolucionário do movimento. Assim, ainda em 1900 considerava que os sociais democratas não deveriam aspirar a uma participação no poder executivo dentro da sociedade burguesa. Como a prática política da social democracia enveredasse por outro caminho, deixou de acentuar as suas divergências com o revisionismo. Acabaria mesmo com este identificado, graças entre outras coisas aos brutais ataques que Lenine lhe dirigiu, inclusive batizando-o de Renegado Kautsky, com o que, sem sombra de dúvida, atribuía conotação religiosa ao movimento comunista.
Kautsky tornou-se uma das figuras mais representativas da Segunda Internacional Socialista, contribuindo grandemente, com sua decidida condenação da Revolução Russa e do totalitarismo soviético, no sentido de que o socialismo democrático sobrevivesse no Ocidente. Pertenceu ao governo no início da República de Weimar, em 1919, mas a partir de 1924 abandonou as funções que tinha na Internacional passando a dedicar-se à sua obra teórica. É autor de extensa bibliografia voltada para a difusão do marxismo. Contudo, considera-se que suas contribuições mais importantes situem-se no terreno da economia. Editou as notas manuscritas de Marx que formariam o quarto volume de O Capital, com o título de Teorias da mais valia (1905-1910). No livro O marxismo e sua crítica (1900) mostrou como o capitalismo industrial não conduzia, como supusera Marx, à pauperização absoluta do proletariado.
Faleceu em outubro de 1938, como refugiado político em Amsterdã, onde passara a viver, ainda naquele ano, em decorrência da invasão da Áustria pelos nazistas.
Para exemplificar como prefere o curso real dos acontecimentos aos postulados doutrinários, vejamos os principais aspectos considerados em seu livro clássico A questão agrária ( 1898) . A tradução brasileira deste livro foi incluída na Coleção Os economistas, do grupo editorial Abril.
O processo de mecanização agrícola, ao longo do século, é examinado de modo minucioso, bem como a questão da adubação. Até então, a matéria orgânica utilizada na recuperação da fertilidade do solo provinha sobretudo do gado estabulado. A obtenção de fertilizantes químicos apenas se inicia. Kautsky porém dá-se conta plenamente de seu significado. “A agricultura – escreve – outrora a mais conservadora de todas as atividades profissionais, e que durante centenas de anos não acusara nenhum progresso em absoluto, tornou-se, em poucos decênios, a mais revolucionária de todas. Na mesma medida em que a revolução se processava, essa profissão que rotineiramente passava, por herança, de pai para filho, evoluía e se transformava, agora, em uma ciência, ou, melhor dizendo, se transformava em um conjunto de ciências cujo objeto e conclusões teóricas abrangem um campo em rápida expansão. O agricultor que não se encontra familiarizado com essas ciências, o simples prático assiste perplexo a todas essas inovações, mas já não pode apegar-se à tradição, pois tornou-se impossível manter o sistema consagrado dos pais e dos avós.”
Kautsky parte da análise dos dados estatísticos relativos à propriedade agrícola na Inglaterra, na França, na Alemanha e nos Estados Unidos. Embora haja certas discrepâncias entre estes países, as informações disponíveis não permitem concluir que se estaria verificando a concentração da propriedade fundiária a exemplo do que se dá com a produção industrial.
Em 1882 havia na Alemanha 5,3 milhões de propriedades agrícolas, das quais cerca de 4 milhões com menos de 5 ha. Em 1895, o total das propriedades se havia elevado em aproximadamente 300 mil, a maioria absoluta (cerca de 200 mil) naquele grupo de pequenas propriedades. Em termos de áreas mobilizadas para fins produtivos, houve naquele período (entre 1882 e 1895) acréscimo da ordem de 800 mil hectares (no total, as propriedades agrícolas na Alemanha, no último ano indicado, detinham 33 milhões de hectares). O acréscimo indicado foi absorvido basicamente pelas propriedades médias (entre 5 e 20 hectares), tendo equivalido a 563 mil hectares (cerca de 70% do total) .
Confrontando essa situação com os dados disponíveis para a França conclui Kautsky: “Enquanto na Alemanha se observa um crescimento maior do médio estabelecimento (em termos de área ocupada), na França vamos notar que o maior aumento se verifica nos dois extremos – os estabelecimentos que acusam maior aumento numérico são os de dimensão bem pequena, ou os de dimensão bem grande. Os estabelecimentos médios vêm diminuindo em área e em número. Essa diminuição é insignificante exceto, aliás, no caso, dos estabelecimentos agrícolas de 10 a 40 hectares. A tendência evolutiva não é, de qualquer forma, rápida.” Prosseguindo no confronto, adianta: “A exemplo do que acontece na Alemanha, também vamos encontrar na Inglaterra um aumento do número de estabelecimentos de tamanho médio. Na Alemanha este aumento estende-se principalmente aos estabelecimentos cuja área se situa entre 5 e 20 hectares, enquanto na Inglaterra o mesmo se estende à faixa dos 40 aos 120 hectares, faixa que, de maneira alguma poderia dizer-se corresponder à dos estabelecimentos de pequeno porte. Na Inglaterra, ao contrário do que acontece na Alemanha, os estabelecimentos de tamanho mínimo diminuíram de forma considerável, verificando-se o mesmo ainda com os de maior área, ou seja, com área acima de 120 hectares.” (Trad. cit., p. 121-122).
Nos Estados Unidos, o fenômeno típico é a redução do tamanho médio dos estabelecimentos agrícolas, fenômeno que atribui à abolição do trabalho escravo. A situação difere um pouco quando se considera, separadamente o Norte e o Sul (estados que se confrontaram na guerra civil). Os grandes estabelecimentos crescem no Sul em maiores proporções que os pequenos e médios. No Norte houve uma diminuição geral do número e da área das explorações agrícolas, com redução mais acentuada no grupo dos grandes estabelecimentos. De todos os modos, observa Kautsky, “por mais que na América o desenvolvimento agrícola tenha sido mais rápido que na Europa e não obstante o fato de o desenvolvimento favorecer mais que se supõe, via de regra, o grande estabelecimento, não se pode dizer de modo algum, que os pequenos estabelecimentos estejam sendo substituídos pelos grandes.”
Kautsky entende que seria precipitado concluir que o desenvolvimento da agricultura não venha a repetir o modelo capitalista verificado na indústria. Ainda assim, não se trata de um desenvolvimento linear, como se imaginava. Essa conclusão expressa-a do seguinte modo: “Os dados estatísticos revelam, indiscutivelmente, que a sociedade moderna encontra-se em fase de uma rápida e constante revolução. Familiarizamo-nos com alguns fenômenos gerais superficiais, com sintomas e efeitos. Eles nos fornecem boas indicações sobre as tendências em jogo, mas dificilmente nos revelam as causas fundamentais. Assim, números que não acusam nenhuma diminuição, ou qualquer incremento na quantidade existente de estabelecimentos rurais, esses em si não nos permitem a formação de qualquer juízo sobre as tendências do desenvolvimento capitalista na agricultura; não constituem senão um estímulo à continuação da pesquisa. De imediato eles nos mostram unicamente que o desenvolvimento não se processa de forma tão simples quanto se supunha muitas vezes e que esse processo talvez seja muito mais complicado na agricultura que na própria indústria.” (Trad. cit. p. 126) .
Segundo o seu entendimento, o que a análise permite verificar é que a agricultura apresenta alguns óbices naturais ao desenvolvimento da grande empresa capitalista, que a social democracia não pode deixar de levar em conta.
A primeira tendência contrária reside no fato de que os meios de produção industrial são passíveis de reprodução ilimitada enquanto o estabelecimento agrícola depende da terra, que apresenta limites naturais intransponíveis. Nos países civilizados tradicionais, praticamente não existe a possibilidade de incorporar novas áreas ao processo produtivo.
Onde atualmente predomina a pequena propriedade fundiária, dificilmente irá formar-se uma grande propriedade fundiária, por piores que sejam as condições de conservação da pequena propriedade, ou por maior que seja a superioridade do grande estabelecimento.
Mesmo nos casos em que a grande propriedade e a pequena forem vizinhas diretas, nem sempre o crescimento da primeira irá processar-se facilmente às custas da última, uma vez que as propriedades convenientes à anexação nem sempre coincidem com as disponíveis por razões de ordem econômica. Em conclusão, escreve o seguinte: “O agricultor que já não acha suficiente o tamanho de sua propriedade, que passa a dispor de meios para explorar uma maior, esse prefere não esperar pela oportunidade de comprar as terras do vizinho, na ocasião que é imprevisível. Ele prefere vender a sua propriedade para comprar, depois, outra maior. É dessa forma que geralmente se processa a expansão das empresas agrícolas particulares. Esta também é uma das razões do grande movimento observado no setor fundiário dos negócios, a explicação do grande número de compras e vendas de propriedades agrícolas que vem se observando na era do capitalismo.
Kautsky reconhece explicitamente que o estabelecimento maior não é necessariamente o melhor na agricultura.
Kautsky enxerga na limitação da oferta de mão-de-obra outro fator impeditivo da concentração da produção agrícola em reduzido número de organizações empresariais. A concorrência dos produtos de subsistência ultramarinos representa também uma circunstância que contribui para tornar singular o desenvolvimento do capitalismo na agricultura.
De todos os modos, considera que se verifica a proletarização dos pequenos camponeses, que dificilmente conseguem manter os padrões de vida tradicionais. A economia monetária, levando-o à aquisição de número cada vez maior de produtos, obriga-o a realizar a sua produção ao invés de consumi-la, realização esta, que se daria em condições sempre mais desfavoráveis devido ao fato de que não acompanha os níveis crescentes de produtividade registrados pela agricultura mais capitalizada.
No seu entendimento do socialismo como passagem da propriedade privada dos meios de produção (grandes empreendimentos) para a propriedade coletiva, Kautsky não revela a menor simpatia com a sua identificação com qualquer forma de estatização da economia. Diz expressamente o seguinte: “Usamos intencionalmente o termo socialização da indústria em vez do termo estatização da indústria.” No que respeita ao campo, Kautsky entende que o Partido Social Democrata não deveria assumir diretamente o propósito de fomentar o desenvolvimento do capitalismo. Algumas das reivindicações dos partidos agrários parecem-lhe diretamente conservadoras. Assim, a pauta que elaborar tem muito a ver com a situação concreta da Alemanha. Ao enumerá-las, agrupa-as deste modo: 1. Medidas em favor do proletariado rural (espécie de extensão ao campo da legislação trabalhista urbana). 2. Medidas em defesa da agricultura (eliminação de certas prerrogativas feudais, tipo zonas de caça, ensino rural, etc.) e 3. Medidas em defesa dos interesses da população rural (trata-se da eliminação do que considera exploração do campo pela cidade no plano tributário; de assistência judiciária e na prestação de serviço militar).
Em que pese este caráter prático, orientado para a atuação corrente, não se furta a pronunciar-se sobre a questão da propriedade no meio rural numa sociedade que se proponha a implantar o socialismo.
A seu ver, o socialismo fomentaria a grande propriedade mas este fato não significa a eliminação dos estabelecimentos menores, salvo aqueles que se apresentassem como exclusivamente parasitários e não tivessem por si mesmos condições de sobrevivência.
Pela magnitude e complexidade da questão, vamos transcrever o inteiro teor de suas considerações:
“Quanto aos pequenos estabelecimentos agrícolas não parasitários, aqueles que dentro da economia ainda preenchem funções importantes, esses estabelecimentos virão a constituir igualmente elementos da produção social, como acontece com as oficinas artesanais, mesmo que eles se mantenham em seu isolamento aparente. A sociedade terá um poder muito maior ainda sobre eles que sobre as oficinas artesanais em função da estatização das hipotecas e da estatização das indústrias agrícolas das quais dependem os agricultores.
Os camponeses não devem recear, no entanto, que essa dependência venha a prejudicá-los. De qualquer forma, é muito mais agradável depender do Estado democrático que ser explorado por meia dúzias de tubarões do açúcar. O Estado nada irá tirar do camponês, mas antes dar-lhe alguma coisa. A transformação da sociedade capitalista numa sociedade socialista transformará os camponeses e os trabalhadores rurais, sem dúvida alguma, em uma força de trabalho especialmente respeitada.
O trabalhador rural e o pequeno lavrador que talvez sejam hoje as classes mais preteridas da sociedade, ambas serão, talvez, bastante solicitadas em tal situação. Poderão galgar inclusive uma posição social bastante vantajosa, em tais circunstâncias. Como admitir, então, que um regime socialista iria expulsar os lavradores de seus campos? Isso seria um absurdo que ultrapassaria tudo aquilo que os nossos próprios inimigos mais inescrupulosos ousariam imputar-nos.
Qualquer regime socialista que se estabeleça terá que criar as melhores condições possíveis de existência para os agricultores já pelo simples fato de zelar pela alimentação do povo. O regime proletário terá sempre o maior interesse em estruturar o trabalho camponês de forma a torná-lo altamente produtivo, pondo à sua disposição os recursos técnicos indispensáveis para se alcançar essa finalidade. Ao invés de expropriar o homem do campo, a social democracia irá pôr à sua disposição os meios de produção mais perfeitos que esse homens jamais conseguiria obter para si na era capitalista.
Obviamente esses instrumentos mais perfeitos só podem ser utilizados pelo grande estabelecimento, razão pela qual o regime socialista fará de tudo para chegar a uma expansão rápida das empresas. Para induzir os camponeses a reunir suas terras e assim levá-los a integrar o sistema empresarial cooperativo ou comunal, não vai ser necessário recorrer ao método expropriatório. Desde que o grande estabelecimento cooperativo venha a revelar-se vantajoso para os trabalhadores desse estabelecimento, os camponeses serão motivados a imitar o exemplo fornecido pela estatização das empresas de grande porte. Em vista de todos esses fatos e do interesse que o regime socialista, qualquer que seja, terá obrigatoriamente em continuar a produção agrícola ininterrupta, e em vista da grande importância social que a população agrícola irá ter futuramente, seria, pois, inconcebível que se escolhesse um método violento de expropriação para convencer a classe ou de fazê-la crer que outras formas mais perfeitas de empreendimento agrícola sejam mais vantajosas.
Mas em havendo, assim mesmo, ramos agrícolas ou regiões agrícolas em que o pequeno estabelecimento provasse ser mais vantajoso que o grande, não haveria razão alguma para convertê-lo só para satisfazer a exigência de se contar com um padrão geral homogêneo de transformação, como o acima sugerido. Esses ramos, ou essas regiões, não serão, provavelmente, de grande importância para a produção agrícola nacional, pois os grandes estabelecimentos já contribuem atualmente com a parte principal da produção nos ramos decisivos. O deslocamento do centro de gravidade econômico, passando do mercado internacional para o mercado interno, irá trazer precisamente estes ramos (e o da produção de grãos, mais do que outro qualquer) de novo para o primeiro plano.
De qualquer forma estamos aqui lançando uma hipótese e não fazendo uma profecia. O quadro aqui descrito não diz o que irá acontecer. Sugere apenas como os fatos poderiam desenvolver-se. O que realmente vai acontecer, nem os nossos oponentes sabem, nem mesmo nós sabemos com certeza. Nós só podemos basear-nos em fatos já conhecidos perfeitamente. Se projetarmos, no entanto, a ação desses fatos com vistas ao futuro, teremos provavelmente uma evolução de fatos equivalente à já descrita linhas acima.
Os objetivos e as intenções da social democracia oficialmente manifestados em atos públicos oficiais, ou, expressos em trabalhos teóricos de seus representantes mais ilustres, não estão em contradição, de modo algum, com os resultados aos quais aqui também chegamos. Nesse particular, não registramos em nenhum momento ou passagem qualquer referência à necessidade de uma expropriação da classe agrária”.
A agricultura dos países capitalistas consolidou-se preservando a existência das propriedades familiares. De um modo geral, o fato de que se tenham firmado como grandes economias industriais não impediu que se tornassem, ao mesmo tempo, grandes produtores agrícolas. Os Estados Unidos correspondem não apenas à maior potência industrial do mundo como igualmente ao maior produtor agrícola.
O contingente empregado na agricultura tornou-se a menor parcela. Para impedir que o meio rural se esvaziasse completamente, aqueles países subsidiam a produção agrícola, a fim de manter a renda do setor agrícola em face da tendência à sucessiva redução dos preços em decorrência dos aumentos de produtividade.
A preservação das economias familiares deu-se também pela transformação das cooperativas agrícolas em grandes empresas de serviços, assegurando a incorporação das modernas técnicas sem o imperativo da agregação das propriedades. A aplicação de defensivos, a semeadura, do mesmo modo que a colheita são geralmente realizadas pelas cooperativas com o emprego de formas modernas (p. ex.: a pulverização do campo com o emprego de aviões).
Os métodos de processamento, conservação e armazenagem de produtos agrícolas igualmente aprimoram-se sobremaneira. Movimentando bilhões de dólares, a atividade agrícola passou a dispor de seus próprios meios de financiamento, representado pelas bolsas de mercadorias e mercados futuros.
São notáveis e ininterruptos os progressos registrados naquela atividade, inclusive pela introdução de melhorias genéticas obtidas pelos mais avançados meios científicos.
De modo que a suposição nutrida pelos socialistas de que os homens do campo seriam conservadores e inadaptados ao progresso, sobretudo pelo fato de que nunca nutriram simpatias pelo socialismo, não resistiu à prova da história.
O grande mérito da social democracia, sobretudo graças à trilha aberta por Kautsky, consistiu no fato de acompanhar o processo real e recusar todo dogmatismo. Assim, a passagem dos sociais democratas pelo poder nos países europeus não criou qualquer obstáculo à consolidação da agricultura segundo as linhas descritas, embora estas consistissem num franco desmentido às previsões de Marx.
É interessante confrontar essa atitude realista e antidogmática, do socialismo democrático europeu, ao caminho seguido pelos comunistas.
Na Rússia, os camponeses eram não só a maioria da população como constituíam os contingentes fundamentais das Forças Armadas em que os bolcheviques se apoiaram para promover a tomada do poder em 1917. Além disto, dispunham de partido político próprio (o Partido Social Revolucionário).
O Czar foi derrubado em fevereiro de 1917. O regime consistia na monarquia absoluta. Sob a direção do Partido Constitucionalista Democrata (cuja sigla em russo dava a palavra Kadiet) começou o trabalho de constituição do sistema representativo, tendo sido eleita a representação parlamentar (o Parlamento denominava-se então, como atualmente, Duma). A Duma convocou eleições para a Assembléia Constituinte a serem realizadas no mês de novembro.
Enquanto isto, os comunistas tratavam de constituir uma forma paralela de organização governamental, que depois ficou conhecida como sistema cooptativo, isto é, cuja direção era efetivada por indicação dos partidos (sob o regime soviético todos proibidos, podendo atuar apenas o Partido Comunista). O sistema cooptativo baseava-se nos Conselhos (Soviets, em russo, donde o nome do regime posterior) que existiam nas Forças Armadas (o país estava em guerra com a Alemanha e havia mais de 5 milhões de homens em armas), nas cidades e no meio rural. Em outubro (pelo antigo calendário; início de novembro pelo que foi posteriormente adotado para compatibilizar com o Ocidente) foi convocado um Congresso dos Soviets que, sob a liderança dos comunistas, promoveu um golpe de Estado e tomou o poder.
Apesar de estar de posse do aparelho governamental, os comunistas não tiveram força para impedir as eleições para a Assembléia Constituinte, que tiveram lugar ainda em novembro. Compareceram 36,3 milhões de eleitores. O grande vitorioso foi o Partido Social Revolucionário, que era forte em todo país, predominantemente rural, enquanto os comunistas só tinham prestígio nas cidades. O PSR fez 267 deputados (num total de 520, maioria de 52%). Os bolcheviques tiveram 25% dos votos e os liberais (cadetes) 15%. A Constituinte chegou a instalar-se, aprovando a realização da reforma agrária, que era uma aspiração dos camponeses. Os bolcheviques preferiam estatizar as grandes propriedades. No dia seguinte à instalação os comunistas dissolveram a Constituinte. Ainda assim, tiveram que realizar a reforma agrária. O PSR era forte militarmente. Dos 4,5 milhôes de votantes para a Constituinte, no Exército e na Armada, os sociais revolucionários tiveram 1,9 milhão de votos e os bolcheviques l,8 milhão.
Com a distribuição da terra e a formação de pequenas propriedades, apareceram naturalmente os empresários com capacidade de liderança, constituindo um grupo de camponeses ricos, chamados em russo de kulaks.
Ainda na década de vinte, sob a liderança de Stalin, o governo comunista resolveu liquidar os kulaks e o fez fisicamente, simplesmente matando-os. Dessa matança o Ocidente tomou conhecimento graças às famílias que conseguiram fugir. Estima-se que foram fuzilados sem qualquer preocupação com processos judiciais, nada menos que oito milhões de pessoas. Os camponeses foram obrigados a ingressar em organizações coletivas (kolkojes). O governo também criou fazendas estatais (sovkojes).
O certo é que a agricultura soviética tornou-se uma das mais atrasadas do mundo. Antes dos soviéticos, a Rússia era exportadora de trigo. Sob os comunistas passou a depender de importações. As empresas estatais não se revelaram capazes de incorporar aumentos de produtividade. Somente em fins dos anos cinqüenta, depois da morte de Stalin, graças à visita que o novo chefe de governo (Krushov) fez aos Estados Unidos, é que os russos ficaram sabendo da existência do milho híbrido. Nessa época havia 26 milhões de economias familiares (ao aderir aos kolkojes, as famílias recebiam para plantio próprio em média dois hectares) totalizando 50 milhões de hectares, de baixíssima produtividade mas que respondiam pelo abastecimento das cidades.
De sorte que, à luz da evolução da agricultura nos países capitalistas do Ocidente e da tragédia representada pela experiência soviética, pode-se aquilatar o significado da obra de Kautsky ao encaminhar o socialismo ocidental no sentido da recusa das previsões de Marx no tocante ao desenvolvimento do capitalismo no campo.